No Ministério dos Negócios Estrangeiros, como por aqui já referi algumas vezes, a principal relação escrita entre Lisboa e os postos no exterior faz-se através dos chamados "telegramas", qualificação que ainda vem do tempo em que eram enviados, de facto, telegramas através dos correios, com os textos submetidos a uma "cifragem" prévia, a que correspondia mais tarde uma "decifragem" no destino. Hoje, esses procedimentos são feitos por meios mais sofisticados - eu diria mesmo, tão sofisticados e dependentes de tais tecnologias que algumas interrogações se colocam quanto à sua real fiabilidade. Mas devo ser eu que sou um desconfiado...
Esta introdução é apenas para enquadrar uma historieta, que tem algumas décadas e que, ao que me contaram, foi então muito falada. Tratou-se de um telegrama enviado pela nossa missão na ONU, em Nova Iorque, de resposta a um outro, chegado de Lisboa. Ao que parece, o embaixador teria ficado abespinhado com uma insistência da "Secretaria de Estado" (nome pelo qual os postos no exterior tratam o MNE em Lisboa) sobre um assunto que ele achava já ter esclarecido devidamente. Vai daí, decidiu-se remeter um telegrama com um texto que poderia ser o que se segue:
Com referência ao telegrama dessa Secretaria de Estado nº 457, não posso senão reiterar tudo quanto já adiantei no meu 654, o qual, aliás, refletia a perspetiva que avançara no meu 398. Porém, em face da insistência agora feita, pergunto-me se essa mesma perspetiva, que tinha nomeadamente em conta as instruções que aqui recebi dessa SE pelo 347, do ano transato, é, em si mesma, compaginável, por exemplo, com as anteriores instruções constantes da circular 34, no seu ponto 12, desse mesmo ano. VExa compreenderá que, havendo dúvidas, será legítimo cruzar tal doutrina com aquilo a que meu colega em Roma judiciosamente aludia, há semanas, no seu 197, aditando, aliás ao seu anterior 65, texto que ganharia em ser revisitado. É que, a assim não ser, só posso concluir que ainda se manterá válida, devendo ser seguida, a linha que a nossa embaixada em Londres expressava no seu 178. É no cruzamento dessa perspetiva de abordagem, que não deixa de ter em conta tudo quanto antecede, que se situa posição desta Missão. Salvo melhor opinião, julgo ter sido cristalinamente claro.
E o embaixador assinou por baixo. Em Lisboa, ao que consta, o telegrama provocou um sururu nos serviços, obrigando os desgraçados dos arquivistas a coletarem todas as comunicações cuja numeração fora citada, sem que, por um momento, houvesse a mais pequena ideia daquilo a que o embaixador se estava concretamente a referir. Não queria ele outra coisa, diga-se!
(Nota: o exemplo da imagem é um telegrama, aliás histórico, que já foi "desclassificado". Essa é a razão pela qual o publico. Para um diplomata, um telegrama é um instrumento de comunicação "sagrado", que a deontologia profissional impede de divulgar)
8 comentários:
Senhor Embaixador fico-lhe a dever, hoje, uma benfazeja gargalhada.
Tentei ler o post ao meu irmão mais velho, mas tivemos ambos um ataque de riso tão grande, que vou tentar, amanhã, ler-lho até ao fim.
Bem haja!
Cara Dra. Helena Sacadura Cabral: peço que transmita ao embaixador Sacadura Cabral, da minha parte, um abraço de camaradagem corporativa, neste tempo em que o nome do Palácio onde ambos trabalhámos tem, infelizmente, um forte significado.
Está o máximo...
Aí está um protocolo de telegrama passivel de ser adotado nos periodos de calmia intereleitoral, mais precisamente intercampanha.
bom sentido da ironia e não só. deve-lhe ter passado pela cabeça outro tipo de resposta bem mais concisa, mas pensando bem resolveu se por esta criando um quebra cabeças ao destinatario e divertindo-se.
Está demais! Como é bom haver ainda alguém que nos dá uma destas, num tempo destes. Alá o guarde com saúde e este espírito, por bons anos!
diz o sr. embaixador
'uma historieta, que tem algumas décadas(...)'
nao posso deixar de notar que, entao, a palavra perspectiva esta escrita grafada de modo incorrecto
uma falta lamentavel para um diplomata (da epoca, claro...)
bem haja
Ó Senhor Embaixador fez-nos novamente rir.
Mas olhe que ter um filho a comandar as ditas, também não é pêra doce!
O assunto, aliás, e como pode calcular, tem sido alvo de frequente conversa familiar que até já encarou fazer uma petição, para a retoma do nome Palácio Rilvas.
Atenção é um "i"; não um "e".
Através de si, caro Embaixador, uma palavra de simpatia e uma bela gargalhada pelo post da Dra HSC. Palácio do Relvas... é genial. O nosso MENE deve estar divertidíssimo com este trocadilho.
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