O secretário de embaixada, naquele posto diplomático isolado, num qualquer lugar do mundo, numa cidade cujo nome me escapa, conhecia ainda mal o seu novo embaixador, que há dias havia chegado.
Já dera para perceber que se tratava de uma personalidade algo solitária, um pouco sentenciosa, com ideias muito firmes a propósito de tudo. E parecia ser, pelo menos a avaliar por certas atitudes, uma pessoa algo desconfiada. Mas era simpático, e isso é sempre o mais importante, numa embaixada pequena, onde é decisivo preservar uma boa relação entre o chefe de missão e o seu direto e único colaborador diplomático.
O secretário ficou agradavelmente surpreendido quando, numa manhã, o novo embaixador o chamou e inquiriu: "Você, que já está cá há um tempo, diga-me lá: qual é o melhor restaurante da cidade?". O jovem diplomata hesitou um pouco. Os seus "cabedais" não davam para frequentar muito os melhores restaurantes, naquela que era considerada, ao tempo, uma das cidades mais caras do mundo. Mas, naturalmente, ouvira falar nos mais badalados lugares dessa capital. E, sob reserva de não ainda lá ido, indicou um nome bastante conhecido.
O embaixador, além de simpático, era uma homem generoso, como o gesto imediato demonstrou e o futuro viria a provar. "Se você não tiver nada combinado, convido-o para almoçar nesse restaurante", disse o embaixador. O secretário estava disponível, achou graça à ideia e, de imediato, acedeu ao pedido do seu novo chefe para providenciar a marcação de uma mesa. Na conversa telefónica com o restaurante, deixou cair que a reserva era para o embaixador português, por forma a procurar assegurar um acolhimento à altura.
Chegados ao restaurante tiveram, de facto, um tratamento singularizado. O "maître" veio esperá-los e, desde logo, identificou o embaixador, a quem designou pelo seu título. O secretário julgava que o seu chefe havia ficado satisfeito com o facto, mas só até ao momento em que se viu, em voz baixa e desagradada, criticado pela indiscrição cometida: "Quem é que o mandou dizer que eu era embaixador?" O secretário ainda balbuciou algo, mas logo foram conduzidos, em grande estilo, através da larga sala.
Chegaram à mesa. Tinha uma vista magnífica, sobre a cidade, junto a uma varanda isolada, num espaço algo recatado e protegido do resto da sala. O secretário pensou para consigo: "Com uma mesa destas, o homem já deve estar a pensar que, afinal, fiz bem em revelar que ele era embaixador". Enganou-se.
O embaixador estacou, fez uma cara séria e, voltando-se para o "maître d'hôtel", perguntou: "Não tem outra mesa disponível?". O homem ficou siderado. Havia, de facto, vários outras mesas vagas na sala, mas aquela era, flagrantemente, "a" mesa do restaurante, seguramente a mais requestada pelos clientes. Desejoso de agradar, o funcionário ainda tentou explicar que aquele era o melhor lugar da sala. Irredutível, o embaixador escolheu outra mesa e, já perante o embaraço e a perplexidade do seu secretário, lá se sentou, pedindo o menu e a carta de vinhos.
O embaixador estacou, fez uma cara séria e, voltando-se para o "maître d'hôtel", perguntou: "Não tem outra mesa disponível?". O homem ficou siderado. Havia, de facto, vários outras mesas vagas na sala, mas aquela era, flagrantemente, "a" mesa do restaurante, seguramente a mais requestada pelos clientes. Desejoso de agradar, o funcionário ainda tentou explicar que aquele era o melhor lugar da sala. Irredutível, o embaixador escolheu outra mesa e, já perante o embaraço e a perplexidade do seu secretário, lá se sentou, pedindo o menu e a carta de vinhos.
Passaram-se uns instantes, em silêncio, até que o embaixador olhou o secretário e lhe disse: "Meu caro, você é um jovem, este é o seu primeiro posto, ainda tem uma grande experiência a ganhar. Não devia ter dito que era o embaixador de Portugal que vinha aqui almoçar. Isso identifica-nos e coloca-nos logo sob observação". O comentário era bizarro, mas mais estranha foi ainda a revelação que se seguiu: "E sabe porque é que eu não aceitei aquela mesa, embora tivesse uma excelente vista?". O secretário não sabia, aliás, já concluíra que não percebia nada do que se estava a passar. "Porque aquela mesa que nos deram, pela certa!, é uma mesa com microfones. A nossa conversa ia ser escutada. Isto é um mundo muito complexo, meu caro. Com os anos, você verá!", disse o embaixador, já pedindo o vinho, e mudando de conversa.
