sexta-feira, dezembro 27, 2019

Um peso na consciência


A imagem está ali bem à minha frente, numa fotografia de grupo da família, comigo com um ar enfadado e um imenso penso na cabeça. Terei, no máximo, uns três anos. O penso cobria uma ferida proveniente de uma queda numa escada, episódio de que ainda tenho uma vaga recordação, tal deve ter sido o traumatismo.

Reza a crónica familiar que, comigo a verter sangue e, imagino!, num imenso berreiro, terei sido levado, ali da rua Avelino Patena, onde então morávamos, para a vizinha Farmácia Baptista (fechou, de vez, há semanas, dizem-me agora), na rua Direita, em Vila Real. Na botica, em cujo balcão fui observado, terão chegado à conclusão de que o ferimento tinha uma dignidade que obrigava a uma ida à Casa de Saúde da Boavista, a umas escassas centenas de metros de distância. Contaram-me que fui aí atendido pelo Dr. Durão que, apiedado de mim (ou para não me ouvir gritar ainda mais), não recorreu a pôr pontos no lanho, talvez a razão pela qual ainda hoje a cicatriz tem a visível dimensão que tem.

Regressado a casa, os meus pais terão então notado que eu mantinha, teimosamente, um dos punhos sempre fechado. Curiosos, forçaram-me a abri-lo. E lá estava ele, na minha mão: a mais pequena das unidades de um estojo de madeira com os pesos que se usavam nas balanças com dois braços. Pelos vistos, eu achara graça ao objeto e surripiara o pequeno peso do balcão da farmácia, enquanto era observado, levara-o para a clínica, por entre toda a berraria, e ainda o mantinha ciosamente comigo, no fim desse atribulado dia.

Na manhã seguinte ao evento, uma “criada” foi, à Farmácia Baptista, devolver o peso “que o menino, por distração, tinha levado na véspera”. Por muitos anos, sempre que olhava o senhor Barreira, uma conhecida pessoa da cidade que geria aquela farmácia, sentia um (pequeno) peso na consciência.

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