Há dias em que, por precipitação, falamos demais. Ontem, para mim, foi um deles.
Num jantar, aqui em Paris (alguns comentadores acham que a vida dos diplomatas é feita de jantares: é verdade, temos o hábito, quiçá excessivo, de jantar uma vez por dia), fiquei sentado próximo de um cavalheiro, já de certa idade, que, em determinado momento, e tendo sabido que eu era português, se referiu a uma homenagem que vai ser prestada, na UNESCO, a Aristides de Sousa Mendes. Revelou-me estar envolvido na organização e eu congratulei-me logo com isso, tanto mais que, como o informei, era agora o representante português na UNESCO e também ia colaborar no evento. Porque, à mesa, havia uma senhora de permeio e porque ele falava em voz bastante baixa, não tinha ouvido bem o seu nome.
A certo passo da conversa, ainda sob o tema Portugal, perguntou-me por Mário Soares e pela sua "simpática esposa", que conhecia bem. Disse-lhe as últimas notícias que sabia de ambos, tendo ele acrescentado: "Um livro meu tem um prefácio de Mário Soares". Com um orgulho algo adolescente (cada vez mais me convenço que nós "adolescemos" com a idade), saiu-me de imediato: "Tem graça! Eu também tenho um livro prefaciado por Mário Soares". Sorrimos e o jantar lá prosseguiu.
Minutos depois, perguntei discretamente à senhora que se interpunha entre mim e o tal cavalheiro, já octogenário: "Tem ideia de como se chama o seu vizinho do lado? Não consegui ouvir o nome dele...". A senhora olhou para o pequeno papel que identificava o conviva e disse, baixo: "Samuel Pisar".
Samuel Pisar? "O" Samuel Pisar, nascido na Polónia, que estivera detido em Auschwitz, que escapou miraculosamente das garras de Mengele e de outros cenários de horror, cujo pai fora morto pela Gestapo? "O" Samuel Pisar que, no fim da guerra, se formara em Oxford e na Sorbonne, e que, naturalizado americano, dera aulas em Harvard e fora assessor económico de John Kennedy? Olhei de viés e, com uma curiosidade acrescida, procurei escutar algo que ele dizia para o outro lado da mesa. Nada de decisivo, apenas elogiava a textura dos espargos que estavam a ser servidos, agora que é a época deles.
No final do jantar, num canto, falámos um pouco da Europa e do lugar de Portugal nela. Samuel Pisar é hoje um senador de uma vida que, como poucos, soube recriar a partir da barbárie e que um dia, ao que agora recordo, escreveu: "hoje, sobrevivente dos sobreviventes, sinto uma obrigação de transmitir algumas verdades que aprendi na minha passagem pelo mais baixo da condição humana e, depois, por alguns dos seus momentos altos".
Nunca me perdoarei de ter, inadvertidamente, "rivalizado" com Samuel Pisar, ao reivindicar ter, como ele, um prefácio de Mário Soares. Ou melhor, e pensando bem, talvez tenha a obrigação de ficar contente por poder ter, com ele, esse honroso ponto em comum.
9 comentários:
Senhor Embaixador,
Tem razão Samuel Pisar. A Dra Maria Barroso é uma pessoa encantadora.
Dois motivos para regozijo: o encontro com esse Senhor, um exemplo para a Humanidade e os prefácios comuns. Mário Soares tem uma dimensão à escala mundial, todos o sabemos. Mas é magnífico ouvir da boca do sobrevivente dos sobreviventes tais palavras. Obrigado pelo que aqui está registado.
Sem palavras...
A velha senhora acordou impertinente, diria mesmo inconveniente - para variar:
minha boa e cara helena
tem razão samuel pisar
e em muito mais coisas tem-na
entre ele e ela há um mar
Obrigado por nos relatar este encontro tão interessante...
Cara Velha Senhora
Mar de frescura e qualidade
Esse que os separa
Uma sem ponta de vaidade,
O outro uma avis rara!
:-) à bon entendeur salut!
"A vida dos diplomatas é feita de jantares: é verdade, temos o hábito, quiçá excessivo, de jantar uma vez por dia"... in FSC
Há comentários aos comentários que são uma delicia, sempre sobre mesa...
Ele é também enviado especial da UNESCO.
http://www.youtube.com/watch?v=0EtSFgO-9hg
"Adivinha quem vem jantar?" - "Um Senador de UMA VIDA" companhia que fez do jantar a diferença de todos os dias! A Drª Maria Barroso estará hoje (29 de Maio) às 18.30h na Sede Nacional do PS no Largo do Rato em Lisboa para uma distendida conversa sobre o seu (dela) percurso político com alusão a algumas situações políticas e sociais mais relevantes que fadaram o seu "destino".
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