terça-feira, abril 23, 2019

António


- Então? Que achaste do tipo?

- Tem uma bela figura! E uma presença muito forte! 

O António Alves Martins tinha ido ao aeroporto, para assistir à chegada de Álvaro Cunhal, nesse dia 30 de abril de 1974. Achara graça testemunhar o fim do exílio do mítico líder comunista e, pelos vistos, vinha impressionado, descrevendo-me a cena de Cunhal sobre o carro de combate, naquele “remake” luso da chegada de Lenine à estação da Finlândia, em Petrogrado, que o emergente PCP nesse dia encenou com estilo. 

Tinha-me desafiado para ir com ele, mas, por uma qualquer razão, deixei-me ficar nos estúdios da RTP, onde, como militares da EPAM - a Escola Prática de Administração Militar, unidade que ocupara a televisão, na noite da Revolução - ambos passávamos então os dias e parte das noites.

O António não tinha grande simpatia pelo PCP. Mas não quis perder esse encontro com a História. Seria, aliás, fundador e um dos primeiros militantes do MES, o Movimento da Esquerda Socialista, onde me levou numa noite de maio, ainda na sede do edifício de esquina com a Calçada da Estrela, para me apresentar ao Afonso de Barros.

Tinhamo-nos conhecido na EPAM, em 1973. E ficámos logo amigos. Ligavam-nos alguns interesses comuns, ele ainda trazia Paris, onde estudara, no sangue e na memória afetiva recente. Fizemos juntos o 25 de abril (fomos, aliás, os dois únicos oficiais milicianos envolvidos na cena da detenção do comandante da unidade, nessa manhã). Eu, entretanto, saí para a Comissão de Extinção da PIDE e, depois, para a assessoria da Junta de Salvação Nacional. Voltámos a encontrar-nos, meses mais tarde, na 2ª Divisão do EMGFA, para onde fui chamado a trabalhar, por indicação dele. Na sequência do 11 de março, fizémos parte do escasso grupo que saiu do EMGFA para criar o SDCI. 

Depois, um dia desse ano politicamente inesquecível de 1975, a tropa acabou para nós. Eu entrei para as Necessidades e o António passou a dar aulas no então ISEG. Fomo-nos vendo mais a espaços, ele sempre com uma cordialidade carinhosa (que derretia as “piquenas”, terreno onde era imbatível!) e a sua simpatia transbordante e irradiante. Nos seus 50 anos, no antigo “Saddle Room”, fizemos uma festança memorável, creio que em 1996. Ainda nos abraçámos no jantar comemorativo dos 20 anos do fim do MES, no Pavilhão de Portugal, em 2001. Foi a última vez que o vi. Depois, por muito que eu tentasse, com outros amigos, numa consegui romper o mundo recolhido em que a depressão o mergulhou. 

O António Alves Martins morreu ontem. Hoje, terça-feira, pelas 18:30 h, o seu corpo estará na igreja de S. João de Deus. Vou lembrar-me muito do António, neste 25 de Abril.

segunda-feira, abril 22, 2019

11 de março


Hoje, pelas 18:00 horas, na Associação 25 de abril, vou fazer a apresentação do livro “A noite que mudou a Revolução de Abril”, que inclui a transcrição da Assembleia do Movimento das Forças Armadas, que reuniu na noite de 11 para 12 de março de 1975.

Coordenado por Carlos Contreiras e com a colaboração de Vasco Lourenço e Jacinto Godinho, o livro é publicado pelas Edições Colibri.

sábado, abril 20, 2019

A democratura


Na aproximação das eleições para o Parlamento Europeu, o Partido Popular Europeu suspendeu o Fidesz, o partido do líder húngaro, Viktor Orbán. embaraçado por algumas das suas práticas políticas. Para alguns, a Hungria é já hoje uma espécie de “democratura”, isto é, uma democracia com fortes laivos de ditadura. 

