quarta-feira, setembro 30, 2009

Blake & Mortimer

Para parte de geração portuguesa que teve a infância ou juventude nos anos 50 do século passado (por alguma razão, custa-me sempre escrever a expressão "do século passado"), as aventuras de "Blake et Mortimer", da autoria de Edgar P. Jacobs, são ainda hoje uma recordação muito viva.

Figura importante da excelente escola belga de banda desenhada, de que Hergé é, sem dúvida, o maior expoente, Jacobs abria-nos o mundo através de álbuns de uma fantástica qualidade e fruto de cuidado estudo, que agarravam a nossa imaginação e nos transportavam para cenários muito realistas, às vezes quase plausíveis. Quando vivi em Londres, não resisti a reproduzir os percursos do "Marca Amarela" e do Dr. Septimus e, ao entrar um dia no museu do Cairo, a figura do Professor Grossgrabenstein (que só pode ter sido inspirada, "avant la lettre", no Caetano da Cunha Reis) veio-me logo à memória - este último saído desses dois álbuns sem par que constituem "O Mistério da Grande Pirâmide". E até os Açores passaram pelas histórias de Jacobs, no "Enigma da Atlântida".

A trama jacobiana centra-se sempre numa dupla de amigos, um militar e um cientista, envolvidos na luta eterna, pelo lado do "bem", contra um inimigo permanente, Olrik, que encarna os vários males e que tem uma capacidade de sobrevivência que acaba por nos causar mesmo alguma admiração. As mulheres, confirmando uma misoginia muito própria de um certo período da banda desenhada europeia (mas não, curiosamente, dos "comics" americanos, sendo embora da mesma época), têm sempre um papel escasso nestas tramas, surgindo apenas com algum relevo nos álbuns desenhados pelos seguidores de Jacobs, já após a sua morte.

A que propósito vem esta evocação? Pelo facto de, há dias, ter sido aqui anunciada a iminente publicação de um novo álbum, que vai mobilizar alguns que, como eu, continuam a não perder nenhuma das aventuras de "Blake et Mortimer", mesmo se já escritas pelos seus continuadores. Peço que percebam: trata-se de amigos com quem me "dou" há mais de meio século.

E nada melhor para ilustrar este post do que um extracto do movimentado e tempestuoso "SOS Meteoros", com a parisiense igreja da Madeleine ao fundo.

terça-feira, setembro 29, 2009

Praxes

Acabam de ser anunciadas novas medidas de natureza coerciva para pôr termo às mais degradantes formas de praxe académica - esse modo primário de "integração" que tem vindo a converter-se, progressivamente, num processo cada vez mais violento de humilhação intergeracional.

Aquilo a que a sociedade portuguesa tem vindo a assistir, nas últimas décadas, é à transformação do que era uma prática de conteúdo lúdico, mais ou menos divertido e consentido, num ritual de violência gratuita, muito potenciado pela anormalidade alcoolizada dos seus executores, com requintes de sadismo que chegam a levar a violações, agressões e até a mortes.

Um incompreensível imobilismo colectivo deixa quase sempre impunes os executores dessas práticas, absolvidos por um manto de alegada tradição que mais não é do que um alibi para a discricionariedade e o arbítrio. Veremos se, finalmente, algumas regras de natureza oficial conseguem abrir caminho para obrigar os dirigentes das escolas - os principais responsáveis e os únicos a terem condições de proximidade para poderem actuar - a serem mais rigorosos, menos permissivos e, essencialmente, menos cobardes.

Cunhas

Roman Polanski, o genial realizador de cinema, cometeu um crime de violação, há cerca de três décadas. Foi condenado, com todas as garantias de defesa, a cumprir uma pena de prisão, situação a que se furtou, indo viver para o estrangeiro. Agora, por distracção, foi detido e arrisca-se a ser extraditado para o país que o condenou. Esse país não é nenhuma ditadura onde haja uma desproporção chocante entre a gravidade do crime e a pena que lhe compete: trata-se dos Estados Unidos da América.

Se ele se chamasse Zé do Anzóis e vivesse num subúrbio, nem uma linha seria publicada e, porventura, já estaria a caminho da prisão. Como tem um nome internacional, amigos poderosos e uma corte de admiradores (entre os quais me incluo), correm já por aí abaixo-assinados para isentar o violador do cumprimento da pena. Subscritores que, muito provavelmente, nunca tiveram as suas filhas violadas.

