terça-feira, abril 23, 2019

António


- Então? Que achaste do tipo?

- Tem uma bela figura! E uma presença muito forte! 

O António Alves Martins tinha ido ao aeroporto, para assistir à chegada de Álvaro Cunhal, nesse dia 30 de abril de 1974. Achara graça testemunhar o fim do exílio do mítico líder comunista e, pelos vistos, vinha impressionado, descrevendo-me a cena de Cunhal sobre o carro de combate, naquele “remake” luso da chegada de Lenine à estação da Finlândia, em Petrogrado, que o emergente PCP nesse dia encenou com estilo. 

Tinha-me desafiado para ir com ele, mas, por uma qualquer razão, deixei-me ficar nos estúdios da RTP, onde, como militares da EPAM - a Escola Prática de Administração Militar, unidade que ocupara a televisão, na noite da Revolução - ambos passávamos então os dias e parte das noites.

O António não tinha grande simpatia pelo PCP. Mas não quis perder esse encontro com a História. Seria, aliás, fundador e um dos primeiros militantes do MES, o Movimento da Esquerda Socialista, onde me levou numa noite de maio, ainda na sede do edifício de esquina com a Calçada da Estrela, para me apresentar ao Afonso de Barros.

Tinhamo-nos conhecido na EPAM, em 1973. E ficámos logo amigos. Ligavam-nos alguns interesses comuns, ele ainda trazia Paris, onde estudara, no sangue e na memória afetiva recente. Fizemos juntos o 25 de abril (fomos, aliás, os dois únicos oficiais milicianos envolvidos na cena da detenção do comandante da unidade, nessa manhã). Eu, entretanto, saí para a Comissão de Extinção da PIDE e, depois, para a assessoria da Junta de Salvação Nacional. Voltámos a encontrar-nos, meses mais tarde, na 2ª Divisão do EMGFA, para onde fui chamado a trabalhar, por indicação dele. Na sequência do 11 de março, fizémos parte do escasso grupo que saiu do EMGFA para criar o SDCI. 

Depois, um dia desse ano politicamente inesquecível de 1975, a tropa acabou para nós. Eu entrei para as Necessidades e o António passou a dar aulas no então ISEG. Fomo-nos vendo mais a espaços, ele sempre com uma cordialidade carinhosa (que derretia as “piquenas”, terreno onde era imbatível!) e a sua simpatia transbordante e irradiante. Nos seus 50 anos, no antigo “Saddle Room”, fizemos uma festança memorável, creio que em 1996. Ainda nos abraçámos no jantar comemorativo dos 20 anos do fim do MES, no Pavilhão de Portugal, em 2001. Foi a última vez que o vi. Depois, por muito que eu tentasse, com outros amigos, numa consegui romper o mundo recolhido em que a depressão o mergulhou. 

O António Alves Martins morreu ontem. Hoje, terça-feira, pelas 18:30 h, o seu corpo estará na igreja de S. João de Deus. Vou lembrar-me muito do António, neste 25 de Abril.

3 comentários:

Alexandre Gomes disse...

Estou triste, realmente muito triste!
Em meados nos anos 90, na minha primeira semana de caloiro no ISEG, iniciei-me no exercício das tradicionais actividades estudantis (cartas e cerveja) no "bar dos alunos". Sendo um espaço "reservado" reparávamos nos poucos professores (contavam-se pelos dedos da mão) que frequentavam o tal "mítico" Tarântula. Destoavam notoriamente, pela idade e comportamento moderado, dos alunos, mas um deles destacava-se dos demais; era um personagem que, volta e meia, aparecia envergando um esplendoroso fato rosa-escuro (quase roxo), de 3 peças, com calças boca-de-sino emparelhadas com botas brancas, de ponta afilada.
Entrava no bar com trejeitos de Travolta, piscando o olho ou acenando para uns e outros e emanando uma intrigante confiança (era um bom actor, descobri depois). Recordo de ter perguntando "quem é o ET?"

O ET era o meu novo professor de "Cálculo Financeiro", como descobri poucas horas depois; um dos meus melhores mestres e, sem qualquer dúvida, o professor mais incrível (na acepção etimológica da palavra) que já me moldou.

Alexandre Gomes disse...

Recordo perfeitamente a primeira aula. Tirou o casaco, puxou de um cigarro e escreveu o nome no quadro negro: "António Alves Martins". Logo abaixo escreveu uma morada e um número de telemóvel (novidade que, na época, era ainda rara). Em seguida declarou "podem visitar-me quando entenderem..., mas não depois das 2 da manhã"! Sentiu-se uma onda de incredulidade a percorrer a sala. Olhávamos todos uns para os outros, como que em busca de auxílio ou coragem. "WFT?" (expressão anacrónica).

Foi acendendo cigarros em sucessão contínua, usando a beata do anterior. Depois de meia-hora, e de uma boa dezena de cigarros, em que nos foi explicando como iam ser as aulas, perguntou "não se importam que eu fume, pois não?". Não me recordo de ninguém ter respondido!

Estávamos todos atónitos! Nessa primeira semana de aulas tinha ficado assustado com o formalismo e distanciamento dos professores (honra feita a algumas excepções, de quem também tenho saudades; Martins Barata e José Pereirinha; que, aliás, viram em mim qualidades, para um eventual "economista" que manifestamente não tinha...e que o tempo atesta). Agora aparecia esta "gajo" a insistir para ser chamado de António!

