Foi
Harold Macmillan, o antigo primeiro-ministro britânico, quem, um dia, ao ser
perguntado sobre o que mais temia em política, deu uma resposta que ficou
célebre; “events, dear boy, events!” A regra básica para quem se aventura pelos
caminhos da vida pública é estar preparado para ter de fazer frente aos
acontecimentos, ao inesperado, àquilo que pode colocar em causa todas as
previsões e calendários.
A
União Europeia não escapa a esta sina. De um dia para o outro, surgem à sua
frente novas situações a que urge responder, que desqualificam as prioridades
da véspera. Foi assim com a crise financeira, a instabilidade da dívida
soberana, a pré-rutura da Grécia, a tragédia dos imigrantes do Sul, a tensão
com a Rússia. É assim hoje com os refugiados, com os atentados terroristas, com
as exigências britânicas para a revisão da matriz da integração.
A
UE vive sob duas pressões contraditórias. A única forma de dar coerência ao seu
corpo de políticas é operar em um cada vez maior número de áreas, algumas das
quais – como a moeda, a política orçamental ou as relações externas – tocam já
aquilo que fazia parte do cerne tradicional da soberania dos Estados. Porém, isto
ocorre quando a diversidade dos Estados membros é maior, quando as agendas
nacionais de preocupações são muito diferentes, às vezes contraditórias, e em
que a bondade das soluções de natureza europeia começa a ser questionada, com as
pulsões para “devolução” de poderes, de regresso à esfera nacional, a terem
cada vez mais adeptos.
A
disponibilidade de muitos Estados para mais partilha de soberania é hoje
diminuta, porque as suas opiniões públicas só aceitariam “mais Europa” se
estivessem (e não estão) satisfeitas com a Europa que têm, mas também pelo
facto de terem por certo que a influência na gestão dessa partilha depende da
força, também desigual, que cada um tem em Bruxelas. O tempo em que a
importância dos desafios exigiria mais unidade na expressão da vontade comum é
precisamente aquele em que as divergências são mais acentuadas.
Há
outra realidade muito esquecida. Os dirigentes nacionais raramente dispõem de
um mandato para comprometerem a vontade dos seus países para além do
imediatismo das crises. Aceitam os tratados, mas são relutantes a novas
obrigações ou, para as aceitarem, necessitam que o “estado de crise” ou “de
necessidade” se instale previamente nas suas opiniões públicas. As medidas
tomadas na sequência da crise financeira de 2008 foram disso um bom exemplo:
todos concordam que, se acaso tivesse surgido mais cedo, o pacote resolutivo poderia
ter ficado bem mais “barato”. Mas poucos reconhecem que esse calendário de
intervenção sucessiva acabou por ser o único compaginável com a maturação da consciência,
nos respetivos países, da gravidade das questões.
É
neste pano de fundo – o de uma Europa que não pode dispensar a observância das
idiossincrasias dos modelos democráticos dos Estado, com ciclos políticos não
coincidentes – que o ano europeu de 2016 se vai projetar. Todos pressentimos
que a agenda europeia é pesada, ficando a faltar os “events” de que falava Macmillan…
Desde
logo, transita para o ano a delicada questão dos refugiados. O tema testou as
margens da tolerância europeia, revelou entendimentos muito diferentes sobre os
padrões de solidariedade e, para o bem e para o mal, trouxe ao de cima
divergências profundas sobre o modo como os vários Estados encaram as suas
responsabilidades. Uma linha divisória entre uma Europa de centro e leste
europeu, com os reflexos humanitários embotados por uma frieza que poucos
adivinhavam, e uma Europa occidental, mais aberta ao esforço solidário, mais
generosa e disponível para soluções coletivas, ficou patente nas tensas
reuniões de Bruxelas.
E
se a questão dos refugiados, que vinha já a somar-se à tragédia da imigração
clandestina oriunda do Norte de África – ou já esquecemos os milhares de mortos
nas costas italianas, que tanto nos horrorizaram há menos de um ano? – criou
interrogações sobre o funcionamento do acordo de Schengen, os atos terroristas
de Paris, não obstante a sua autoria ter mais de interna do que de externa,
abriram caminho a mais dúvidas sobre as regras que regem a livre circulação
europeia. Em 2016, esta questão estará em cima da mesa, lado a lado com o tema
ultra-sensível da “europeização” do controlo das fronteiras externas. Gostaria
de estar errado, mas temo que possa estar a abrir-se, por aí, uma “caixa de
Pandora” com um efeito dominó sobre outras áreas da vida da União.
É
neste contexto que se insere parte da agenda reivindicativa britânica com que a
Europa está confrontada. A liderança conservadora do Reino Unido há muito que
faz da diabolização de Bruxelas uma arma reivindicativa, nunca tendo optado por
uma pedagogia face à sua opinião pública sobre a vastidão das vantagens que
retira da União. Londres não esteve no “protocolo social”, isentou-se de
Schengen, não aderiu ao euro e não prescinde de receber o seu “rebate” financeiro
anual. Não obstante todas estas “exceções”, o Reino Unido é um dos principais
beneficiários do Mercado interno, usufruindo a City Londrina de vantagens que
lhe advêm da sua rentável singularidade.
David Cameron prometeu aos britânicos um referendo sobre a permanência da União. Para
o ganhar, precisa que a UE faça concessões. Dramatizou a parada e colocou na
mesa uma espécie de chantagem. Desse pacote faz parte a retirada de direitos
sociais aos imigrantes intracomunitários, uma inaceitável ideia a que importa
resistir.
Que
mais nos trará 2016? A Grécia voltará a um novo ciclo de crise? A Parceria
Transatlântica terá pernas para andar? A tensão ucraniana reacender-se-á? Como
evoluirá a “nova” relação com a Turquia? A tendência secessionista da Catalunha,
numa Espanha em crise pós-eleitoral, acentuar-se-á? A liderança alemã será
contestada por uma alternativa anti-austeritária? E a banca europeia, como
reagirá às novas exigências? Mais importante do que tudo: Draghi conseguirá
continuar a sustentar o euro?
(Artigo escrito a convite da "Visão")