quinta-feira, novembro 19, 2015

O tempo e o medo


A França vive dias terríveis. A dimensão dos últimos atos terroristas, a flagrante incapacidade revelada pelos serviços de informação e pelas forças policiais em aprenderem as lições do caso “Charlie Hebdo” induz um ambiente de grande instabilidade no quotidiano dos franceses.

Sempre que um atentado abala uma cidade, emociona-me que a reação de muitas pessoas ouvidas pela comunicação social vá no sentido de não poderem deixar que o terrorismo condicione o modelo comportamental das suas sociedades.

Vivi em Londres quando a City foi abalada por bombas do IRA. Estava em Nova Iorque no dia em que as Twin Towers foram derrubadas. Cheguei a Paris poucas horas depois dos atentados ao Charlie Hebdo. Em todos esses locais, encontrei sempre gente chocada, com temores mas também com coragem. Sinto a maior admiração por quantos teimam em não se deixar abater pelo terror que outros lhes pretendem impor.

Estou certo que os franceses, em especial os parisienses, não deixarão de tentar preservar o património que é o seu quotidiano, passado que seja algum tempo sobre a tragédia. Reforçarão talvez a sua tendência de evitar as “no-go areas” da cidade, aquelas zonas etnicamente de transição, onde se cruzam, com fria estranheza, os olhares furtivos de quantos se sentem diferentes - na raiz humana, no vestir ou nos sinais exteriores, com a religião em fundo.

Infeliz mas inevitavelmente, isso irá contribuir ainda mais para isolar essa França de origem magrebina, saída da imigração e hoje fortemente estigmatizada. Como sair disto? Confesso não saber.

Num passado não muito distante, um certo discurso fazia acompanhar a condenação de atos terroristas desta natureza por um inventário das causas profundas que estariam na sua origem: no exterior, o conflito do Médio Oriente, a intervenção dos EUA no Iraque e a humilhação histórica do mundo muçulmano; no plano interno, pobreza e exclusão, discriminações étnicas e outras, razões que alguns liam como desculpabilizantes. No que me toca, nunca me deixei atemorizar por esses “polícias de opinião” e sempre sublinhei que, de facto, essas “root causes” tinham de ser avaliadas, como elementos para se entender toda a realidade.

Curiosamente, a emergência do Estado islâmico travou por completo a invocação desse discurso. Ninguém com um mínimo de senso tem hoje palavras que possam ser vistas como atenuando a ação desse bando de criminosos que pretende instalar um patético “califado” e que, de caminho, revela os sentimentos e métodos mais bárbaros, rapta e viola crianças e destrói um insubstituível património histórico-arquitetónico. Creio ser uma evidência que está fora de causa negociar com o Estado islâmico, que só importa destruí-lo.

François Hollande, há dias, falava em estado de “guerra”. Alguns acharam que essa linguagem ecoava George W. Bush, com tudo o que isso trouxe de desastroso para o Médio Oriente, bem como as feridas morais que Guantánamo provoca ainda na credibilidade da maior democracia do mundo.

Tenho confiança em que o presidente francês possa gerir essa sua evocação bélica com a consciência de quem dirige a “pátria das liberdades”, não passando linhas vermelhas de respeito pelos valores humanistas e direitos essenciais dos povos, desde logo o próprio povo francês. E, ao contrário de outros, sempre na observância da ordem multilateral.

Além disso, espero que o sentido daquilo que é fundamental – isolar e derrotar o Estado islâmico – possa, finalmente, conduzir a comunidade internacional a chamar à responsabilidade países que se sabe serem cúmplices dessa máquina de terror, que financiam as suas atividades, ajudam ao seu rearmamento, deixam circular os seus quadros, facilitam a recolha do seu petróleo e servem de vias para o tráfico de obras arqueológicas.

Nos dias que correm, Portugal tem de estar ao lado da França, na proporção dos seus meios. Também tivemos os nossos mortos na noite de Paris, um luso-descendente esteve envolvido nos atentados. Nada do que é europeu nos pode ser alheio.