Isto faz-me lembrar, medidas as diferenças de escala, as atribulações por que sempre passa a diplomacia portuguesa quando certos cidadãos nacionais - desde que com bons contactos (artistas, jornalistas ou outros mediáticos "istas") ou ditos de "boas" famílias - se metem em alhadas com a justiça pelo mundo, com a droga como motivo mais comum. Nas horas seguintes, lá chegam aos titulares das embaixadas ou dos consulados, por vezes de instâncias inesperadamente "altas", telefonemas pedindo urgentes intervenções e personalizadas diligências, com vista a tentar safar suas excelências. Tudo isto procurando garantir uma forma de actuação diferente do que aconteceria se se tratasse de um qualquer pobre diabo, sem nome nem amigalhaços influentes, que apenas receberia a protecção consular normal.

Às vezes, há que reconhecer que é difícil resistir a tais pressões, embora, no MNE, como se recordarão, o tempo das "cunhas" já tenha tido melhores e mais mediáticos dias...

segunda-feira, setembro 28, 2009

Nova sociedade

Uma das mais instrutivas experiências para quem, como eu, vive fora de Portugal é deparar com um novo e totalmente desconhecido mundo social-mediático, por vezes indecifrável.

Há umas revistas, que começam logo a ser-nos "servidas" nos aviões, onde somos abalados (e aqui invento nomes, claro) por títulos desta estirpe: "Mónica Leal encontra um novo amor com Ricardo Teles, depois da separação de Miguel Dias". Ou então: "Gravidez de Isabel Damas interrompe a sua carreira, reforçando a ligação com Telmo Soares". Os cenários de fundo variam, com as festas a dominarem no Verão, discotecas ou ambientes familiares sempre, algumas fotos de paparazzi paroquiais à mistura, mas as mais das vezes com poses consentidas e aparentemente procuradas.

Todas estas excitantes revelações são acompanhadas de imagens ilustrativas, embora os respectivos textos considerem quase sempre dispensável, por óbvia desnecessidade de que só alguns ignaros reclamam, dar-nos mais elementos sobre quem são, na realidade da vida, tais figuras. Às vezes, lá se consegue, pelo cruzamento de algumas escassas referências, perceber o que fazem as personalidades dessa nova sociedade: quase sempre moda e televisão, com alguns jogadores de futebol à mistura. E, de quando em vez, há pelo meio uns empresários de camisa aberta até ao terceiro botão.

Podem crer que, para um diplomata, é angustiante: ter a percepção de não conhecer um tão importante sector do país que representa!

TAP

Tenho o maior respeito pelas greves e pelo direito de cada um poder fazê-las, quando muito bem entende e pelas razões que acha oportunas.

Gosto, no entanto, de perceber a racionalidade das reivindicações e, devo confessar, isso para mim não foi nada evidente na recente paralização dos pilotos da TAP. Agravar o défice de uma companhia aérea, que está num difícil processo de recuperação, parece-me uma atitude masoquista e quase suicidária.

Mas devo ser eu que estou a ver mal as coisas. Eu e a totalidade dos funcionários da companhia com quem falei numa deslocação a Lisboa no último fim de semana.

À distância

Será inevitável? Não sei, mas lá que é profundamente irritante ver o "Le Monde" tratar nas suas colunas as eleições em Portugal pela pena do seu correspondente em Madrid, lá isso é! Parece que voltamos ao tempo do Estado Novo, quando era isso que acontecia.

Por que não fazer os artigos na redacção, em Paris, com base nos "takes" das agências? De Madrid vê-se melhor Lisboa?

sábado, setembro 26, 2009

Reflexão

É obra!

Este blogue chega à véspera das eleições legislativas em Portugal com um orgulho que não pode disfarçar.

Nos últimos meses, a política encheu a esmagadora maioria da "blogosfera" portuguesa. O acentuar do debate interpartidário, no caminho para as eleições europeias e, mais recentemente, na aproximaçao da dupla jornada de eleições legislativas e autárquicas que aí vêm, deu alento aos espaços informáticos que trataram esse mesmo tema, de forma mais ou menos "engajada", mas sempre tendo-o no centro das suas atenções. Por isso, muitos blogues portugueses, muitas vezes colectivos, reflectem uma elevadíssima frequência diária de visitantes-leitores, a qual, manifestamente, representa também o interesse que a vida política tem suscitado entre nós. O que não deixa de ser saudável e traduz mesmo um sintoma de uma forte vitalidade cívica.