Deixo aqui uma história pessoal, envolvendo Orbán.

Estávamos em março de 1999. Como membro do governo português, eu acompanhava o presidente Jorge Sampaio em visita de Estado à Hungria, país candidato à União Europeia (entraria em 2004), a convite do seu homólogo Árpád Göncz. 

Por esses dias, estavam iminentes os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que ainda nesse ano iria integrar a NATO. 

Em Budapeste, eu havia acompanhado Jorge Sampaio num encontro com o já então primeiro-ministro Viktor Orbán. A conversa não foi fácil, quando, a pedido de Jorge Sampaio, fiz referência a alguns dos passos institucionais que a UE exigia à Hungria e que esta resista a fazer. Orbán mostrava-se frio, tenso, desagradável mesmo. A certa altura, a propósito dos possíveis bombardeamentos da NATO, falou da sua preocupação com as populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia. Eu disse perceber a sua inquietação, mas reagi ao seu bizarro conceito de “futuras populações NATO" com que qualificou esses sérvios, lembrando que a ditadura portuguesa tentara, sem o menor sucesso, utilizar um similar conceito extensivo para os habitantes das colónias africanas em guerra. Orbán lançou-me um olhar duro e a conversa, que já não estava amável, não melhorou.

À noite, Árpád Göncz ofereceu um jantar a Sampaio no majestoso parlamento húngaro. Sabia-se que as relações entre Göncz e Orbán não eram nada fáceis, por razões de política interna, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política. Por contraste com Orbán, o presidente era uma figura suave, um homem de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. 

A certa altura, na varanda do parlamento, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Göncz morreu em 2015. Órban, depois de ter estado afastado do poder, é, de novo, desde 2010, primeiro-ministro. O que se tem passado nos últimos anos na Hungria, em matéria de abusos que infringem as liberdades fundamentais, as regras do Estado de direito e o respeito pela separação de poderes, envergonha a Europa.

(Artigo publicado em 18.4.19 no “Jornal Económico”)

sexta-feira, abril 19, 2019

Alfredo Cunha



Alfredo Cunha é um dos grandes foto-jornalistas portugueses. A sua coleção de retratos do 25 de abril, de que organizei em 2008 uma exposição em Brasília e que agora saiu num excelente livro, sob a égide da Câmara Municipal de Lisboa, é um momento alto da fotografia em Portugal.

Entretanto, tinha já ouvido falar deste outro livro, “Retratos”. Há dois dias, folheei-o na FNAC e, confesso com facilidade a vaidade, tive um grande gosto de me ver retratado por lá, numa imagem já com 17 anos. Não é todos os dias que uma figura como Alfredo Cunha nos fotografa.


Buraco 15


- Ele ainda trabalha convosco?

- Claro!

- E está por aí? 

- Há pouco estava. Passei pela secretária dele e tinha lá o casaco.

- Nesse caso, o tipo que está aqui ao pé de mim, no buraco 15, é um espantoso sósia dele...

- Mas tu estás onde?

- Estou no golfe...

- Espera aí! Já te ligo! 

                                                                  (***)

- És tu? Afinal tinhas razão! O tipo já tinha saído daqui há horas! Vai-me ouvir das boas!

- A tua empresa é que ainda cai no velho truque no casaco sobre as costas da cadeira...

Conversa telefónica verdadeira, há tempos, entre uma famosa personalidade empresarial portuguesa e um amigo, a propósito de um colaborador do primeiro, pago a peso de ouro, figura que o país bem conhece (até demais!). Os nomes omitem-se, por piedade pascal.

quinta-feira, abril 18, 2019

Pão de ló


Mas, afinal, o que é que faço? Saio depois da Tornada, na A8, e vou ali comprá-lo a Alfeizerão? Ou, já na A29, dou uma saltada a Ovar? Ou ainda, para o ter mais fresco, faço um pequeno desvio da A4 por Felgueiras e levo para Vila Real o pão de ló de Margaride? Qual é o melhor, digam lá?! É que já vou a caminho...

