Na minha infância, em férias, ouvia dizer que uma irmã do meu pai, a tia Regina, que “tinha trabalhado na Intendência”, dactilografava de forma exímia, e havia mesmo tido direito a um prémio nacional, por rapidez de execução. Por anos, já reformada, vi-a colaborar com os irmãos nos respetivos trabalhos, usando uma máquina muito antiga e ruidosa, uma belíssima Remington, que tão bem ficava naquele escritório de Viana do Castelo. Recordo-me de tardes de “concerto” de teclado, no rés-do-chão da casa do Largo Vasco da Gama, preparando peças para o tribunal ou artigos para o “Comércio do Porto”.
O teclado da Remington, que ainda tinha sido do meu avô, o qual morrera já nos anos 20, era AZERTY, letras iniciais que contrastavam com o HCESAR da máquina que via o meu pai usar no seu escritório da Caixa Geral de Depósitos, lá por Vila Real, onde vivíamos. Já não me recordo da explicação que então me deram para a existência dessa diferença de teclados, que por muitos anos me intrigou.
Por uma qualquer razão, mas talvez por que o modelo fugia ao convencional, passei a adorar os teclados AZERTY. (Os latinos europeus usam AZERTY, os britânicos QWERTY e os alemães QWERTZ).
Contudo, a minha primeira máquina de escrever, comprada em Lisboa em 1971, numa casa de penhores da rua do Loreto, em segunda mão (“está como nova”, garantiu-me o homem do “prego”, e era verdade), foi uma Olivetti portátil, coberta a plástico azul, com teclado HCESAR. Tive-a por muitos anos e, sem exagero, escrevi com ela milhares de páginas - nas vidas académica, associativa e política, em cartas, artigos e traduções, e, em especial, nos trabalhos para a Ciesa-NCK com que ganhei bem a vida trabalhando imenso, à noite e em fins de semana, nesses anos 70, de paralelo com as minhas tarefas no MNE (era proibido, eu sei!, mas já prescreveu...). A Olivetti tinha um defeito: avariava-se-lhe muito o “i”, letra que, quando se partia, eu ia substituir a um quatro andar na Almirante Reis. Depois, um dia, em Madrid, numa montra, apaixonei-me por uma máquina elétrica e comprei-a. Era “estrangeira”, era linda, era diferente, era de teclado AZERTY... Já a mandei “às urtigas” e continuo a guardar a Olivetti com o nostálgico carinho com que me acompanhou para a Noruega e para Angola. Depois, em 1987, comecei a trabalhar com computadores e nunca mais parei. E a Olivetti lá está, jubilada, numa prateleira em Vila Real.
(Num lugar onde trabalhei, mas, como Cervantes abria o Quixote, “de cujo nome não me quero lembrar”, espalhei um dia, entre as secretárias, a “galga” de que a padroeira das dactilógrafas era Santa Tecla, nome de um monte espanhol frente a Caminha. Meses depois, ouvi a mentirola repetida e credibilizada por outra pessoa e nunca tive coragem de confessar ter sido eu o autor da patranha.)
Há pouco, ao ler as memórias de Pedro Rolo Duarte (“Não respire”, um excelente livro, infelizmente póstumo), vi a menção de que o HCESAR fora uma determinação da ditadura. Fui à procura e deixo aqui o preâmbulo do decreto do Estado Novo que decidiu essa “política da tecla”: “Não há que estranhar a intervenção do Estado nesta matéria, porque cabe na sua orientação de imprimir uma feição nacionalista a todos os ramos de actividade, disciplinando-os em benefício do país”.
É nestes raros momentos que me sinto (apenas só um pouco, depois recomponho-me e logo melhoro) um bocadinho liberal.
4 comentários:
http://p3.publico.pt/vicios/hightech/4710/o-teclado-do-futuro-da-visao-de-salazar-actual
o HCESAR fora uma determinação da ditadura
Claro. Era um teclado somente português. A sua lógica era impecável: punha as letras mais usuais no português na parte central do teclado, facilitando a datilografia. O teclado americano, pelo contrário, é feito com o objetivo explícito de tornar a datilografia difícil, o que tem a vantagem de desincentivar erros.
Não creio que esta determinação da ditadura tivesse a ver com o incentivo a uma indústria nacional de fabrico de máquinas de escrever. Creio que as máquinas HCESAR continuaram a ser importadas do estrangeiro. A minha única máquina de escrever foi uma HCESAR fabricada na Alemanha de Leste.
Santa Tecla, nome de um monte espanhol frente a Caminha
Creio que Santa Tecla é o nome espanhol, o nome galego, que é o que atualmente se vê nas placas na estrada, é Santa Trega. Não sei se Trega será uma versão antiga de Teresa.
O monte é muito bonito visto de Portugal, tal como é espetacular ver Portugal do alto dele.
Olhe que não caro LL, olhe que não, a senhora é oriental. E até ha um tumulo dela na Siria
https://en.wikipedia.org/wiki/Thecla
https://en.wikipedia.org/wiki/Thecla#Tomb_of_St._Thecla,_Ma'loula
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