segunda-feira, janeiro 06, 2020

Vaticanologia


Nunca tive grande interesse pelas cenas da vida do Vaticano, pelas suas intrigas e, muito particularmente, pelas confabulações sobre o processo de seleção dos papas. Como ateu, não acreditando, naturalmente, na ideia da intervenção divina a influenciar o sentido do voto cardinalício, olho sempre a escolha de cada chefe de Estado da Santa Sé como uma cuidadosa e ponderada decisão, feita pelo serralho dessa instituição espiritual multinacional, com vista a encontrar o homem mais adequado para ir prolongando, com eficácia, o respetivo sistema. Umas vezes, a escolha vai num sentido, outras vezes noutro, de acordo com “l’air du temps”. Às vezes resulta, outras vezes não.

Escrevo isto com o maior respeito, não apenas pelo papel histórico da instituição, mas igualmente pelos seus fiéis, que se lhe entregam com toda a confiança e fidelidade. Os muitos erros que em nome da Igreja Católica têm sido praticados ao longo dos séculos não devem fazer esquecer - em especial, aos ateus, como eu sempre fui - o património de valores morais e sociais positivos que ela encerra e que formatam as consciências dos povos, muito para além dos seus crentes.

É neste contexto de assumida distância para com aquela realidade que não posso deixar de recomendar o filme “Os dois papas”, que ontem vi na Netflix, com imenso agrado. É uma obra que, sendo claramente apologética e que se pretende simpática para a instituição papal, nos traz uma curiosa versão (porque é de ficção que estamos a falar) da relação entre os dois últimos papas, ao mesmo tempo divertida, bem construída e magistralmente interpretada.

domingo, janeiro 05, 2020

Um grande artista

A enquadrar aquele museu num certo país europeu, situado fora da área urbana, havia um magnífico espaço verde. Sobre ele, espalhavam-se vários objetos artísticos, da mais diversa natureza. O museu, por essa altura, albergava, para além da sua coleção permanente, uma muito rara exposição de um conhecido pintor clássico.

Eu e um outro colega havíamos convencido uma personalidade com quem viajávamos, numa deslocação oficial, da importância de não perdermos a oportunidade de ver reunido o essencial da obra desse grande artista da segunda metade do século XIX. 

Louvando embora a ideia do "détour" que fazíamos, de carro, para visitar a exposição, a figura em causa tinha-nos explicado, ao longo do trejeto, que era muito mais dada à apreciação da arte contemporânea, aos novos modelos criativos, das instalações aos trabalhos em vídeo. 

Às nossas dúvidas e à confissão da dificuldade de, por vezes, sermos sensíveis a algumas dessas ousadas expressões artísticas, essa pessoa contrapunha o seu pensamento cheio de contemporaneidade, com um intenso e esmagante "name-dropping" de criadores. Ao ouvi-la, verificámos que estávamos perante assinalável especialista.

E caminhavamos já para o museu, idos do parque de estacionamento, comentando à distância uma óbvia escultura de Moore, quando eu fiz notar:

- Conhecem os trabalhos de Rooney Kindley? É uma canadiano que está a ter imenso sucesso. É pouco conhecido na Europa, embora já tenha coisas no MoMa. Aquela peça, ali adiante, parece-me dele, disse eu apontando para um modelo de contentor pintado num forte azul, pousado sobre uma plataforma.

- Nunca tinha ouvido falar nele, disse a nossa personalidade. Nas vanguardas alemãs, que conheço melhor, há muito quem se dedique à criação deste género de objetos, como reproduções criativas de elementos extraídos do quotidiano, trabalhando-os na cor e nas vertentes de espaço. Este, aliás, parece-me bastante interessante, pela ligação do equilíbrio volumétrico e dos tons impositivos, que, no seu conjunto, provocam um contraste curioso com a paisagem. Por isso, necessitam, como aqui se consegue, de ter um cenário bastante aberto para a obra poder "respirar", permitindo distâncias para múltiplos ângulos de visualização. Como é que você disse que se chama o artista?

Fiz um sorriso irónico e esclareci:

- Esqueça! É apenas um contentor. Inventei o resto...

Durante o resto da viagem, o nosso homem nunca mais me olhou direito.

Indignações.com

Recebo, com regularidade, mensagens indignadas de leitores, pelo facto de eu não abordar, em intervenções nas redes sociais, situações e temas que a eles os indignaram. No fundo, pede-se que eu partilhe, talvez para as amplificar, as suas indignações. 

Nas últimas horas, fui zurzido, em mensagens no Facebook e em comentários quase insultuosos para o blogue, pelo facto de me deter aqui em “episódios grotescos”, como alguém “ter garrafa” num bar, ou fazer notas gastronómicas e incluir fotografias de iluminações de Natal, passando ao lado do assassinato do general iraniano ordenado por Trump ou das agressões a profissionais de saúde.

Entendamo-nos: isto não é um órgão de comunicação social, é um espaço privado de escrita. Se, de momento, nada tenho a dizer sobre a criança maltratada nas urgências de um hospital privado ou sobre o cidadão cabo-verdeano assassinado em Bragança, isso não significa que não esteja indignado com esses factos. Apenas revela que não tenho nada de relevante a dizer sobre isso e não quero massacrar o leitores com platitudes adjetivadas. 

Escrevo para dizer aquilo que muito bem me apetece, como e quando me apetece. E vou mais longe: só por infeliz acaso o que escrevo coincidirá com os estados de alma de quem por aqui passa o tempo a indignar-se, com tudo e com todos.

sábado, janeiro 04, 2020

Júlio Castro Caldas


Morreu Júlio Castro Caldas, leio nas notícias. 

Já o não via há muito tempo e, em especial, havia notado a sua falta ao almoço em que, há uns tempos, juntei em minha casa aquilo a que chamo o “grupo dos nove e meia“ - essa tertúlia “do bem”, para refletir sobre país, que, sob o estímulo de Miguel Lobo Antunes, reuniu por vários anos, às nove e meia da manhã (não conheço outras tertúlias matutinas), na Culturgest, tendo publicado alguns textos coletivos, ainda consultáveis aqui. O Júlio foi um dos últimos membros a aderir ao grupo, mas a sua participação, num estilo que lhe era muito próprio, era sempre muito informada e animada. Na fotografia dos membros dessa tertúlia, Júlio Castro Caldas é o único que se vê de casaco.