O inimigo...


Notre Dame europeia



Ao ver tombar a agulha de pedra da parte traseira da Notre-Dame de Paris, não consegui deixar de pensar na queda das Torres Gémeas, em Nova Iorque. Nos dois casos, as televisões tornaram-nos testemunhas oculares de tragédias que, porque profunda e sinceramente partilhadas, convocaram em nós fortes sentimentos coletivos. Se entre eles as diferenças são claras, a verdade é que em ambos se gerou um óbvio sentido de perda, que federou uma tristeza comum.

Em Nova Iorque, com a imensidão de vítimas, a tragédia tinha um sentido tão óbvio de barbárie que levou a que muitos milhões, por todo o mundo, acabassem por partilhar uma solidariedade com uma América que, em geral, não despertaria nessas pessoas uma automática sintonia. Ao assistir ao modo criminoso como tanta gente foi sacrificada no altar do extremismo religioso, houve como que um sobressalto ético, porque, mesmo nos mais agudos conflitos, não “vale tudo”. Não cheguei ao ponto de colocar a bandeira americana na lapela, mas confesso que, com amigos americanos, partilhei aquela perda como se fosse minha. O título nesse dia do parisiense “Le Monde” (“Somos todos americanos”) foi um grito genuíno, também meu.

Em Paris, tudo foi parecido e diferente. De início, olhei aquelas imagens com a ingenuidade de que seria um pequeno e controlável incêndio. Depois, à medida que o rubro das chamas ia subindo no écran, apossou-se de mim uma angústia crescente: “Espera aí! É a Notre-Dame que está a arder!”. E, de repente, lembrei-me de uma tarde de agosto, há mais de meio século, em que ali chegara, à boleia, pousara a mochila no chão e olhara, esmagado, para aquela igreja que conhecia “de toda a vida”. Estar ali significava muito para a minha geração. Lembrei-me também da emoção com que, há uma década, como embaixador em Paris, falei daquele altar a uma Notre-Dame apinhada de portugueses vindos de toda a França, tendo ao lado o cardeal arcebispo de Paris. Mas isso, afinal, não era nada, perante o facto de estarem ali a arder mais de 800 anos de uma História que, sendo francesa, era também europeia, isto é, igualmente nossa.

É com frequência nas dificuldades que se criam os mais fortes sentimentos comuns. Naquele dia, em Nova Iorque, tinha-me sentido cidadão de uma civilização de valores. Na segunda-feira, dei comigo a pensar que reconhecermo-nos como herdeiros de uma cultura e de um património desta monta é, afinal, o que verdadeiramente nos identifica como europeus.

(Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 17 de abril de 2019)

terça-feira, abril 16, 2019

Incêndios e riscos


Ao ver as imagens trágicas do incêndio na Notre-Dame, não pude deixar de me interrogar sobre as condições em que estarão alguns importantes edifícios do património português. Não tendo certezas sobre a qualidade da prevenção em Portugal, resta-me apenas alimentar a esperança de que esteja tudo bem.

Um dia, creio que em 1977, chegaram finalmente os detetores de incêndio ao palácio das Necessidades. Na repartição do MNE onde eu então trabalhava, a EEA (onde tratávamos das relações económicas com a África, Ásia e Oceania), entraram, no final de uma manhã, uns operários para montar os sistemas de deteção. Escadotes e outros aparatos invadiram a sala onde trabalhávamos cinco diplomatas e técnicos. A sua ação perturbava o nossa, pelo que me lembro de termos apressado a saída para o almoço, deixando-os a operar por lá.

No regresso, para nossa grande surpresa e algum escândalo, a sala estava sujíssima, com restos de material pelo chão e imenso pó sobre as nossas secretárias. Ficámos furiosos e era nesse estado que estávamos quando ele entrou na sala. 