(Artigo que hoje publico na "Visão")

quarta-feira, novembro 18, 2015

Crónica de uma viuvez amarga

Foram mesmo muitos anos. Primeiro nos tempos de Guterres, depois nos idos de Sócrates. Falava-se de António Costa e alguma direita logo se "derretia". Era "inteligente", "culto", "frequentable", como se diz em França. A sua capacidade de diálogo, também a esses olhos, era ímpar, era "outra loiça", na política cá do burgo. As suas passagens pela Administração Interna e pela Justiça foram saudadas, nos "dîners en ville" e nos Verões sociais dos Ancão, como correspondendo a outra forma de fazer política, mais moderna, quiçá mais nobre: "assim, sim!". Antes, ainda no Parlamento Europeu, a sua prestação, se bem que breve, foi muito elogiada, demonstrativa de capacidade internacional. "Temos homem, é um estadista!". Veio depois a Câmara de Lisboa, o que viria a coroar todas as elegias. Ah! e os debates plurais na rádio, urbanérrimos. Com o tempo, brotaram os convertidos, em especial as convertidas. "Votei nele para a Câmara, claro!", ouvi a muitas almas conservadoras, seduzidas pelo sorriso, elogiando a capacidade de fomentar consensos, destacando a contemporaneidade das intervenções. A "solidez", era o epíteto mais comum. Com Seguro ao leme do PS, essa direita entrou em êxtase por Costa: "tem outro carisma", "com ele à frente, outro galo cantaria". Era elogiado pela prestação "firme" na "Quadratura". "Ele pode ser o que quiser, até presidente!"

Um dia, o PS decidiu escolher Costa. "Finalmente!", ouvi eu a muito boa gente que sempre vota à direita. Foi sol de muito pouca dura. Passada uma curtíssima lua-de-mel, o "Observador", fiel dessa balança dos ontens que hoje cantam, de um dia para o outro, descobriu "outro" Costa. De "esperança" passou a ameaça. De "fiável" a "dúbio". Colunistas que lhe gabavam um sorriso que projetava bonomia, passaram a vislumbrar nele um esgar de arrogância e sobranceria. Nas conversas, agora que a Costa competia assumir a despesa da conversa da oposição - titulando a denúncia da austeridade, do duo dinâmico Passos & Costa e dos "doces" de Belém - o olhar mudou. Afinal, era "cínico", "frio", "calculista". Estava rodeado de "radicais". Ah! E "traiu Seguro!", condenavam os que antes apostrofavam pela esquinas o antigo líder. "Não se esqueçam que ele esteve no governo com o Sócrates", surgiu como a suprema condenação retroativa. Umas vezes era o "lá foi ele a Évora!", doutras o "vejam que ele nem vai a Évora!". Blogues, facebooks e twitters correlativos entraram na campanha surda, às vezes canalhamente racista, frequentemente caluniosa, declinantemente hostil. Afinal, Costa era Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Que tristeza: mas a esquerda é sempre assim, "pecébe"? 

Vieram as eleições. Costa fez uma opção, polémica, por sua conta e risco. E leia-se agora o que dele se diz: "usurpador" é quase elogio no catálogo dos insultos. Devo confessar - mas deve ser do meu feitio, com certeza - que, estando onde sempre estive, não consigo deixar de achar alguma graça a tudo isto. E dá-me imensa vontade de rir: deles e delas. Apetece-me mesmo aconselhar-lhes: habituem-se!

terça-feira, novembro 17, 2015

Ataques em França (7)


Declaração telefónica ao "Jornal de Negócios"
"A França está em guerra" é uma expressão forte de François Hollande que abre caminho a mudanças mais centradas no plano interno do que externo, até porque a França sempre foi um país muito preocupado e cuidadoso – muito mais do que os Estados Unidos – sobre o cumprimento dos compromissos de natureza multilateral. É uma expressão que ajudará a justificar uma acção mais musculada no plano interno perante um inimigo que, sendo externo, mora também no próprio país. Entre os cinco milhões de muçulmanos que o país acolhe há claramente pessoas que não têm a menor lealdade à França.

Mas mesmo no plano internacional não há muito mais que a França possa fazer: pôr tropas num terreno que é um lamaçal? O que pode é denunciar quem for culpado e complacente, por exemplo, com que financia o "Estado islâmico" e exigir uma denúncia mais firme dos muçulmanos moderados contra esta agenda medieval.

No plano internacional, temos de saber qual é o inimigo principal e o secundário, e nessa hierarquia de prioridades é evidente que o "Estado islâmico" é o alvo a abater. Estar com preciosismos nesta matéria é politicamente irresponsável. É preciso fazer uma "aliança com o diabo": com Bashar, com o Irão e com a Rússia, se necessário.

Outra questão: a liberdade de circulação no espaço Schengen poderá ser condicionada e o próprio Tratado pode ter de ser ajustado, mas temos de defender tanto quanto possível este espaço.