Um dia, numa conferência de imprensa no fim de um Conselho Europeu, nos anos 90, um jornalista perguntou a António Guterres se já tinha nomes para uma remodelação do governo de que toda a gente falava. Guterres disse que nomes não faltavam, se quisesse fazer uma mudança e exibiu um pequeno retângulo de papel com coisas rabiscadas. Eu estava ao seu lado e, quando ele pousou o papel sobre a mesa, saltou-me à vista a sigla JCC. Quando nos íamos a levantar, ousei perguntar-lhe: “Está a pensar no Júlio Castro Caldas?”. Notei que Guterres ficou um tanto surpreendido, e talvez desagradado, com a minha “espionagem” e pouco adiantou. Eu tomei nota da sigla.

A remodelação acabou por ter lugar e Castro Caldas não entrou no governo. Passaram uns meses e, um dia, vi Júlio Castro Caldas assumir o ministério da Defesa, pelo que concluí afinal tinha razão. Foi já com o novo ministro que, tempos mais tarde, me desloquei, em substituição de Jaime Gama, a uma reunião ministerial da União da Europa Ocidental (UEO), creio que em Bruxelas, tendo estabelecido com ele uma excelente relação. Lembro-me, meses depois, de ter estado com o Júlio, a convite de António Guterres, num almoço restrito com Mikhail Gorbachev, em S. Bento. Depois de sair do governo, fui para o estrangeiro, perdemo-nos de vista e só nos voltaríamos a reencontrar nessa tertúlia da Culturgest.

Júlio Castro Caldas era uma figura muito cordial, que rapidamente tratava as pessoas por tu, como comigo sucedeu, desde o primeiro momento. Além de ser um advogado de primeira linha, era um homem que gostava da vida e dos amigos. Tinha sempre histórias magníficas, sabia de factos que ninguém mais sabia, era intenso e definitivo na apreciação das coisas do mundo e da vida. Vida e mundo de que agora se despediu.

Ter garrafa


”Quer a sua garrafa?” perguntou-me ontem o dono do restaurante, quando eu escolhia o que ia almoçar. “Tens garrafa aqui?”, inquiriu um amigo, na minha mesa.

Estávamos em Vila Real. A garrafa era de vinho. Era a metade que tinha ficado do meu almoço do dia anterior, também por ali. A pergunta do meu amigo, contudo, trazia água no bico, comportando uma ironia que se ligava a tempos noturnos antigos, que ele também partilhara, lá por Lisboa.

“Ter garrafa”, há muitos anos, era um estatuto, em alguns bares. As garrafas a que o conceito se referia eram de whisky. Os “habitués” ”tinham garrafa”, com o seu nome manuscrito no rótulo. Compravam-na ao próprio bar, a um preço bastante mais elevado do que o preço do mercado, mas, ainda assim, compensando face ao somatório de todas as doses individuais de uma garrafa.

Mas o importante, nesta história de “ter garrafa”, era o estatuto: “Ó Meireles, passa-me aí a garrafa do senhor engenheiro”, pedia o empregado das mesas ao Meireles ou a qualquer outro Meireles que estivesse por detrás do balcão. Isto era dito em voz bem alta, com o “senhor engenheiro”, cujo nome nem sequer necessitava de ser explicitado, a ser o alvo dos olhares circundantes. Por essa simples frase, ficava-se a perceber que o “senhor engenheiro” era um cliente regular da casa, porque só esses podiam “ter garrafa”. Nos “bares de piquenas”, a posse de uma garrafa dava um sainete das arábias.

No Procópio, o único bar onde “tive garrafa”, ainda no longínquo consulado do Juvenal, um dos mais históricos barmans de Lisboa e um bom amigo, a coreografia era bem mais discreta, nunca com vozes alteadas para a plateia. Verdade seja que o Procópio nunca foi um “bar de piquenas”, muito longe disso! No meu caso, era apenas uma maneira de poupar algum dinheiro, nesses tempos em que os meus trigliceridos não se ressentiam dos excessos. Mas, ao que me recordo, acabei por só ter por ali uma única garrafa, que rapidamente se foi...

Ontem, por coincidência, à saída do restaurante, calhou passar perto da casa onde viveu o “Antoninho do Talho”, um abastado industrial de Vila Real, com interesses que iam muito para além das carnes, mas que também as incluíam, bem como aos respetivos pecados. Na minha juventude, a sua imagem de “bon vivant” era prestigiada por um rumor nunca confirmado: “O Antoninho do Talho tem garrafa do Pasapoga!”, sendo este, ao tempo, o cabaret mais famoso de Madrid. É tarde para testar se isso tinha fundamento, se acaso o facto interessasse para alguma coisa, salvo para ilustrar esta historieta.

quinta-feira, janeiro 02, 2020

Dicionário

“Competividade” é um vocábulo que o bom senso (e o bom ouvido) recomenda que, no futuro, passe a integrar os dicionários, talvez em complemento da forma erudita “competitividade”, que caiu em desuso.

Carpe diem

A graça da vida diplomática é a sua incerteza. Para quem, como eu, acabou por ter 21 ministros dos Negócios Estrangeiros na sua carreira, viver em sete cidades estrangeiras, em diversos continentes, não pode assustar. O Brasil, uma das mais complexas - se bem que, aparentemente, simples - relações bilaterais de Portugal, saiu-me depois em rifa. Em boa hora! Aprendi, desde logo, que devia ser “obrigatório” para qualquer diplomata português ter um contacto com a realidade brasileira, para pôr fim a alguns mitos, diluir preconceitos e ajudar-nos a situar melhor no mundo. Quatro anos de Brasil, visitando 23 dos seus 27 Estados, fez-me perceber muitas coisas. A vida correu-me bem por lá, mas eu fiz bastante por isso.

