sábado, abril 20, 2019

A democratura


Na aproximação das eleições para o Parlamento Europeu, o Partido Popular Europeu suspendeu o Fidesz, o partido do líder húngaro, Viktor Orbán. embaraçado por algumas das suas práticas políticas. Para alguns, a Hungria é já hoje uma espécie de “democratura”, isto é, uma democracia com fortes laivos de ditadura. 

Deixo aqui uma história pessoal, envolvendo Orbán.

Estávamos em março de 1999. Como membro do governo português, eu acompanhava o presidente Jorge Sampaio em visita de Estado à Hungria, país candidato à União Europeia (entraria em 2004), a convite do seu homólogo Árpád Göncz. 

Por esses dias, estavam iminentes os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que ainda nesse ano iria integrar a NATO. 

Em Budapeste, eu havia acompanhado Jorge Sampaio num encontro com o já então primeiro-ministro Viktor Orbán. A conversa não foi fácil, quando, a pedido de Jorge Sampaio, fiz referência a alguns dos passos institucionais que a UE exigia à Hungria e que esta resista a fazer. Orbán mostrava-se frio, tenso, desagradável mesmo. A certa altura, a propósito dos possíveis bombardeamentos da NATO, falou da sua preocupação com as populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia. Eu disse perceber a sua inquietação, mas reagi ao seu bizarro conceito de “futuras populações NATO" com que qualificou esses sérvios, lembrando que a ditadura portuguesa tentara, sem o menor sucesso, utilizar um similar conceito extensivo para os habitantes das colónias africanas em guerra. Orbán lançou-me um olhar duro e a conversa, que já não estava amável, não melhorou.

À noite, Árpád Göncz ofereceu um jantar a Sampaio no majestoso parlamento húngaro. Sabia-se que as relações entre Göncz e Orbán não eram nada fáceis, por razões de política interna, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política. Por contraste com Orbán, o presidente era uma figura suave, um homem de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. 

A certa altura, na varanda do parlamento, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Göncz morreu em 2015. Órban, depois de ter estado afastado do poder, é, de novo, desde 2010, primeiro-ministro. O que se tem passado nos últimos anos na Hungria, em matéria de abusos que infringem as liberdades fundamentais, as regras do Estado de direito e o respeito pela separação de poderes, envergonha a Europa.

(Artigo publicado em 18.4.19 no “Jornal Económico”)

11 comentários:

Os que estão a fazere tijolo dizem que bossa senhoria benceu.... disse...

ofereceu a sampaio é uma frase que revela as nomenklaturas das democraturas mundiais

alvaro silva disse...

Isto é que é democracia (Á Mário Soares). Isto é:
Se sou eu (Mário Soares) a governar é só democracia. Se são outros que não eu (Mário Soares) isto é uma ditadura ou coisa parecida.
Afinal quem é eleito pelo povo não representa nada?

Cícero Catilinária disse...

Pedindo desculpa de meter a foice em seara alheia, sr. Álvaro Silva, diga-me lá o que é que o cú tem a ver com as calças, ou seja, o que é que Mário Soares tem a ver com o assunto, para ser para aqui chamado?

Anónimo disse...

Acredito que a UE não queira tomar medidas mais drásticas enquanto não resolver o Brexit.

Augie Cardoso, Plymouth, Conn. disse...

Partidocracia. JAcobina,
Nao funciona. Franca dos coletes amarelos, exemplo número dois. Com excessao da Suissa e Inglaterra e ASSIM POR TODA A EUROPA.

Feliz e Santa Pascoa para o Sr. Embaixador e leitores e familias.

alvaro silva disse...

Caro Cícero. Está perfeitamente desmemoriado. era a forma do sr fazer política, democracia era ele e os seus, quando se dava a viradeira e passava á oposição, deixava de "haver democracia", na opinião dele claro. A última vez foi a prisão "política" do camarada nº 44 da cadeia de Evora Lembra-me de o ver na televisão bramar contra a ditadura que prendia tão "honesto democrata" Era dos dele!

Cícero Catilinária disse...

Sr. Álvaro Silva, «prisão "política"», na minha modesta opinião, a única frase certa que consta no seu comentário. Quanto ao resto, e para terminar, friso, penso que vai por aí uma grande confusão acerca do que é a democracia, e algum desagrado em relação à figura impar desse grande homem, político e democrata, sim, democrata, que foi Mário Soares. Às vezes, as saudades do "passado" pregam-nos partidas assim.
I rest my case.
ps- Quanto à minha memória vai bem, muito bem mesmo, mas obrigado pela preocupação.

Anónimo disse...

Sampaio, o choroso.....

carlos cardoso disse...

Julgo que em português devia escrever-se democradura.
Democratura parece-me um galicismo (ou será um anglicismo?)

Anónimo disse...

Quando vejo pessoas escreverem "cú" (com acento), pergunto-me, sempre, se será para imitar a pronúncia micaelense.

Anónimo disse...

E Portugal? Será uma demofamiliar ou familicratura?

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