Ele era um cavalheiro  - recordo-me bem! - que vestia um blazer azul, sob o qual se destacava uma estranha camisa de largos quadrados, à Alves Redol, como ironicamente eu sempre designava aquele traje, para desagrado dos meus amigos mais sensíveis à cultura do neo-realismo. Assente no peito de tal bizarra camisa, destacava-se uma berrante gravata vermelha, com nó largo, como à época se usava. Era, com certeza, o encarregado da obra.

O homem disse boa-tarde, avançou e, chegado a meio da sala, pôs-se a olhar para o teto, para o trabalho feito. Irritou-me fortemente que não tivesse notado a sujidade espalhada, fruto da incúria do seu pessoal. Não sei se o meu desagrado terá ido ao ponto de me fazer não retorquir à sua saudação, mas recordo-me de ter dito: “Acha isto bonito? Lindo serviço!”. 

O homem “fez de conta” e veio direito a mim, que estava sentado ao fundo, entre as duas janelas. E estendeu-me a mão, com um sorriso entre o esfíngico e o irónico.

- Como está? Trabalhei nesta sala vários anos. Já cá não vinha há algum tempo Qual é o nome do colega? - e disse o seu.

Devo ter ficado bem encavacado. Aquele não era o encarregado das obras, era o nosso embaixador numa capital africana, que, manifestamente, apenas tinha levantado os olhos para os novos detetores de incêndio pela curiosidade de ver aquilo pela primeira vez montado por ali. Deve ter percebido que o confundíramos com alguém responsável pelos trabalhos, mas não acusou o toque. Com naturalidade, falou depois com todos nós, querendo conhecer os interlocutores que por ali tinha, na correspondência escrita entre Lisboa e a sua embaixada. E, momentos depois, saiu.

Nunca tive a certeza se ele ouviu ou não a imensa gargalhada coletiva que todos demos, depois da  porta fechada atrás de si. Rimos de nós mesmos, claro.

segunda-feira, abril 15, 2019

Notre Âme !


Braga religiosa e moderna


Braga noturna


Café Vianna

O bibinha


A manifestação patriótica corria a preceito, naquele entusiasmo encenado com que o Estado Novo conseguia, numa sustentada coreografia, colocar o povo nas praças, para as fotografias que, no dia seguinte, "A Voz", o "Novidades", o "Diário da Manhã" (que a oposição citava sempre sem o til), mas também o inefável "Diário de Notícias" e o ritualista “O Século” trariam na primeira página, a testemunhar o "inquebrantável apoio de Portugal à política de Salazar". O qual, diga-se, raramente se dignava estar presente nesses exercícios, deixando ao "venerando Chefe de Estado", Américo Tomaz, a função de pobre catalisador das emoções orquestradas. "Paletes" de autocarros, pagas pelo erário, arrebanhavam patriotas ocasionais, de fato e gravata, através das cidades, vilas e aldeias, que eram dispensados dos empregos e tinham ração garantida para o dia, empunhando faixas que espelhavam a imensa diversidade dos "sindicatos" do regime.

Não fosse tudo isso ter, por detrás, uma longa e sinistra ditadura, a que se somou uma sangrenta guerra colonial, e tudo até poderia ter alguma graça, dando origem a comédias a preto-e-branco. Não sendo as coisas assim, não podendo Peponne discutir com don Camillo, o humor político disponível tinha de ser procurado nos ridículos do regime.