Quando, quatro anos depois, aterrei em Paris, senti-me quase em casa. No final dos anos 60, eu chegara àquela cidade, saído à boleia de Lisboa, como um peregrino que chega a Meca. Depois, viciei-me e passei muitas mais vezes por lá. Regressar como embaixador seria, contudo, muito diferente, muito mais do que eu pensava. Claro que havia os restaurantes e as livrarias, mas as horas foram sempre muito contadas, nos anos em que, até à minha reforma, por ali fiquei. Trabalhei muito, assisti a tempos muito diversos, nem sempre bons, em especial para a imagem de Portugal no mundo. E, como em todo o lado, alimentei-me por ali da serenidades das noites, onde conversei imenso, li muito e, em especial, pensei.

Em 2013, tal como estava planeado desde há muito, regressei, definitivamente, a Portugal. Era a reforma? “Sort of”, como dizem os anglo-saxónicos. Não parei, desde então, um segundo. Houve empresas que quiseram passar a ouvir a minha opinião sobre as áreas internacionais dos seus negócios, universidades que me contrataram para dar aulas ou me convidaram para as aconselhar, jornais que me ofereceram colunas para eu escrever o que pensava. Fora dessa dimensão mais “séria”, que muito me agrada, divirto-me com o usufruto outros prazeres, como os livros, a escrita, a gastronomia e as viagens. Leio, leio muito, escrevo um blogue pela noite dentro, frequento tertúlias muito diversas. E, pelos dias, mas essencialmente pelas noites, estou com os amigos, com a família. Às vezes, perco alguns, dos bons, o que me deixa nostálgico, confesso. Mas tento olhar em frente, aproveitar, ao máximo, este país renovado, magnífico, sereno, que gargalha para as aves agoirentas, para os profissionais da inveja e do mal-dizer, que apetece irritar - e eu faço-o, com algum gosto. Uma terra que agora anda bastante mais feliz do que, ainda há pouco, parecia condenada a ser. Carpe diem! 

(Depoimento)

Potpourri


  • Todas as semanas surge um record! O Ronaldo tem os dele, o Messi também, o Pélé lembra outros. Cada um segue o critério que lhe dá mais jeito. E o Zé Povinho “embarca”.
  • Carlos Ghosn foi “exfiltrado” do Japão, por um “comando” privado, pago pela mulher. Há muita gente a exultar com o golpe. Tenho alguma dificuldade em me congratular com a fuga de alguém à justiça de um país democrático.
  • Andava distraído: não tinha dado conta de que este ano era bissexto. Vou planear com o maior cuidado o que fazer nesse dia a mais.
  • O facto do candidato preferido dos portugueses (comigo incluído) não ter ganho nas presidenciais da Guiné-Bissau não nos confere qualquer direito de ingerência nos seus assuntos internos.
  • Na Guiné-Bissau, o resultado nas urnas foi o que foi. Pudera: dizem que terá havido muitos mortos a votar...
  • Gostei tanto de ver aquela humana reação do papa!
  • Vale a pena olhar um pouco para além do caso que opõe Isabel dos Santos às autoridades angolanas. É muito interessante observar a profunda e algo surpreendente mudança política que hoje atravessa Angola.
  • Nunca tinha encontrado, ao vivo, um negacionista do aquecimento global. Não acabei 2019 sem me cruzar, numa conversa pessoal, com um. Foi uma experiência curiosa.

quarta-feira, janeiro 01, 2020

Será este ano?


Será este ano deixo de comprar a montanha de revistas e jornais que acabo por nunca ler?

Será este ano que vou, finalmente, a Kalininegrado e a Stepanakert e que desisto, de vez, de ir a Alice Springs, a Sanna, a Salem, a Ulan-Bator e a Aleppo?

Será este ano que vou fazer uma limpeza drástica das “newsletters”, dos “clippings” e dos alertas regulares que, dia após dia, enxameiam a minha caixa de e-mails?

Será este ano que vou ver a minha ficha na Pide?

Será este ano que vou dormir à Pousada de Alijó, a única do continente onde nunca passei uma noite?

Será este ano que me converto à Apple?

Será este ano que vou ter a coragem de limpar mais de uma dezena de milhar de fotografias que já não me dizem nada e que ocupam um imenso espaço na “nuvem” que aluguei?

Será este ano que começarei a ler ”A Bíblia”, esse best-seller de que tão bem me falam?

Será este ano que vou passar a deitar-me mais cedo?

Se não for este ano, desde já prometo, é em 2021...

Anuário 2019


O José Carlos de Vasconcelos voltou este ano a desafiar-me a fazer no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, que dirige, mais um “Anuário”, uma coleta de pequenas reflexões, produzidas ao longo do ano que acabou, muitas das quais já aqui publicadas. Enchem duas páginas da publicação, podendo o texto ser lido aqui.

Começar o ano



Tinha tido o impulso de fazer concurso e acabei admitido, com umas centenas de candidatos, naquele emprego do “fundo da tabela” da banca pública. Fi-lo para evitar que os meus pais tivessem de continuar a custear, por mais tempo, as consequências de algumas trapalhadas universitárias que me estavam a interromper o curso. Ficaria por ali, apenas de passagem, antes de ingressar na “tropa”. 

Os colegas que vim a encontrar nesse emprego, todos mais velhos, alguns já com bastantes anos de profissão, eram homens (havia poucas mulheres) para quem ser bancário era uma tarefa para a vida. 

Hoje avalio melhor a riqueza que foi ter começado a trabalhar bem cedo, lado a lado com gente para quem esse quotidiano não tinha o mesmo caráter precário. Foi com essas pessoas que aprendi o significado do trabalho a sério. E, com algumas delas, construí uma amizade que dura até hoje.

Fora admitido na Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa, no Calhariz, em meados de novembro de 1971. No último dia desse ano, à hora do almoço no Martins, uma tasca a caminho de Santa Catarina, onde íamos em grupo, veio à conversa a passagem de ano dessa mesma noite. 