Mas, então, porquê o orgulho que este nosso blogue ostenta? Porque, não obstante, pelas razões que são óbvias, nos furtarmos a colar a nossa escrita às temáticas da polémica política, e tratando-se ademais de um blogue com um único autor, foi-nos possível manter uma muito apreciável "clientela" de fiéis leitores. E isso, indiscutivelmente, é obra - essencialmente dos nossos leitores, claro! O que prova essa coisa tão simples de que há mais vida para além da política.

sexta-feira, setembro 25, 2009

Voto

Este fim de semana, por óbvias e cívicas razões, este blogue regressa a serviços mínimos, embora sempre regulares.

A actualização dos comentários sofrerá, contudo, algum atraso.

2ª feira, cá estaremos. É que a vida continua, sabem?

Chiado

A disparidade dos padrões culturais tem consequências curiosas, embora nem sempre cómodas.

Precisamente há uma semana, no Chiado, decidi engraxar os sapatos. Era uma bela tarde e, aí durante dez minutos, lá estive a ler o jornal, num engraxador que costuma parar em frente à Bénard. Na altura, lembrei-me - juro! - do poema do O'Neill: "O senhor engenheiro hoje não engraxa? Engraxo na Baixa".

A meio da função, levantei os olhos e reparei que um grupo de turistas estrangeiros fotografava a cena, de vários ângulos, com uma curiosidade quase antropológica. Senti-me uma espécie rara. Quem sabe se, entretanto, não apareci já nalguma publicação nórdica, a ilustrar o tipicismo da vida lisboeta.

Já agora, espero que algum dos fotógrafos tenha tomado um ângulo mais alargado e fixado o nome da casa comercial ao lado da qual estávamos: "Paris em Lisboa"...

quinta-feira, setembro 24, 2009

Irlanda

O meu próximo 5 de Outubro inicia-se com um pequeno-almoço de debate sobre os resultados do referendo irlandês, para o qual fui gentilmente convidado pelo actual Secretário de Estado dos Assuntos Europeus francês, também com a presença de um seu antecessor e meu antigo contraparte, Pierre Moscovici. Devo dizer, aqui entre nós, que considero uma verdadeira tragédia civilizacional o facto desta prática americana dos pequenos-almoços de trabalho ter já "pegado" por aqui. Mas, enfim...

Se lhes contar que, ao final da tarde desse dia, terei ainda, na Embaixada da Suécia, uma mesa-redonda sobre os desafios da Presidência sueca da União Europeia, já perceberão melhor o glorioso destino do meu feriado republicano. O que nós fazemos pela Europa!

Deixo-lhes na foto a imaginativa bandeira do convite para o debate matinal, uma espécie de "wishful thinking" pelo sucesso do Tratado de Lisboa.

Rios

O tema do Festival de Loire, de que Portugal é este ano convidado de honra, foi a comparação de culturas de regiões com rios. Ontem, em Orléans, o rio Loire aproximou-se do Douro, da ria da Aveiro e do Tejo. Algo insólito foi ver o Loire percorrido por barcos rabelos, por moliceiros e por canoas lisboetas, com sons do nosso folclore a encherem as ruas da cidade e a Radio Arc-en-Ciel / Rádio Arco-Íris a espalhar horas de boa música portuguesa.

Cada vez mais, as municipalidades francesas, conscientes da crescente importância da comunidade portuguesa e luso-descendente, têm iniciativas que mobilizam a sua ligação a regiões do nosso país, acordando lentamente para uma realidade que, infelizmente, ainda é por aqui muito desconhecida ou tocada de forma caricatural.

Ontem, no jantar português que o "maire" de Orléans nos ofereceu, pude constatar que a esmagadora maioria dos presentes nunca se tinham deslocado a Portugal, embora mantivessem alguma curiosidade por esse país quase vizinho, de onde lhes chega gente séria e trabalhadora, com que se cruzam nas ruas e no trabalho, mas do qual quase só conhecem o vinho do Porto e onde sabem que se canta uma coisa nostálgica que é o fado.

Portugal está tão perto mas ainda tão longe de França!

Greve

Hoje, os funcionários administrativos da Embaixada estão em greve, por razões laborais que se prendem com a legítima leitura que fazem da defesa dos seus direitos.

Há algumas "vantagens" colaterais desta greve: o silêncio impera nos corredores, os telefones ouvem-se menos e eu próprio, na deslocação para uma entrevista, aprendi finalmente a conduzir no complexo percurso entre a Embaixada e a Rádio Alfa, em Créteil. Tudo tem o seu lado positivo.

quarta-feira, setembro 23, 2009

Asilo Político

A propósito do refúgio que o presidente hondurenho obteve na Embaixada brasileira em Tegucigalpa, lembrei-me de uma pequena história.