Nesse dia, naquela Braga de onde o efémero Gomes da Costa arrancara num famigerado Maio, concelebrava a mobilização das hostes António Santos da Cunha, uma avantajada figura da "situação", homem de voz tonitruante, que, durante anos, desempenhou as funções com que o regime controlava as coisas por lá: foi presidente da União Nacional, presidente da Câmara municipal e Governador civil. Já não recordo em qual destas duas últimas funções atuava na ocasião em que, como era hábito, ressoavam, nos discursos, saídos da velha varanda bracarense onde aquelas cenas sempre se oficiavam, as imaginativas referências ao Portugal "pluricontinental e pluriracial" ou "do Minho a Timor" (o que ali vinha geograficamente a jeito), as loas à sabedoria histórica do "senhor presidente do Conselho", no meio do gongorismo retórico com que o regime organizava a turbamulta tresmalhada, sob o olhar fardado dos polícias e os ouvidos, atentos e dispersos, dos "pides".

António Santos da Cunha atiçava, nessas horas, o patriotismo oficioso, com intervenções entre os vários discursos, feitas de menções às figuras presentes ou a quantos fosse importante lembrar na ocasião, apelando às hostes para, individual e nominalmente, os saudarem. O ausente Salazar e o chefe de Estado recolhiam, como era natural, o grosso da coluna dos aplausos e dos "vivas", mas os ministros e outros dignitários presentes recebiam também, à escala da sua importância, uma quota-parte dessas conclamações. Tudo era feito com conta e peso, medido o nível das personagens. Santos da Cunha, que era um hábil profissional desses instantes, sabia bem o que fazia, organizando sempre em pormenor essa estudada improvisação.

Um qualquer obscuro subsecretário de Estado (o Estado Novo, até certa altura, foi muito parcimonioso no uso da figura de "secretário de Estado"), vindo de Lisboa na comitiva do "venerando chefe de Estado", ter-lhe-á, a certo momento da manifestação, lançado um olhar inquisitivo, como que a demandar que o seu nome também fosse sufragado pelo vozeirão do edil e pelo subsequente eco da multidão. Santos da Cunha olhou-o, e não conseguindo atenuar o seu tom habitual, sossegou-o, à distância, com os "bês" do Norte, numa frase que ficou no anedotário da "situação":

- O "bibinha" de Vocência, senhor subsecretário de Estado, sai já a seguir, esteja descansado!

Braga não é apenas a cidade do país que deu origem a mais expressões populares, como ontem aqui notei. É também, mas admito que possa estar enganado na minha “contabilidade”, aquela em que me parece que a estatuária urbana mais preserva, pelas figuras que celebra, alguns peculiares tempos políticos, antes e depois do 25 de abril.

Há pouco, em Braga, ao passar pelo monumento a Santos da Cunha, lembrei-me desta historieta. Verdadeira, claro.

domingo, abril 14, 2019

O padre David


Há tempos, num telejornal, foi entrevistada uma certa figura. E logo me veio à memória uma história passada com ela.

Algures nos anos 80, eu havia sido encarregado, em funções que então desempenhava, de receber essa pessoa. Vinha, muito bem recomendada, colocar-me um problema "sério". Ele e outros empresários tinham iniciado a construção de um lar para estudantes oriundos de certos países estangeiros, os quais, por perderem frequentemente as bolsas de estudo oficiais, por falta de aproveitamento, necessitavam de garantir alojamento para prolongarem a sua estada no nosso país. Os motivos desses empreendedores estavam longe de ser apenas altruístas: todos os estudantes que pretendiam beneficiar eram familiares de responsáveis, políticos e administrativos, desses países, os quais tinham direta influência na concretização de negócios com as empresas dos amáveis empresários lusitanos. Estava-se a ver o "filme"...

À partida, a questão parecia-me cristalina. Cada um procede como quer e pode, financia quem lhe interessa. Só não percebia o que é que o MNE tinha a ver com isso. Mas o meu interlocutor não tardou a ir direto ao que vinha: os empresários achavam que já tinham feito a sua parte, lançando as bases para o tal empreendimento, pelo que "cabia agora ao Estado" entrar com a restante verba necessária, que deveria representar cerca de 75% do custo total, o que, recordo, era um valor bastante elevado.