O Murta, um saudoso colega algarvio, senhor de um humor fino, virou-se para mim e disse: "Você sabe como é que aqui este nosso colega, desde há muito, faz as passagens de ano?" 

Apontou para um homem de aspeto um tanto abrutalhado, que eu sabia que tinha tido um passado como operário. Da natureza da profissão, ficara-lhe uma atitude política que, em algumas coisas, vim a constatar que rimava bastante com a minha. Tinha um discurso pouco “fino”, saíam-lhe graçolas fortes, com efeito amplificado por uma voz muito sonora, que assentava bem num corpanzil avantajado.

Eu andava por ali há muito pouco tempo, não tinha a mais leve ideia do que estavam a falar, mas a gargalhada coletiva do grupo fez-me perceber que estava a perder alguma coisa. E o Murta prosseguiu: "Este homem não gasta champanhe no réveillon!" Estava cada vez mais baralhado e intrigado. 

O tal colega sorria, deliciado com a minha crescente curiosidade. "Ó homem, conte aqui ao Seixas como é que você passa os fins de ano!", rematou o Murta.

E ele contou. Não vou repetir aqui as brevíssimas palavras utilizadas, porque o JN não tem uma bola vermelha para alertar os leitores mais sensíveis. Só revelo que o hábito desse meu amigo era ir para a cama um quarto de hora antes da passagem de ano. E nunca ia sozinho... Cada um passa o "réveillon" como mais gosta, não é?

Os meus votos para 2020


terça-feira, dezembro 31, 2019

Chamo-me 2020 ...


... e estou aí a chegar!

A Maria



Não faço ideia da idade que ela possa ter. Mas já deve ter bastante. É uma mulher magra, de cara sofrida, desdentada, de cabelos ralos, que há muito vejo passar, curvada, num passo hesitante, em trajes de evidente pobreza, pelas ruas de Vila Real. Cola-se a algumas paredes, à espera de poder ter a sorte de um gesto franco de alguém. Anda, há anos, “a pedir”. Desconheço que tenha algo para fazer, talvez alguns recados. Não posso sequer imaginar onde vive. 

Habituei-me a ver a minha mãe, que desapareceu há quase duas décadas, a dar uma esmola à Maria, sempre que a encontrava. Nos Natais, ela ia mesmo lá a casa, tocava à campaínha e havia um sensível reforço daquilo que levava de volta. 

Desde então, quando cruzo a Maria pelas ruas da cidade, para honrar a atitude que era a da minha mãe, dou-lhe sempre “alguma coisa” - que já passou, há muito, de moedas para papel sonante. A Maria, mal me vê, aproxima-se logo, com a esperança segura e um esgar que passa por sorriso.

Por estes dias, ainda não vi a Maria. Alguém me disse que ela anda por aí, mas não a encontrei. Custar-me-ia muito regressar a Lisboa sem lhe dar “alguma coisa”, em especial pelo Natal. Não sinto estar a ser generoso, apenas obrigado a respeitar uma saudável generosidade que herdei.

Apologia do Delito


O “Delito de Opinião”, um excelente blogue coletivo, onde o papel persistente de Pedro Correia se destaca, teve a amabilidade de incluir este “Duas ou Três Coisas” no seus “blogues do ano”. 

O Delito nasceu uns dias antes deste blogue, e sigo-o com regular atenção. Há nele quem não goste nem um pouquinho de mim e, de quando em vez, se entretenha a zurzir-me, com uma plateia de comentadores a servirem de claque. Mas eu sou um assumido masoquista - além disso com “fair play” - e, por essa razão, tive o maior gosto em aceitar o convite para prefaciar a edição em papel de um “ best of” do Delito, nisso acompanhando os meus amigos José Ferreira Fernandes e João Taborda da Gama. O Delito e eu acordamos em divergir sobre o Acordo Ortográfico.

No início de  2020, o “Delito de Opinião” e este “Duas ou Três Coisas” farão nada mais nada menos do que 11 anos de atividade diária ininterrupta, embora a “solidão” na escrita torne a minha tarefa um pouco mais ingrata. Neste tempo que não vai estando fácil para os blogues, não sei qual será o futuro do “Duas ou Três Coisas”, revelo já. 

Uma coisa é certa: o Delito mostra, todos os dias, que está bem e se recomenda. Eu leio-o com agrado.

segunda-feira, dezembro 30, 2019

Velho?



Um amigo disse-me que se sentia velho, por constatar que testemunhara coisas que os novos só conheciam de ter ouvido falar. Procurei animá-lo: “Não és velho! Viste o que outros não viram e ainda estás cá para contá-lo. É mesmo um privilégio!“. Cada vez minto melhor...

Uma gaffe de Metro


Leio que o Metropolitano de Lisboa faz hoje 60 anos. E não consigo deixar de recordar a frase genial que o publicitário e poeta Alexandre O’Neill inventou, à época, para a publicidade do novo meio de transporte: “Vá de Metro, Satanás!”. A administração do Metro terá achado a expressão ousada de mais (temendo que a homofonia com “Vade retro, Satanás” não fosse óbvia para muitos) e o slogan passou à história da publicidade em Portugal. 

Verdade seja que a criatividade de O’Neill era transbordante e, anos mais tarde, os eletrodomésticos Bosh também não aceitaram um seu outro slogan, ainda mais ousado...

A razão do título deste texto é uma historieta passada no “Beach Hotel”, em Tripoli, na Líbia, no longínquo ano de 1976. 

Eu estava por lá integrado numa missão exploratória das oportunidades de negócio em matéria de construção civil e obras públicas, enviada pelo Estado português. Chefiava-a o engenheiro Guimarães Lobato, que dirigia a Partex e era administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, além de membro do Conselho Superior de Obras Públicas e Transportes. A delegação portuguesa era composta por gente oriunda de vários setores, públicos e privados. 

(Da banca iam dois credenciados gestores, Seruca Salgado e Mascarenhas de Almeida, de quem me tornei amigo e com quem, passadas que foram quatro décadas, ainda faço uns almoços, a que damos o nome de “Libyan connection”)

Os serões no Beach Hotel, nessa Líbia de Kadhafi, eram uma imensa “seca”. A absoluta ausência de álcool tornava as conversas no bar, à volta de sumos, que recordo sinistros, no único fator de animação possível. 

