Seria possível? Seria a mesma loja? Erick olhava deliciado para o pequeno espaço que acomodava o sapateiro, naquela estreita rua da cidade perdida na Bretanha de onde saíra, à pressa, numa tarde de 1939, quando os alemães, que já haviam ocupado a sua Bélgica natal, avançavam pela França dentro.
Erick era então professor na cidade bretã. As suas origens judaicas haviam-lhe recomendado que procurasse sair de França, tão rapidamente quanto possível. Procurou a fronteira espanhola e, com a ajuda de amigos, conseguiu, algumas semanas mais tarde, chegar aos Estados Unidos. Por aí ficou a viver. Só no final dos anos 50 decidira voltar à Europa, à sua Antuérpia, já como turista. A curiosidade e a memória levou-o também a revisitar aquela pequena terreola da Bretanha, que ficara para sempre ligada a um momento complexo da sua vida.
Agora, perante essa pequena loja do sapateiro, uma recordação, que o acompanhara todos esses anos, mostrava-se bem viva: deixara aí uns sapatos para consertar e, na pressa da fuga, nunca os levantara. Quase vinte anos passados, uma imensa curiosidade fê-lo entrar.
A cara do velhote que o olhou, do fundo da loja, não lhe dizia nada. Mas não resistiu a perguntar se, por acaso, já estava por lá há duas décadas. O homem confirmou: era dono da loja desde sempre. Erick contou então a história dos sapatos que deixara para compor e que nunca tivera ensejo de levantar. O sapateiro olhava-o, com uma curiosidade que, contudo, não acompanhava a emoção de Erick. Não se recordava do episódio, naturalmente. Mas, a certo ponto, inquiriu: "que tipo de sapatos eram?". Erick lembrava-se, porque essa imagem ficara-lhe para sempre: "Eram castanhos, com um desenho levemente ondulado na zona lateral".
Agora, perante essa pequena loja do sapateiro, uma recordação, que o acompanhara todos esses anos, mostrava-se bem viva: deixara aí uns sapatos para consertar e, na pressa da fuga, nunca os levantara. Quase vinte anos passados, uma imensa curiosidade fê-lo entrar.
A cara do velhote que o olhou, do fundo da loja, não lhe dizia nada. Mas não resistiu a perguntar se, por acaso, já estava por lá há duas décadas. O homem confirmou: era dono da loja desde sempre. Erick contou então a história dos sapatos que deixara para compor e que nunca tivera ensejo de levantar. O sapateiro olhava-o, com uma curiosidade que, contudo, não acompanhava a emoção de Erick. Não se recordava do episódio, naturalmente. Mas, a certo ponto, inquiriu: "que tipo de sapatos eram?". Erick lembrava-se, porque essa imagem ficara-lhe para sempre: "Eram castanhos, com um desenho levemente ondulado na zona lateral".
Abriu os olhos de espanto quando viu o sapateiro, sem uma palavra, dirigir-se para uma arrecadação interior, de onde saíram então uns ruídos de caixas a serem movidas. Até que a voz do sapateiro, lá de dentro, inquiriu: "Eram de cordões ou de pala?". "De cordões", respondeu Erick, cada vez mais perplexo com o jogo que se desenhava. E o sapateiro, ainda de dentro da arrecadação, voltou a perguntar: "Era uma sola descosida no sapato do pé direito?".
Erick não queria crer no que ouvia. Era isso mesmo! O homem descobrira os seus sapatos! Mas, rapidamente, uma núvem de desilusão lhe passou pelo olhar quando viu o sapateiro sair da arrecadação, sem nada nas mãos. O homem olhou-o com um rosto neutro, profissional, e esclareceu: "Estão prontos amanhã. Pode vir buscá-los da parte da tarde".
Não garanto, claro, a veracidade desta história. Contou-ma o meu velho amigo Frederico Amaral Neves, mais ou menos assim, ontem, ao final da noite, na pastelaria Gomes quase deserta, numa Vila Real em tempo de corridas de automóveis. Achei que merecia um lugar neste blogue.
9 comentários:
E achou belissimamente.
Não importa se esta foi real; outras houveram, seguramente, que por mais que verdadeiras, nunca as saberemos.
Pequeninos retratos de humanidade, de emoções resgatadas; de uma certa reconciliação com a vida, que pode ser tão trágica.
Que é, para milhões, hoje, agora, brutal.
'Os sapatos' são uma luzinha nas trevas.
Texto belíssimo Senhor Embaixador!
Deliciosa história. Para além de nos dar uma visão optimista do passar do tempo, fala-nos duma relação profunda e rigorosa com o trabalho de cada dia. Entusiasmante.
É a primeira vez que comento um post deste blog que leio assiduamente. Não é todos os dias que se escreve para o Embaixador em Paris. :)
O importante, neste caso, não é saber se a história existiu verdadeiramente. Verosímil, agora tem uma existência sublime.
Pois subscrevo...Os adjectivos ao Seu texto...
Sabendo de antemão que este tipo de inspiração tem origem em espaços de origem só de si puros e genuínos da sustentável leveza de ser de cada Um.
A essa hora partilhei a amplitude da paisagem onírica de Vila Real na Casa do Paço onde degustei a comemoração de .. anos de Enfermeira Especialista em reabilitação, onde comprovei que a acessibilidade ao local me lembrou também que o que apaixona efectivamente os convidados que vêm a Trás-os -Montes é a ilusão de interioridade compatível com inacessibilidade ao Saber Saber...
Pois nota-se pela adesão aos nossos produtos gastronómicos até com a sofreguidão... E a substituição dos covilhetes de entrada pelos pastéis de Chaves...
Claro que fiquei com pena de não ir à Gomes ainda por cima sabendo...
Isabel Seixas
obrigado pela bela história, belo texto - merecia um sketch no próximo filme de Mario Benigni (quem sabe...)
Inteiramente de acordo com Fernando Correia de Oliveira. Dava um pequeno filme. Extraordinário! E belo, como disseram Margarida e HSC!
P.Rufino
Senhor Embaixador:
Este texto,perdoe-me a expressão, deixou-me com "un nó na garganta"
Obrigado.
É uma linda história, contada com imensa ternura.
A vida destes dois homens daria um grande romance ou um filme. Nada mais tenho a acrescentar, o mais importante já foi dito.
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