Expliquei ao senhor - que me pareceu ser um devotado cultor do lema "menos Estado, melhor Estado e o que dele sobrar fica para nós" - que as verbas para finalidades similares já estavam afetadas e que, em especial, o caso que apresentava não se enquadrava minimamente nas prioridades de financiamento que tínhamos definido. O nosso objetivo era concentrar a ajudas nos estudantes com aproveitamento, não nos "calões" de boas famílias. Pelo que a nossa resposta tinha de ser, muito simplesmente, negativa.

O cavalheiro abespinhou-se. Os seus contactos anteriores tê-lo-iam feito presumir um resultado diferente para a diligência. E logo adiantou que, a confirmar-se uma resposta negativa da nossa parte, se veriam "obrigados" a ir para a imprensa, denunciando o "desinteresse" das entidades oficiais do setor. 

Aí, "passei-me", e disse-lhe mais: que não tinha gostado nada da forma pressionante como a questão me fora colocada, e que, desde logo lhe podia assegurar, o Estado não cederia àquilo que era claramente uma espécie de chantagem. Atenta a gravidade da "ameaça" mediática que fizera, ia transmitir superiormente, "para os devidos efeitos", o respetivo teor, pormenorizando no texto que ia elaborar, as reais finalidades do projeto e detalhando os interesses que estavam por detrás dele. E adiantei: "Sabe?, no mau sentido, o senhor fez-me recordar a história do padre David". O homem, que já estava furioso, ficou também perplexo.

E contei-lhe que, nos meus tempos de infância, recebiam-se, em minha casa, umas cartas angustiadas, tipo circular, assinadas pelo padre David, de Ruílhe e Aveleda, localidades perto de Braga. Invariavelmente, o sacerdote explicava que tinha iniciado a construção de casas para famílias pobres, que já tinha as fundações, mas que precisava de dinheiro para todo o resto da construção. Até aí tudo bem, porque era obra altamente meritória. Só que, no arrazoado argumentativo, o padre David adiantava que, se não contribuíssemos, o projeto não avançaria, pelo que a responsabilidade de um eventual insucesso ficava exclusivamente nas nossas mãos. Eu era criança e esta pressão pouco subliminar, que vinha embrulhada numa linguagem religiosa que prenunciava retaliações divinas para quem se mostrasse relutante a cooperar, impressionou-me então muito. E sempre me interroguei por que diabo havíamos nós de ficar com o odioso da obra incompleta, só porque o padre David haviam colocado o carro à frente dos bois. Com as melhores intenções do mundo, o qual, como é sabido, está cheio delas.

O nosso homem - em lugar de se sentir elogiado com a equiparação ao generoso padre... - ficou furioso, disse que se ia queixar de mim, saindo pela porta fora. Se o fez ou não, não sei. Nunca ninguém me disse nada, tendo eu cumprido a promessa de relatar, por escrito e com gozo, o episódio. Desde então, nunca mais o encontrei. Terão feito a obra?

Ontem, cumprindo um desejo há muito alimentado, fui a Ruílhe, ver a obra do Padre David, figura justamente venerada por lá. As tais casas para pobres ainda hoje lá estão, hoje um pouco descaraterizadas pelos novos proprietários, misturadas com outras - como se vê na imagem, onde surge o busto do empreendedor sacerdote. Finalmente - algum dia havia de ser - encontrei-me com a minha metáfora...

sábado, abril 13, 2019

Braga


Braga é uma cidade que está na origem de várias expressões. Creio que nenhuma outra localidade portuguesa terá tantas. Mas qual será a origem delas? Vejamos.

Ver Braga por um canudo”, isto é, acabar por perder as oportunidades, um pouco como “ficar a ver navios”. Parece ter origem no monóculo existente no Bom Jesus, através do qual se vê a cidade, mas à distância.

Ir abaixo de Braga”, que é como “ir à fava” ou ainda a lugar pior. Dever-se-á ao facto de, para uma zona então mais baixa do que o centro da cidade, escoarem no passado os lixos e dejetos urbanos, tornando empestado e desagradável o lugar.