Uma noite, veio à baila o Metropolitano de Lisboa. Eu tinha lido, dias antes, o anúncio de que várias estações tinham de ser alargadas, para poderem comportar composições com mais carruagens. E achava isso um escândalo!: “O Metro tem pouco mais de 15 anos! Não houve estudos sobre o crescimento potencial do tráfego? Teria sido muito mais económico ter logo feito estações mais compridas, contando com essa futura realidade, em lugar de estar a executar agora obras, com imenso incómodo para os passageiros!”. E terminei a minha análise com uma frase, que se pretendia apenas retórica: “Gostava muito de saber quem terá sido o irresponsável por aquela falta de planeamento!”

“É fácil”, respondeu-me Guimarães Lobato, “fui eu”. Senti-me à procura de um buraco, nem que fosse um túnel de metro, por onde me escapulir daquela imensa gaffe! Os meus colegas da delegação olharam para o jovem diplomata que eu então era com um sorriso, entre o sádico e o piedoso, com a curiosidade de saber onde é que aquela discussão ia dar.

Enquanto eu me desfazia em desculpas, Guimarães Lobato, que era um grande “senhor”, com quem vim a dar-me bem e com quem voltaria à Líbia no ano seguinte, riu-se imenso e deu uma qualquer explicação para o facto das estações terem sido preparadas apenas para três carruagens e não para as cinco ou seis que então se pretendia passar a utilizar. Imagino que, na minha atrapalhação conjuntural, devo ter sido dos primeiros a achar ”mais do que natural” o tal défice de planeamento...

Ainda hoje me recordo daquele embaraçante momento. E também do facto de não haver, por aquele bar, um simples whisky duplo que me ajudasse a levantar o ânimo!

Gastronomia e simpatia


O reputado economista João Abel de Freitas, com quem me recordo de ter debatido a Europa num longínquo painel, escreve, no “Jornal Económico” sobre a importância da gastronomia. E, de passagem, faz-me umas referências simpáticas. Pode ler-se aqui.

Faz também um desafio: por que não falo mais do “Raposo”, um restaurante lisboeta que referi algures, mas que ele presume ter sido através de “informação que lhe chegara mais de amigos”? Ora aqui é que ”a porca torce o rabo”! Eu nunca - repito, nunca! - falo de um restaurante sem lá ter ido.

E, ao “Raposo”, uma magnífica mesa na Passos Manuel (é verdade, como diz, que não me fica muito à mão), lembro-me de ter ido, creio, umas cinco vezes: a primeira vez há já muitos anos (mais de vinte, parece-me) e a segunda há sete ou oito. Já voltei depois (até em 2019), gosto e recomendo. Para que se saiba!

Aqui deixo os votos um excelente ano de 2020 a João Abel de Freitas, esperando encontrá-lo um destes dias, de garfo e faca, no “Raposo” e, até lá, nas páginas do “Jornal Económico”, onde coincide ambos sermos dedicados colaboradores.

“Fotografias”


Ontem à noite, em Vila Real, deu-me para fotografar alguns pormenores da cidade. Com um iPhone, todos podemos ser “fotógrafos”, mas com aspas...

Ao longo da minha vida, tive várias máquinas fotográficas. Algumas de qualidade. Aqui ou ali conseguia ”agarrar” uma imagem razoável, mas a maioria das vezes as coisas não saíam muito bem. Ou melhor, tinha uma “produção” média sofrível. Ainda pensei fazer um curso, mas cedo cheguei à conclusão de que fotografar não é apenas uma técnica, é uma arte. E, para as artes, ou se tem vocação - e eu, manifestamente, não tenho - ou então o melhor é deixar de ter quaisquer ambições. Vivo, aliás, muito bem sem elas.

Nos dias de hoje, com o iPhone ou o iPad, produzo imensas imagens, mas faço muito poucas “fotografias”...

Anúncio


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Se a Pastelaria Gomes precisasse de propaganda, utilizaria este espaço”
































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Um grande espaço em branco seguia-se ao texto do anúncio que, por décadas, pelo Natal, acompanhava as Boas Festas dadas pela Pastelaria Gomes aos seus clientes na “A Voz de Trás-os-Montes”. Desde há uns anos, alguém teve a ideia de substituir “propaganda” por “publicidade”. Modernices...


domingo, dezembro 29, 2019

Vila Real











Década?


É nestes anos complexos que acabam em nove que, pela enésima vez, é suscitada a magna questão de saber se a década acaba já no dia 31 de dezembro ou se teremos de esperar um ano mais. E há uns fabianos que se entretêm com isto. À falta de melhor, com certeza.

sábado, dezembro 28, 2019

Ásia


Em Vila Real, existem hoje oito restaurantes de cozinha asiática. Quem diria?!

Mudaram muito os hábitos e as modas, aqui por Trás-os-Montes.

Posso estar enganado, mas não deve haver um único restaurante transmontano na Ásia...

Charada

Nobokov, Kubrick e James Mason, se não estivessem mortos, estariam hoje de luto.

Juízos


É muito fácil espalhar indignação pelo sentido de uma sentença judicial, sem se conhecerem os fundamentos detalhados dessa decisão, apenas porque ela vai contra aquilo de que nos convencemos, através de “leads” de notícias que podem ser enganadores. 

Alguns juízes erram, mas é uma palermice pensar-se que os juízes erram por sistema. Populismo é também isso.

Europa-América


Ao final de quase 75 anos, a editora “Europa-América” parece estar à beira da falência, de acordo com as notícias de hoje.

Trata-se de uma editora histórica, com mais de 51 milhões de livros publicados, criada por Francisco Lyon de Castro, um democrata que ali deu frequente acolhimento a perseguidos pela ditadura. 