Há alguns uns anos, num final de manhã, o ministro-conselheiro entrou no meu gabinete, em Brasília, com um ar esbaforido: "Temos aqui na Embaixada um homem a pedir asilo político!". Era 6ª feira, dia em que a Embaixada fechava um pouco mais cedo. Muitos funcionários já tinham mesmo saído.

Uma asilado político é uma "dor-de-cabeça" tradicional na diplomacia. Cada caso é um caso e a doutrina que se desenvolve sobre o assunto situa-se sempre numa margem de grande ambiguidade.

De que se tratava? Um cidadão brasileiro, oriundo de uma localidade a algumas centenas de quilómetros de Brasília, surgira na secção consular da Embaixada, transportando uma grande mala que alguma incúria deixara entrar sem questionar, e afirmara que estava a ser perseguido politicamente pelas autoridades brasileiras, que estava na iminência de ser detido e que, por essa razão, vinha pedir asilo político. Um problema adicional era a mala: segundo disse, ela tinha uma bomba que faria explodir, no caso da sua reivindicação não ser aceite.

Nestas ocasiões, nunca sabemos, à partida, se estamos perante um simples "bluff" ou uma coisa mais séria, obrigando o sentido de responsabilidade a começarmos por considerar a segunda opção. Pedi a um funcionário experiente para ser o único interlocutor do homem e mandei reduzir ao mínimo o pessoal, mantendo-se um total "black-out" para fora da Embaixada sobre o incidente. O homem, desde o primeiro momento, deu sinais de algum desequilíbrio psicológico - factor com que era importante contar mas que não ajudava a nos sossegar. Ao que disse, embora sempre de forma muito confusa, seria amigo de uma personagem política de segunda linha, envolvida num recente escândalo, sentindo-se perseguido e sob ameaça iminente.

Foi-lhe explicado, com muita calma, que o Brasil era um país livre, uma sólida democracia, onde "quem não deve não teme" e onde cada cidadão tem hoje todos os meios possíveis - da comunicação social à Justiça - para assegurar a preservação e defesa dos seus direitos, em especial políticos. No Brasil, há muito que não há presos políticos, pelo que um ambiente de perseguição sem fundamento não era plausível. E que, por essa e por outras razões ligadas à inexistência de um enquadramento jurídico bilateral na matéria, não era possível conceder-lhe asilo.

O homem manteve-se renitente e obstinado, por algumas horas. A certo ponto das conversas que mantinha com o seu interlocutor, mencionou o nome de um deputado brasileiro local, de quem seria conhecido. Telefonei de imediato ao político que me esclareceu que estávamos perante uma pessoa muito desequilibrada, embora pacífica e totalmente inofensiva, de uma profunda religiosidade. Pedi-lhe para falar com o nosso homem, para o acalmar, o que simpaticamente fez.

Entretanto, a questão da religiosidade do homem fez-nos alguma luz! O interlocutor do putativo "asilado", percebendo já o respectivo cansaço, perguntou-lhe, a certo passo, se, em face da sua fé, não quereria aconselhar-se com um sacerdote. O nosso homem hesitou um pouco, mas, ao fim de algumas persuasivas insistências, acabou por dizer que aceitava essa hipótese.

E é aí que as "artes" diplomáticas vêm ao de cima. Num edifício situado a pouco mais de cem metros da Embaixada fica a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Foi-lhe explicado que, mais do que um simples sacerdote, poderia até falar com um bispo! Este "upgrading" religioso pareceu agradar-lhe. Sugerimos ao homem que fosse até lá, que reflectisse com a ajuda dos "bispos" (não fazíamos a mínima ideia se estava por lá algum bispo...) e que, depois, "voltasse para nos dizer alguma coisa". Surpreendentemente, aceitou. Enviei um carro da Embaixada, com o seu interlocutor a acompanhar, levá-lo à porta da CNBB. Pelo caminho, confessou que a mala não tinha nenhuma bomba, que continha apenas roupa...

Não sei pormenores do que aconteceu na conversa do nosso "refugiado" na CNBB, entidade que avisámos telefonicamente do que ia acontecer e que, pelo sim pelo não, não deveriam deixar entrar a mala que o homem transportava. Vim a saber que acabou por regressar nessa tarde a casa, sem mais problemas.