É de Braga!”, diz-se de alguém que deixa as portas abertas atrás de si. A doutrina aqui divide-se. Há quem diga que tal se deve ao facto da cidade, contrariamente a outras, não ter tido nunca uma porta física na sua entrada principal, a Porta Nova, outros dizem ser uma expressão papal à chegada de um arcebispo a Roma.

Isso é mais velho do que a Sé de Braga!”, significa que é muito antigo, porque a sé, na cidade, é dos edifícios construídos há mais tempo.

Finalmente, o leitor já ouviu dizer “chove em Braga”? Não? Mas olhe que, embora não muito, está mesmo a chover em Braga!

Os contabilistas


Há estadistas e há contabilistas. Paulo Guedes, ministro da Fazenda do Brasil, parece estar a alimentar a ideia de vender algumas embaixadas daquele que ainda é considerado um dos mais prestigiados serviços diplomáticos do mundo. 

Não se trata de uma atitude inédita. Na história política portuguesa contemporânea, também tivemos algumas luminárias que pretenderam desfazer-se de alguns dos mais importantes edifícios que o Estado, desde há muito, possui. Passá-los “a patacos” reduziria pontualmente uns centésimos de dívida, mas privaria o país de um património dificilmente recuperável no futuro. Além de que faria com que o país perdesse definitivamente valores que só se reforçam com o tempo e cuja posse é um fator de prestígio a que só essas simplórias figuras não são sensíveis. 

Por uma sorte de que felizmente nos podemos felicitar, os prédios de Belgrave Square, da rue de Noisiel e um dos belos edifícios que Portugal possui em Roma não foram, numa certa fase, “à vida”. Até o próprio Palácio das Necessidades, segundo vim há tempos a saber, correu sérios riscos! 

Em tempos mais recentes, dois secretários do Estado (a que isto chegou) conseguiram mesmo o feito de delapidar algum património. Um deles conseguiu dar cabo do fantástico apartamento que existia no Dakota Building, em Nova Iorque. Outro, com toques de Torquemada, levou à prática, na Europa, algumas patifarias de idêntico jaez. Este último, um dia, na casa de um diplomata, olhou as estantes e perguntou: “para que é que você quer tanto livro?”. O nosso colega, amável, deu-lhe uma resposta educada. Foi pena. 

É isso: às vezes, lá pela nossa (no meu caso, antiga) casa, passam uns contabilistas, trevestidos de estadistas.

sexta-feira, abril 12, 2019

Mário Vilalva


Há algumas semanas, li nos jornais a notícia da nomeação de Mário Vilalva para dirigir a Apex Brasil, a agência de promoção económica brasileira. 

O Mário é um amigo de há muito. Os portugueses, país onde de tornou “one of us”, conhecem-no como uma dos mais brilhantes embaixadores que o Itamaraty por cá alguma vez colocou. Com a sua competência profissional e simpatia, o Mário e a Vânia conferiram uma centralidade rara à embaixada brasileira em Lisboa. Um dia, acabado o seu tempo, como por aqui assinalei, foram destacados para Berlim, um posto maior e prestigiante, em qualquer carreira diplomática.

Eu havia cruzado bastante o Mário Vilalva em Brasília, ao tempo em que ele dirigia o departamento de promoção comercial do Ministério das Relações Exteriores, num período que foi de grande dinamismo, que o levou a ser um “globetrotter” profissional, até com custos para a saúde. Dali saiu para a embaixada brasileira no Chile, com Lisboa como destino posterior de uma carreira brilhante.