Foi o caso de Fernando Piteira Santos. Só sob pseudónimo de “Arthur Taylor” ele aí pôde publicar o seu livro “As grandes doutrinas económicas”.

sexta-feira, dezembro 27, 2019

Um peso na consciência


A imagem está ali bem à minha frente, numa fotografia de grupo da família, comigo com um ar enfadado e um imenso penso na cabeça. Terei, no máximo, uns três anos. O penso cobria uma ferida proveniente de uma queda numa escada, episódio de que ainda tenho uma vaga recordação, tal deve ter sido o traumatismo.

Reza a crónica familiar que, comigo a verter sangue e, imagino!, num imenso berreiro, terei sido levado, ali da rua Avelino Patena, onde então morávamos, para a vizinha Farmácia Baptista (fechou, de vez, há semanas, dizem-me agora), na rua Direita, em Vila Real. Na botica, em cujo balcão fui observado, terão chegado à conclusão de que o ferimento tinha uma dignidade que obrigava a uma ida à Casa de Saúde da Boavista, a umas escassas centenas de metros de distância. Contaram-me que fui aí atendido pelo Dr. Durão que, apiedado de mim (ou para não me ouvir gritar ainda mais), não recorreu a pôr pontos no lanho, talvez a razão pela qual ainda hoje a cicatriz tem a visível dimensão que tem.

Regressado a casa, os meus pais terão então notado que eu mantinha, teimosamente, um dos punhos sempre fechado. Curiosos, forçaram-me a abri-lo. E lá estava ele, na minha mão: a mais pequena das unidades de um estojo de madeira com os pesos que se usavam nas balanças com dois braços. Pelos vistos, eu achara graça ao objeto e surripiara o pequeno peso do balcão da farmácia, enquanto era observado, levara-o para a clínica, por entre toda a berraria, e ainda o mantinha ciosamente comigo, no fim desse atribulado dia.

Na manhã seguinte ao evento, uma “criada” foi, à Farmácia Baptista, devolver o peso “que o menino, por distração, tinha levado na véspera”. Por muitos anos, sempre que olhava o senhor Barreira, uma conhecida pessoa da cidade que geria aquela farmácia, sentia um (pequeno) peso na consciência.

Bela surpresa!


Foi uma bela surpresa encontrar, numa exposição sobre o Sport Clube de Vila Real, no Grémio Literário de Vila Real, este cartão de associado “número um” dessa inesquecível figura da cidade que foi o Fernando Cardoso ”Choco”, ao lado do texto em que, há meses, o recordei, aqui no meu blogue.

O que deixámos para trás...


... não é bem assim, mas é assim que muitas vezes dele nos recordamos!

O pelourinho e a sé


quinta-feira, dezembro 26, 2019

Lâmpadas


“Há já muito tempo que só vendemos LED, não sabia?!”. Então acabaram com as lâmpadas normais e ninguém me avisou?

Bom ambiente

Tenho a maior simpatia pelo ministro do Ambiente. E é precisamente por isso que acho que ele tem de medir melhor o peso das palavras: falar na hipótese de deslocação física de localidades é um tema a cuja imensa delicadeza um político não pode deixar de ser sensível

Outdoors


Não há regras que impeçam a poluição visual com cartazes. “outdoors” gigantes que desfeiam as cidades portuguesas? 

Em períodos eleitorais, vá que não vá. Mas será que nunca mais poderemos voltar a ver o Marquês ou a Praça de Espanha ou o Saldanha sem cartazes? Não se vê isto noutras capitais.

The Crown

Acho excelente a série “The Crown”, que passa na Netflix. Mas tem um imenso defeito: “cola-se” de tal forma à realidade que acaba por induzir o observador desprevenido à ideia de que aquilo é História, nomeadamente no modo como faz interagir entre si as diferentes personalidades. Às vezes, somos tentados a esquecer que estamos perante uma mera obra de ficção, construída por forma a tentar criar uma narrativa que ligue alguns factos reais conhecidos.

A reserva islandesa


Podia haver pessos mais forretas do que o meu amigo Álvaro. A mim, porém, nunca ninguém me as apresentou! Fui amigo do Álvaro até à sua morte e pude constatar que, à infindável generosidade da sua amizade, correspondia um cuidado extremo em não gastar um tostão a mais que ele visse como dispensável. Ou, se possível, gastar ainda menos. Tinha, aliás, um extraordinário livro onde anotou, por décadas, as suas mais ínfimas despesas, gorjetas incluídas - um documento que hoje seria precioso, para se aferir da evolução dos preços nesse período.

O Álvaro sempre me considerou um incorrigível perdulário, ficava furibundo quando me via incorrer numa despesa que ele via como supérflua, achava que eu comprava livros a mais, que gastava muito em restaurantes e que não escolhia as formas mais económicas de viajar. Eu, confesso, às vezes fazia certas compras diante dele com uma certa displicência ou deixava uma gorgeta mais redonda, unicamente para ver-lhe no olhar chocado a sua íntima reprovação. Provocar um forreta nunca me pareceu configurar um “crime”...

Tenho um mar de histórias da forretice do Álvaro, mas há uma que, ontem, em conversa com um conhecimento comum, me veio à memória.

Estávamos na segunda metade dos anos 80. Era um tempo em que eu vivia em Lisboa e, um dia, o Álvaro telefonou-me a perguntar se eu conhecia alguém na Islândia. 

Porque ele tinha estado em minha casa uns dias, quando vivi em Oslo, dera conta que era a embaixada portuguesa na Noruega que “cobria” a Islândia, pelo que achou provável que eu tivesse mantido um conhecimento qualquer por lá, não obstante terem passado já alguns anos.

De facto, eu tinha tido contacto com o cônsul honorário português em Reykjavik e disse-lho. Ficou imensamente satisfeito e passou a relatar-me o que pretendia. Ia à Islândia numa viagem que lhe fora oferecida por um jornal com o qual colaborava, mas estava a ter dificuldade em fazer a reserva do alojamento que pretendia.

Para evitar incomodar o nosso cônsul honorário por um assunto tão fútil, disse-lhe que tinha um amigo numa agência de viagens, em Lisboa, que seguramente lhe trataria da reserva. O Álvaro reagiu: “Isso também eu tenho! Mas as agências não conseguem marcar aquilo que eu quero”. 