Não sou defensor de que a Europa deva necessariamente abrir as portas a todos os que a procuram – refugiados económicos e humanitários incluídos – mas não posso deixar de lamentar que os atentados de Paris estejam a ser usados por alguns europeus para promover uma comparação miserável entre refugiados e terroristas. Quem nos procura são as vítimas do terrorismo, não quem o canaliza. Daí que a minha primeira preocupação seja relativamente ao destino dos refugiados que já se encontram em território europeu e que nem são muitos tendo em consideração que somos 500 milhões. No horizonte mais longo, é preciso pedir mais responsabilidades aos países árabes, à Arábia Saudita, ao Qatar, etc.

domingo, novembro 15, 2015

Atentados em França (3)

O debate no "Conversas Cruzadas" com Daniel Bessa e Manuel Carvalho da Silva, sob a moderação de José Bastos.

"Os argumentos do terrorismo"

Há mais de uma década, escrevi no "Diário de Notícias" este artigo, quando ainda não havia Estado islâmico, quando a França não tinha feito a sua (meritória) intervenção do Sahel, quando na Líbia não tinha sido destruída como Estado. Lembrei-me desse texto hoje.

A reacção da comunidade internacional perante actos terroristas permanece marcada por um debate ideológico que, sendo importante como exercício político, reduz forçosamente o consenso em torno das medidas para lhes fazer face.

Uma certa direita abespinha-se quando alguém pretende trabalhar as raízes do terrorismo, sejam os quadros de exclusão social e política em que o mesmo prospera, sejam os conflitos regionais que ajudarão a potenciar a radicalização. Nela se encontram os que reagem belicosamente quando alguém coloca em causa a bondade da intervenção no Iraque ou  questiona as conquistas estratégicas que Washington tem feito sob a capa da luta anti-terrorista. Para esses polícias do espírito, arguir com a injustiça da situação palestiniana ou com as ilegalidades face ao Direito Internacional, como elementos que têm que ser avaliados no quadro dos fundamentos da vaga terrorista, significa, de imediato, colocarmo-nos no universo da justificação, que o mesmo é dizer, ajudar a causa dos terroristas. Este “terrorismo” ideológico deve ser denunciado, sem contemplações, como um novo maccarthismo, porque as situações de injustiça ou de ilegalidade não deixam de o ser apenas pelo facto de terem sido recuperadas por uma agenda radical.

Alguma esquerda, por seu turno, numa obstinada cegueira anti-americana, esquece o carácter retrógrado da mensagem do islamismo radical, a imposição da sua mundividência que está subjacente às motivações terroristas e afasta, com uma facilidade pouco abonatória, o frontal questionamento face à natureza bárbara dos actos indiscriminados que ciclicamente atingem civis inocentes. Numa ambiguidade imperdoável, essa mesma esquerda esquiva-se a condenar liminarmente os actos terroristas, como que temendo que, ao fazê-lo, pudesse pôr em causa a legitimidade de outras reacções de natureza violenta, em casos extremos de lutas de libertação. Ao colocar a questão palestiniana, ou a presença estrangeira no Afeganistão ou no Iraque, como a directa essência justificativa do problema, esta doutrina parece esquecer que, mesmo que tais questões hoje se resolvessem, por um milagre que ninguém espera, as fontes da instabilidade islâmica radical iriam continuar, porque já adquiriram uma dinâmica própria que ultrapassa tais elementos conjunturais. Além disso, o facto de alguém se colocar contra os EUA, por muito desfavorável que possa ser a imagem da sua administração, não lhe confere um automático certificado de honorabilidade ou atenua qualquer culpabilidade, pelo que este maniqueísmo primário se torna igualmente inaceitável.

As recentes acções terroristas com alvos indiscriminados configuram um figurino novo de desestabilização, diferente das acções selectivas que predominaram no passado. E suscitam a grande questão que todos somos chamados a responder: estamos ou não dispostos a dar luta, política e prática, a uma agenda islâmica de assalto radical às sociedades seculares, que são a forma organizada de vida em que queremos assentar o nosso futuro?

Para além da necessidade de medidas de prevenção e combate aos actos terroristas, e mesmo com vista a conferir-lhes legitimidade, é importante chamar a racionalidade a terreiro e procurar saber se, à esquerda e à direita, estamos preparados para desenvolver uma acção política de promoção dos valores das sociedades laicas, das formas de expressão democrática para o exercício do poder político, de respeito pelo Estado de direito, de defesa dos direitos humanos internacionalmente consagrados, nomeadamente os direitos das mulheres e das minorias.

Esta é a questão essencial, para cuja resposta é também necessário que se ouça, mais alto do que se tem ouvido até agora, a voz do islamismo moderado, aquele que consiga conciliar o respeito por uma religião que é promotora de elevados valores éticos com a preservação das regras básicas de convivência e tolerância, próprias das sociedades modernas.