Volto agora onde comecei. O Mário aceitou - e dificilmente haveria alguém tão bem qualificado para o fazer - dirigir a Apex, naquela que foi uma das raras nomeações consensuais do governo Bolsonaro. A imprensa brasileira foi unânime sobre o acerto dessa escolha. Mas, como diria Camões sobre a sina da bela Inês, afinal tratava-se de um “engano da alma, ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito”. Há dias, depois de apenas algumas escassas semanas de exercício de funções, o Mário foi afastado da Apex. Leiam este artigo da cada vez mais indispensável “Piauí” para perceber melhor o que se passou.

Caro Mário, sei que represento alguns dos seus muitos amigos portugueses ao enviar-lhe, por esta via, um abraço de ânimo e de muita admiração.

quinta-feira, abril 11, 2019

A toalha

Decidi que, nesse dia, a embaixada não faria (ainda) qualquer declaração à imprensa, que nos batia aos telefones. Não obstante a insistência de um canal de televisão, disse estar indisponível para ir em direto à sua edição da noite, como fizera, por duas vezes, em semanas anteriores, em outros canais. Não sabia (ainda) o que dizer. Era o dia seguinte ao pedido de ajuda de Portugal. Foi há oito anos.

É talvez cedo para se saber como os outros embaixadores portugueses, nas principais capitais, viveram essas dramáticas semanas. No meu caso, em Paris, acompanhava, dia após dia, as diligências que Lisboa ia anunciando, para tentar escapar ao pedido de ajuda externa. As coisas tinham, em absoluto, deixado de passar por nós: os contactos relevantes faziam-se entre os gabinetes dos chefes de governo. Por algum tempo, cabia-nos tentar explicar a posição oficial, alheios que tínhamos de ser à tensão política que se vivia em Lisboa – os dissídios em torno do PEC IV, com o Presidente da República pelo meio.

Com o passar dos dias, ficava claro que as coisas se aceleravam. Era o tempo da coreografia declinante de Portugal na mão das agências de notação, o crescente “downgrading” da nossa dívida soberana, o disparar do “spread” dos nossos “bonds” a 10 anos. Tudo isso, com angústia, eu acompanhava, pelas manhãs, ao abrir o Financial Times.

Nessas semanas, passara a ser chamado a falar a rádios e, um pouco menos, em televisões. Nunca antes, como embaixador em Paris, me fora dada tanta “atenção”, embora neste caso não pelas melhores razões. Sem dificuldade, publicava os artigos que quisesse na imprensa francesa. A minha “narrativa” era sempre a mesma: defesa dos índices favoráveis conhecidos, denúncia do “exagero” das avaliações das agências de rating, afirmação de que ainda era possível dispensar a ajuda externa. Era a diplomacia na hora, sem rede. Como dizem os americanos: “my country, right or wrong.”

A partir de certa altura, Lisboa, como fonte de instruções, foi-se evanescendo. Telefonava a colegas portugueses noutros postos e todos comungavam do mesmo desconhecimento. Para além das declarações públicas, nada mais transpirava. Os escassos responsáveis políticos portugueses que consegui contactar também já não sabiam como ajudar. Representar um país por pressentimento é muito difícil.

Por aqueles dias do fim, senti uma estranha solidão e, em especial, a angústia de não saber o que fazer (ou se devia fazer algo), como representante de Portugal junto de um dos mais importantes países do mundo. Alguém costuma dizer que não há boa política externa sem boa política interna. Quando esta última se fragiliza a nossa capacidade de interlocução desaparece, de um dia para o outro. Foi o caso.

Recordarei para sempre uma conversa com um alto responsável do Eliseu, que, tendo-me chamado, teve a sensibilidade de não me inquirir para além daquilo que ele sabia que eu podia dizer (e saber), mas que me deixou palavras de discreto conforto, sem, contudo, as fazer soar de forma paternalista.

Depois, a toalha caiu no ringue. E o discurso mudou. É assim a vida de um diplomata, em democracia.

O poder da China

O "red carpet treatment" dado a Putin por Xi Jiping, depois da visita que fez à Sérvia e Hungria, parece ser um sinal claro, e def...