Que diabo de alojamento tão especial era impossível de marcar a partir de Lisboa, num mundo onde essas coisas já se faziam, à distância, com toda a facilidade? O Álvaro pareceu-me um pouco embaraçado, ao confessar: “Bom, é que eu soube que as instalações do “Exército de Salvação” têm lá umas camaratas coletivas muito boas, com um preço que me ficava muito em conta. Se o nosso cônsul pudesse fazer um telefonemazito a marcar uns dias para mim, tudo seria mais fácil”.

Eu nem queria acreditar! Ficar no “Exército de Salvação” era um recurso quase para indigentes, disse-lhe. Ele não tinha idade nem estatuto para isso. Mas ele não se importava: o preço da dormida era muito “jeitoso”. “Eh, pá! Não sejas chato! Pede lá isso ao homem, não te custa nada”.

Tenho a maior relutância em incomodar os outros, só o fazendo por razões muito ponderosas. E aquela, manifestamente, não era uma delas. Assim, recusei liminarmente fazer o pedido ao nosso cônsul honorário. Nunca cheguei a saber onde é que o Álvaro se aboletou em Reykjavik. (Na internet, descobri agora uma elucidativa imagem de camarata “Salvation Army Guesthouse” em Reykjavik. As coisas a que o Álvaro recorria, quando se tratava de poupar dinheiro!)

O Álvaro ficou um pouco abespinhado comigo. Mas nós nunca nos zangávamos, porque a nossa amizade era à prova de tudo, mesmo da sua incomensurável forretice. Só a sua morte, há já mais de uma década, acabou com essa coisa deliciosa que eram as nossas intermináveis discussões. Este Natal, tive saudades do Álvaro!

quarta-feira, dezembro 25, 2019

A desculpa da estação


A bica da Consoada


Tinha fama de comunista, o que, no tempo da “outra senhora”, prenunciava vida problemática e sugeria cautelas na aproximação pessoal. O Lima afivelava, por regra, uma cara zangada com o mundo, que exibia à porta do café de que era proprietário, o Imperial, no fundo da rua Direita de Vila Real.

Na sociologia empírica que me habituei a fazer de cada um dos cafés da minha cidade natal, nunca consegui definir uma tipologia dos frequentadores do Imperial. As mesas pareciam-me sempre vazias e rumorava-se que isso se devia ao facto do Lima ter erupções de feitio que o levavam, algumas vezes, a fáceis atritos com a clientela.

Em contraste com este perfil iracundo, o Lima era um refinado artista. Na memória da cidade ficou a sua direção de uma “marcha luminosa” histórica, no início dos anos 60. Mas, mais do que isso, ficou a sua arte no desenho das passadeiras de flores que, por muito tempo, ornamentavam, numa data religiosa do ano, a rua onde eu vivia. Recordo bem a reverência com que as senhoras encarregadas da coleta das flores recebiam as instruções detalhadas do Lima, no tocante à cor desejável das pétalas, a serem colocadas nos vincos deixados no serrim pelos moldes de madeira, cuja execução ele próprio acompanhava num carpinteiro na rampa de S. Pedro.

Mas a glória maior do Lima era a noite de Consoada. Por muitos anos, o Imperial foi o único local aberto, nessa noite, na cidade, onde se podia tomar uma bica ou comprar tabaco. Nessas horas, o café regurgitava de clientes - só homens, claro - oriundos de todos os bairros. Ainda estou a ver ali o Lima, de sobretudo cinzento, ao fundo da sala, apreciando o movimento confortável da máquina registadora. O Imperial não tinha aquecimento, aquilo era um mar de samarras, debaixo de uma fumarada imensa. O balcão não tinha mãos a medir, com os Macieira 5 estrelas a encherem (mas só até à linha vermelha) uns balões de vidro já foscos do uso. Ironicamente, essa era a noite da seca vingança do Lima.

Vingança que passava a um estádio superior de perfídia quando se constatava que o Lima fechava as portas do café meia hora antes da missa do galo, ali ao lado, em S. Pedro. E isso obrigava quantos usavam o Imperial para queimar tempo, a terem de ficar na rua, a bater as botas e os dentes de frio, a menos que quisessem ir fazer companhia às beatas que sempre chegavam cedo, para marcar lugar antes da homilia do padre Abel. O Lima não devia ser herege, talvez nem sequer fosse comunista. Ele era, apenas, de uma cidade diferente.

segunda-feira, dezembro 23, 2019

Significados

“Ó mãe! O que é aquela coisa preta no sinal?”

Milagres da Mesa Dois





Há pouco, nos arquivos fotográficos que a quadra natalícia tem tendência a fazer emergir, descobri uma imagem que, em si mesma, é reveladora da abrangência do grupo da tertúlia da Mesa Dois do bar Procópio, animado por Nuno Brederode Santos.

Desde 2004 até 2016, com escassas interrupções, tomei a iniciativa de organizar jantares anuais dos frequentadores da Mesa Dois, normalmente no mês de dezembro. Foram, ao todo, dez jantaradas, todas bem divertidas. As presenças nestes repastos anuais chegaram a oscilar entre 70 a 80 pessoas, com um quase sempre impecável equilíbrio de género. 

O conceito de “frequentador” foi sempre muito arbitrário, porquanto algumas pessoas eram bastante refratárias a “marcar o ponto” na mesa ao longo do ano. Posso hoje revelar que a primeira lista dos “convocados” foi acordada entre mim e o Nuno Brederode Santos, figura tutelar e central da tertúlia. Ao longo do tempo, fui incluindo, com a anuência discreta ou implícita do Nuno, quem entendia que tinha “credenciais” para ser chamado ao grupo. É assim, acho eu, que funciona uma democracia eficaz...

Esta fotografia é do jantar de 2008, no saudoso restaurante Vírgula, onde dois desses repastos tiveram lugar.