Este é o único debate ideológico que tem uma legitimidade incontroversa. Não perceber isto é contribuir para a nossa divisão e a nossa hesitação perante um adversário que põe em causa todos os modelos de sociedade onde hoje cabe, e queremos que continue a caber, a salutar confrontação política que só a democracia nos permite.

Viagens aéreas


Cada vez mais, as viagens aéreas estão transformadas num tormento, com as crescentes exigências de segurança. Depois da tragédia de Paris, posso crer que esses controlos devem estar hoje no máximo, com toda a inevitável incomodidade que isso provoca em quem viaja. Cada vez tenho menos paciência para aquela cena de tirar os computadores, para os saquinhos dos líquidos, para os sapatos e os cintos e tudo o resto que tilinta. Mas é inevitável, para quem tem de viajar.

Nos dias que correm, há que ir para os aeroportos com uma imensa antecedência e, no caso das viagens entre Lisboa e Porto, prefiro cada vez mais os comboios, de que não gosto por aí além, à ideia de duas "revistas" desagradáveis. Ainda no que toca a aviões, dou-me por feliz por não ter de fazer, nas próximas semanas, duas deslocações de trabalho que estavam planeadas ao estrangeiro. 

Mas nem sempre foi assim. Recordo-me bem da minha primeira ida aos Estados Unidos, logo no início dos anos 70. O "shuttle" aéreo entre Washington e Nova Iorque funcionava da seguinte forma:

1. Entrávamos no aeroporto e dirigiamo-nos, sem qualquer reserva prévia, à porta de embarque. Aí, num balcão, colocávamos a bagagem para despachar.
2. Recebíamos uma senha numerada, para recuperar a bagagem à chegada.
3. Davam-nos uma outra senha, também numerada, mas de outra cor, para embarcar.
4. Não havia lugares marcados, era "free sitting", com a ordem de chamada para o avião pelo número.
5. Pagava-se o bilhete durante a viagem, como hoje acontece com as compras a bordo.
6. À saída do avião, mostrávamos o talão eram-nos entregues as malas.

Controlo de metais, identificação dos passageiros, revista de bagagens – nada disso existia nesses voos internos.

Agora, vou contar-lhe uma experiência mais recente, cerca de dois anos, num determinado aeroporto. Vou referir os controlos por que passei:

1. Entrada do aeroporto: radiografia de toda a bagagem e controlo de metais nas pessoas que acediam ao hall, mesmo que não fossem viajar.
2. Balcão de "check-in": apresentação do passaporte e da reserva. Recebemos o cartão de embarque.
3. Balcão, ao lado, de "conferência de documentos": apresentação do passaporte e do cartão de embarque. Carimbo no cartão de embarque. Recebemos o boletim de saída, para preencher.
4. Polícia de fronteira: verificação e carimbagem do passaporte, do cartão de embarque e entrega do boletim de saída preenchido.
5. Segurança: radiografia da bagagem de mão, controlo pessoal de metais, controlo separado de líquidos, de computadores e telemóveis.
6. Alfândega: apresentação do passaporte e cartão de embarque. Conferência apenas.
7. Porta de embarque: apresentação do passaporte e cartão de embarque, que nos é devolvido. Registo informático do passageiro.
8. Início da "manga" (a três metros do controlo anterior): conferência do passaporte e cartão de embarque, deste ficando retida a parte mais larga.
9. Final da "manga", junto à porta do avião: um funcionário faz a abertura e verificação manual de toda a bagagem de mão.
10. Também no fim da "manga", junto à porta do avião: outro funcionário procede à revista manual, com detetor de metais, do vestuário.
11. Já dentro do avião: é verificada por um funcionário a conformidade do talão correspondente ao assento com o passaporte.

Uma nota final: este caso passou-se no aeroporto da capital de um país muçulmano.

As viagens aéreas já não são o que eram! Com justificada nostalgia se pode delas dizer: "bons velhos tempos!"

sábado, novembro 14, 2015

Atentados em França (2)


O que disse à TSF sobre a "confusão" procurada em certos países do centro e leste europeus entre o terrorismo e os refugiados, bem como sobre o fracasso das medidas preventivas para evitar este tipo de atentados. 

Os ataques em Paris


Deixo aqui o que disse no telejornal da TVI.

Paulouro das Neves


Chega-me a notícia da morte do embaixador Paulouro das Neves, alguém que foi, sem o menor exagero, um dos mais brilhantes diplomatas portugueses das últimas décadas. Era, além disso, um grande homem de bem e de caráter.

Houve dois ou três nomes da carreira diplomática portuguesa - não mais! - sob cuja orientação gostaria de ter trabalhado, pela certeza antecipada de que, com eles, o que aprenderia me iria ajudar a ser um melhor profissional. José César Paulouro das Neves era um deles.