O secretário ficou aquilo a que os franceses chamam "bouche bée". Começava a conhecer melhor o embaixador que lhe "calhara em rifa" e, intimamente dividido entre saber se os seus próximos anos iam ser divertidos ou complicados, perguntava-se (mas não perguntou ao seu chefe, porque percebia que já não valia a pena) que utilidade teria para os serviços secretos desse país gravarem, traduzirem e "tratarem" em termos de "intelligence" a conversa de circunstância entre um embaixador português e o seu secretário.
12 comentários:
Ontem almocei na Sua terra numa vista quiçá mais bonita que essa e de facto comi uma francesinha com sabor a pato frustrado que não me custou nada a deglutir a não ser a mágoa do dever cumprido num pacto de silêncio gritante por impotência...
Mas a paisagem é divina.
Ainda quanto ao post é urgente incluir no plano curricular de formação diplomática a linguagem gestual...
Olhe Sr. Embaixador nem sei como ainda não se lembraram disso...
"não TENDO ainda lá ido"
Senhor Embaixador,
Brilhante prosa.
Parabéns!
Isto de relacionamento entre embaixador e secretários por vezes é complicado......
Se o secretário é humilde tudo bem...mas se este no posto se mostra espevitado então está à perna do chefe de missão e baixa a bolinha!
Saudações de Banguecoque
José Martins
simpático e generoso são sem dúvida qualificativos adequados a esse embaixador. jovem e desconhecido diplomata em viagem de correio de gabinete, tive a grata surpresa de por ele ser convidado para almoço em muito bom e caro restaurante, na capital onde então servia como número dois. ainda hoje me lembro do menu e do teor da conversa - da conversa dele, naturalmente, que eu nada teria para dizer.
abraço e parabéns pelo post e pelo blogue.
fg
Também ha embaixadores maniacos...
sinto simpatia pelo secretário da embaixada,deu o seu melhor, mas menos pelo embaixador desconfiado, tortuoso, não lhe gostando nada, megalómano, snob.
possivelmente, não sabia o que escolher para comer, o embaixador.
espero que patrício branco não saiba de que embaixador se trata - nem de que secretário de embaixada - e lavre a sua sentença baseado apenas no relato do autor do blogue.
porque, se sabe, é pior.
lamento em qualquer caso a, digamos, deselegância de se condenar em púbico (e com que caterva de qualificativos pejorativos!) alguém não nomeado, a quem não se dá assim possibilidade de defesa.
fg
O comentador fg retificou, e bem, Patrício Branco. O embaixador em causa, homem, como se disse, simpático e generoso, era um qualificado "gourmet" e tinha bastante bom gosto. Contudo, por experiências pessoais várias, era muito preocupado com os "serviços secretos", nesse tempo ainda de "guerra fria", em que os espiões se dedicavam a coisas sérias.
efectivamente, li a entrada do blogue como uma historia exemplar, sem ter a minima ideia ou curiosidade em saber quem eram na realidade as 2 pessoas que foram jantar. analisei os personagens apenas na base da historia que nos é contada. se alguem se sentir visado pelo comentario peço desculpa, não era essa a intenção, desconsiderar pessoas reais.
ps. uso megalómano no sentido de que se punha comicamente ao nivel de heroi de novelas de john le carre, considerando que aquilo que dizia mobilizava o interesse de espiões. Daí o secretario ficar desconcertado, bouche bée.
caro fsc, agradeço o seu esclarecimento. Os elementos à minha disposição são os da historia que contou e não me preocupei minimamente em saber quem eram as pessoas. Comentei digamos figuras de ficção, não pessoas reais.
Como nada nos é dito sobre a parte gastronomica do almoço, diverti me ainda a imaginar que o embaixador, exigente como parece ser, teria tido alguma dificuldade em escolher, torcendo o nariz 'a ementa.
Um primo meu, da Carreira, falava-me de um embaixador que era do Algarve, que estava num país nórdico e que tinha a mania da espionagem. Curiosamente, muitos anos antes da CIA inventar uns insectos que ocultavam nano-microfones, já ele dizia que era preciso cuidado com certas moscas...
De qualquer forma sr. Embaixador quando for assim sugiro-lhe que encaminhe para um oftalmologista, decerto andam a ver mal as coisas...
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