As semanas seguintes foram ainda mais "anormais". Recebemos aulas de cinema (em especial francês - o António, penso, tinha uma ligação qualquer com a cinemateca e era um francófilo), filosofia, mitologia, história da arte ou política. Melhor; "Política" (capitalizada); num ISEG doutrinário e ideológico onde se logo percebia (em tantas cadeiras) de que "lado" vinham os docentes, o António sempre explicou que cada história, e estórias, tem sempre 3 lados. O nosso, o deles e, se tivermos paciência, tempo, perseverança e sorte...a verdade. Fugidia e, muitas vezes, intangível!

Era obviamente louco! Um genial louco! Um admirável e adorável louco. Louco porque a sua visão da realidade era diferente da norma. Era uma daquelas criações que a Natureza projecta à laia de compensação para mediocridade das massas.

Um dia disse-nos que tinha apresentado "ao Romão" (Presidente do Conselho Directivo à época) um projecto para "pegar numa turma no primeiro ano e acompanhar os 4 anos do curso" (na altura, pré-Bolonha)..."em todas as cadeiras"! "Pela cara do homem, julgo que ficou entusiasmado com a ideia!". Como não gostar dele!?
Não havia, objectivamente, a menor possibilidade de sucesso da iniciativa, caso contrário eu voluntariar-me-ia! Mas era uma coisa típica dele. Que experiência deveria ter sido!

Com o passar do tempo a turma foi ficando inquieta. Vários colegas falavam em apresentar queixa, que o Professor não dava a matéria, que íamos ser prejudicados. A situação ficou ainda mais extremada quando faltou durante algum tempo. Quando regressou falou-nos das "férias no Júlio de Matos". Não soube reagir, não soubemos!
Alguns alunos, depois destes episódios, deixaram de ir às aulas e pediram permissão para acompanhar a cadeira noutras turmas, com outros professores. Temi que a situação escalasse, tinha os mesmos medos que os outros, mas era demasiado divertido, excitante e excepcional para deixar de ir às aulas dele. Contudo, acompanhado por um colega. decidi falar com ele; expliquei-lhe a preocupação geral (e pessoal) e os efeitos nefastos já existentes. "Pois faz todo o sentido, nem me tinha apercebido...estamos a um mês das provas não é? Já sei....peça aos seus colegas para irem todos na próxima aula!".

Foi a custo que os convenci (penso que ainda houve um ou outro que falhei)! o Professor fez um discurso que ocupou (na verdade; extravasou) toda a aula. Explicou a sua visão de ensino. Gloriosa! Terminou, já com o professor da cadeira seguinte pacientemente à espera, e sem que ninguém arredasse pé, com uma promessa "ninguém vai chumbar!".

Alexandre Gomes disse...

Houve várias "interpretações" da jura. A maior parte via na mesma uma eventual "contrapartida" pelo silêncio ou pelo tipo de aulas tidas. Nessas poucas semanas focou-se em "Cálculo Financeiro" (a matemática dos burros, segundo a sua definição!). Era efectivamente simples, mesmo básico. Não foi logo percepcionado que era simples porque o António fazia com que fosse simples.
Acabaram as aulas e foi marcada uma aula de dúvidas extra. Mais uma bomba; "malta - era assim que nos chamava - os meus colegas não me deixam participar na elaboração da prova". Lá se foi a teoria das "abébias", deve ter sido o pensamento geral. Foi o meu!
"Mas - continuou - os tipos são pouco imaginativos. Deve sair isto e isto, mais aquilo e aquilo. Isto dá para o 14/15. Para a malta que gosta de orais (silêncio provocador, ele tinha esse sentido de humor) então tem de estudar mais isto e aquilo".
A nossa turma teve as notas mais altas, zero chumbos!

A explicação mais prosaica era que nos mentiu, que a prova tinha o dedo dele. Não acredito. Nunca antes o fez! Sempre foi de uma franqueza arrebatadora e desarmante. Por vezes brutal!
Um dia apanhou-me a ver a pauta à procura de uma nota (sei lá de quê)....esperou atrás de mim, literalmente fazendo palhaçadas. "Então, que tiraste?". Já não me lembro, mas sei que era boazinha e, meio na brincadeira, disse-lhe "dê cá um abraço". Ainda hoje sinto culpa; passei a ser eu o palhaço, num abraço meio galhofeiro,...ele deu-me um abraço sincero. Disparou "espero que vás fazer melhoria dessa merda, isso é trivial pá"!
"Mas porquê iria fazer melhoria de nota disto?" atirei; "Filho - outra expressão que usava muito -, vais fazer melhoria de nota pela mesma razão que os cães lambem os próprios tomates. Porque podem"!

Estou noutra experiência universitária. Um colega perguntou-me porquê eu ia fazer certa melhoria...não lhe dei a resposta do António, duvido que a entendesse, mas faz fez-me recordar o mestre. Procurei na net e acabei por encontrar este blog. Estou triste. Não posso dizer que o fim me tenha surpreendido. Havia algo que me dizia que era provável algo assim. Um fim indigno e triste. Imerecido.

Era incompreendido, pela maior parte dos alunos, pelos colegas, pelo ISEG. A instituição criou, penso eu, uma cadeira para o "arrumar". Uma optativa chamada FIEC; Filosofia da Economia. Fazia todo o sentido. Claro que me inscrevi!

Guardo dele só boas recordações (mesmo) e o impacto dele na minha vida é diário. Sem exageros! Ainda recentemente o "Rousseau" dele, agora meu, fruto das mais fabulosas aulas que a imaginação pode alcançar, me meteu em "sarilhos". Não importa; aprendi com o António que, o que os outros pensam de nós, tem a importância que lhe queiramos atribuir.

Tenho muitas saudades professor. Lamento muito o que lhe aconteceu! Foi, é, uma pessoa importante na minha vida!

O novo embaixador americano...

... em Portugal, segundo o Inteligência Artificial.