À esquerda (por ironia lateralizante), está o Caetano da Cunha Reis, fundador da Juventude Centrista, figura histórica desses primeiros tempos de um CDS onde se acolheu muita direita lusa - e o Caetano nunca deixou, honra lhe seja, de se reivindicar orgulhosamente dela. À direita (honni soit...), estão Carlos Antunes e Isabel do Carmo, conhecidos militantes revolucionários, das BR ao PRP. 

Eu já tinha feito a malandrice de colocar o Caetano e o Carlos lado a lado, num anterior jantar no Manel, no Parque Mayer - e deram-se lindamente! Aqui fica, pela primeira vez divulgada, a prova fotográfica deste pontual “bloco lateral”, unido excecionalmente pelo espírito congregador da tertúlia da Mesa Dois, que o Nuno tão bem simbolizou. 

Ao Caetano e ao Carlos aproveito para deixar os meus amigos votos de Festas Felizes, seja o que cada um possa disso entender.

domingo, dezembro 22, 2019

Eu, hipocondríaco, me confesso


Abro a janela do meu quarto, aqui por Vila Real, e, em letras garrafais, vejo escrito o meu nome, o nome da minha familia. É uma farmácia, aberta todos os dias, a uns escassos metros, que, desde há meses, passei a ter por vizinha. 

Hipocondríaco como sou, este é um sonho de vida finalmente realizado. Neste aspeto, sei que convoco aqui a inveja do nosso presidente da República, também ele sempre pronto a opinar sobre medicamentos. Tal como ele, sempre que necessário, “receito” medicamentos, com elevado critério, a quem se queixa de alguma coisa e tem o bom-senso de seguir os meus conselhos. 

(Um dia, recordo-me, cheguei mesmo a dar dicas farmacopédicas a um médico amigo, que olhou para mim com uma cara espantada. Em defesa, perguntei-lhe: “Nunca mandaste bitaites sobre política internacional? Tenho o mesmo direito...”). 

Tenho contudo uma vantagem sobre o mais alto magistrado da nação: Marcelo (da mesma forma que Filipe II, no poema de Gedeão, não tinha um fecho-éclair) não se pode gabar de ter uma farmácia tão “à mão de semear” como a que eu tenho por aqui. Essa é que é essa!

Mas nem tudo são alegrias. O cerceamento progressivo das liberdades privadas, que alguns confundem com modernidade, matou-me, neste domínio, pequenos prazeres dos quais, há décadas atrás, podia usufruir. Eram tempos em que vivia no estrangeiro e, passando por Vila Real, visitava aquilo que foi a outra encarnação geográfica deste mesmo estabelecimento. 

Vou fazer uma confissão, porque o eventual cúmulo de delitos já prescreveu, para os presumíveis réus envolvidos: eu aproveitava o que sabia serem as horas mortas de venda da farmácia e, com a cumplicidade de um empregado, amigo e complacente, permitia-me o discreto acesso às prateleiras “lá de dentro”. Mas, antes, tinha de ter a prévia certeza de que a “dona da casa” estava fora, porque nunca, com ela presente, eu teria a “lata” de usar daquela liberalidade.

Ultrapassando as dificuldades de aquisição que ia tendo na estranja, onde havia essa picuinhice permanente que era a necessidade de receitas médicas para certos produtos, atulhava-me então de “uma coisa que está a sair muito para o estómago” ou de “um antibioticozinho que dá para quase tudo” ou de “um xarope de que dizem maravilhas” e muitas outras novas e velhas mezinhas para as várias maleitas potenciais de que poderia vir a sofrer, nesses destinos para onde me tinham mandado para bem da pátria. Apenas “coisas para o sono ou desse género” me estavam vedadas, sendo essa a “red line” deontológica do meu cúmplice.

Era então um deleite poder passear por aquelas prateleiras, adquirindo as novidades e reforçando os “clássicos”. Não é impunemente, sem este rico saldo de experiências, que se acaba uma vida profissional nas delícias do retalho...

Tomava tudo aquilo que comprava? Nem pensar! Quantas dezenas de caixas de medicamentos, que me custaram bons milhares escudos (era esse tempo!), não acabaram por ir, intocadas, para o lixo - tanto mais que faço parte do grupo de ingénuos, como sabe quem me conhece, que é incapaz de tomar um medicamento nem um minuto que seja depois do final do mês em que ele expira o seu prazo indicativo de validade. 

Esta também é uma caraterística do hipocondríaco “profissional”, o qual, para ser verdadeiramente feliz, tem de ter uma doençazita de vez em quando, sem o que deslegitimaria a sua mania. E eu, para minha “felicidade”, lá vou tendo algumas.

Tenho agora, como disse, a nova farmácia aqui ao lado. É uma sensação confortável, podem crer. Mas, nos dias de hoje, ela passou a ter para mim zonas inexpugnáveis, travadas por um balcão por onde rodam umas jovens senhoras de sorriso simpático, que só vaga e progressivamente me vão reconhecendo, mas que, imagino, serão escassamente sensíveis a eu poder vir a tirar qualquer vantagem da circunstância do meu nome coincidir com o da casa onde trabalham. Não me estou a ver, nos dias que correm, a ser autorizado a abrir aqueles “tesouros” que são as gavetas brancas da botica (usam-se muito, vejo eu, guloso, à distância, umas inclinadas), podendo escolher “o que me der na veneta”, seduzido pela exaltante literatura das bulas. Foram grandes tempos!

A liberdade já não é o que era!

Grande Corgo!


Vejo-o assim da minha varanda. É nestes dias que o Corgo se enche de brios e mostra que, quando pode e quer, se transforma no grande rio que é. Nem sempre é assim? Pois não, mas a culpa é da nascente, lá para Vila Pouca, que lhe é avara quase o ano todo, somada depois aos litros que lhe tiram em Zimão ou Tourencinho. Por estas horas, até o afluente Cabril, que lhe alimenta quanto pode o ego aquático, deve andar impante! O Douro, onde o Corgo desagua por fim em todo o seu esplendor, que se acautele! Ah! E depois não nos venham a culpar pelas cheias na Régua ou em Miragaia! Um grande rio é assim mesmo, não pode fugir ao grandioso do seu destino...

Tarde do dia de Consoada