Foi um susto, embora pequeno, um tipo de incidentes que faz parte da vida diplomática.

terça-feira, setembro 22, 2009

Vartan

Sylvie Vartan apresentou-se no Olympia. Por um segundo, tive a tentação "anos 60" de ir ver, pela primeira vez, quem então cantava o "La plus belle pour aller danser" e enchia as páginas do "Salut les copains", com o seu badaladérrimo romance com Johnny Halliday. Depois, pensei melhor: deixemos o passado onde ele está.

Esta minha reacção prova que "la nostalgie n'est plus ce qu'elle était", para citar as memórias de Simone Signoret.

segunda-feira, setembro 21, 2009

Tempos

Um amigo de Brasília queixava-se-me ontem do tempo. Chovia.

Senti-me solidário: eu também me queixo do tempo. Do que não tenho.

"Libé"

O "Le Figaro" e o "Libération", os principais diários franceses de acompanhamento da vida política, decidiram efectuar reformas gráficas, com vista a tornar a leitura mais fácil ou, para utilizar um bom termo anglo-saxónico, ser mais "reader-friendly". A aposta do "Libération", o "Libé" para os franceses, que tem já mais de uma semana, parece-me bastante melhor que a do "Le Figaro", que hoje se iniciou.

Estas mudanças gráficas recordaram-me uma história divertida, passada num concurso de admissão para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, nos anos 90, de cujo júri eu fazia parte.

Havia então um prova - não sei se, no actual regulamento, ainda existe - chamada "de apresentação", que consistia numa conversa de 20 minutos com cada candidato, e que tinha lugar entre as provas escritas e as orais. Três diplomatas "seniores" faziam parte desse painel, que entabulava uma conversa variada com o candidato, pretendendo saber um pouco dos seus interesses culturais e de vida, ao mesmo tempo que se aferia a sua capacidade de expressão, nomeadamente em línguas estrangeiras (parte da conversa era em francês ou inglês). Confesso que achei sempre essa prova um dos momentos de verdade da admissão à carreira diplomática: dela não se percebia se o candidato seria um bom diplomata, mas deduzia-se imediatamente se ele fosse totalmente não-dotado para a profissão.

Num dos dias, um dos jovens candidatos quis "dar-se ares" e, ao ser perguntado por mim se seguia a política internacional, adiantou, com grande firmeza: "Há vários anos que acompanho a imprensa internacional. Todos os dias leio o 'Libération'". Confesso que fiquei espantado! Se tivesse dito o "Le Monde", o "International Herald Tribune" ou mesmo o "Financial Times", era mais plausível. O "Libération", contudo, era um jornal que chegava a Portugal em quantidade muito limitada e era "obra" tê-lo como de leitura diária. Eu lia-o esporadicamente.

Decidi testar o rapaz: "Isso é muito interessante! Então você lê regularmente o "Libération"?! Nesse caso, talvez me possa dar a sua opinião sobre a reforma gráfica pela qual o jornal passou no último mês. Até deve lembrar-se, com certeza, do editorial da semana passada, no qual o Serge July avaliava esse esforço de auto-reconversão do jornal".

O nosso candidato embatucou, mas apenas por uns instantes. Com jeito e artes para não cair em contradições, lá disse umas coisas que, revelando ter uma vaga ideia do "Libération", demonstraram agilidade de raciocínio e capacidade de improviso. E, por isso, passou.

Há uns anos, encontrei-o num corredor das Necessidades e perguntei-lhe: "Então! Continua a ler o "Libération"?". Ambos demos uma boas gargalhadas. Se ele vê o blogue, este post é-lhe dedicado.

Gatos

A tensão na vida político-partidária portuguesa foi subitamente atenuada pela presença de figuras políticas num programa humorístico dos "Gatos Fedorentos". Aí está a ser possível ver tais personalidades num registo mais solto e descontraído, em que a interlocução com a genialidade de Ricardo Araújo Pereira consegue, muitas vezes, trazer ao de cima algumas dimensões humanas dos entrevistados. Fico com a sensação de que, para a generalidade da opinião pública, essas "entrevistas" têm sido um bálsamo, num ambiente de crispação pré-eleitoral que não tem facilitado a normalidade do seu quotidiano.

Porém, e à revelia do que me parece ser a ideia mais generalizada, pergunto-me se esta "dessacralização" das figuras políticas, com a respectiva recondução a um ambiente de obrigatório humor, não acaba por funcionar em detrimento de uma certa dignidade da política, como se a aceitação desta tivesse necessariamente que passar por uma rendição às versões mais palatáveis da linguagem mediática.

Mas pode ser que eu esteja a ver mal as coisas, concedo.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...