A boa "fama" de Paulouro - como as Necessidades o conheciam - precedeu o nosso primeiro encontro pessoal. Lia-lhe a excelente "telegrafia" (as comunicações que enviava ao ministério) e amigos falavam-me dessa figura suave, muito culta, com um sentido de equilíbrio que tornava as suas análises um modelo de bom-senso e rigor. Todos quantos com ele trabalhavam ficavam seus fãs, pela pedagogia não impositiva que  sabia transmitir e pela humanidade que o seu trato revelava. E, naturalmente, já lhe conhecia a "linhagem" democrática, de quem estava ligado, pela família, ao histórico "Jornal do Fundão".

Tive as primeiras conversas com Paulouro das Neves em Moçambique, quando um dia por lá passei, em trabalho, nos anos 80. Cruzámo-nos depois, muitas vezes, ao longo do ciclo dos grandes postos que o seu excecional percurso profissional amplamente justificou: Madrid, representação junto da União Europeia, Paris e Roma. Em todo o lado, ficou a marca de um homem e de um profissional excecional - e quem me conhece sabe que afirmo isto há vários anos. Era também um excelente conversador, uma pessoa sorridente e amável, disponível e atento aos outros.

Depois da sua aposentação como embaixador, Paulouro das Neves colaborou com o presidente Jorge Sampaio e dedicou-se ao ensino universitário tendo, há três anos, publicado um livro notável sobre a diplomacia, que vivamente recomendo, e que, inexplicavelmente, passou sem grande nota pública: "Rituais de entendimento - teoria e prática diplomáticas". Há um ano, tive a honra de ser convidado a suceder-lhe na universidade onde lecionava.

Recordo que, um dia, numa casual passagem minha pela embaixada em Paris, que ele então chefiava e onde eu o fora cumprimentar, pressentiu-me a escrutinar o seu pequeno cabinete, aquele que então cabia ao embaixador, na geografia bizarra que sempre foi a daquela chancelaria: "Está surpreendido? O gabinete do embaixador em Paris é, de longe, o menos digno de todas as grandes embaixadas portuguesas. É uma pena, mas é assim mesmo!". E era pura verdade. Fiquei com isto na memória e, quando eu próprio fui embaixador em Paris, e aproveitando a crescente "desertificação" humana da casa, consegui levar a cabo as obras necessárias para dar ao representante diplomático português o espaço de trabalho e representação bem mais adequado de que hoje dispõe. Tive pena que ele nunca tivesse o ensejo de visitar esse novo espaço, de que seguramente teria gostado, ocasião que aproveitaria para lhe oferecer um almoço na "Brasserie Lipp", um ambiente que ele tanto apreciava e onde, por mais de uma vez, celebrámos a nossa amizade.

Paulouro das Neves esteve muito doente, há cerca de dois anos. Recuperou de forma notável, parecia renascido e, depois disso, com Jorge Sampaio e um pequeno grupo de amigos, organizámos com ele um simpático almoço em Sintra, de que guardo uma fotografia de comum boa disposição. Disposição que hoje perdi, ao saber do seu infeliz desaparecimento.

À sua família, deixo a expressão sentida do meu pesar.

Paris

1. A França merece toda a nossa solidariedade. A França paga, nestes ataques, o facto de ser o país europeu mais determinado na luta contra o Estado islâmico e organizações similares a ele ligadas. O terrorismo nunca é totalmente evitável, mas os atentados de ontem revelam falhas flagrantes no sistema de "alerta precoce" de um país que sabia ser o principal alvo europeu dos terroristas islâmicos.

2. Estes ataques, pelo seu caráter coordenado e eficaz, demonstram uma sofisticação fora do vulgar. Significam que, no seio da União europeia, o Estado islâmico dispõe hoje de uma rede de notável capacidade, seguramente baseada em cidadãos nascidos no território europeu  mas cuja "pátria" afetiva está algures. Lutar contra inimigo "da porta ao lado" será sempre uma tarefa muito complexa, se se pretende preservar a sociedade de uma onda de islamofobia e de ódio étnico-religioso. 

3. O acordo de Schengen, que representou uma conquista da maior importância para a Europa, na criação de um grande espaço de liberdade de circulação, pode estar ferido de morte. Já antes destes atentados se ouviam as vozes contra Schengen. Agora, os adeptos das fronteiras vão emergir como cogumelos, muito embora, se se provar que, neste caso, a maioria dos terroristas são franceses, as fronteiras valham de pouco. 

4. Não é despiciendo o efeito que estes atentados venham a ter na vida política francesa, com as forças extremistas a beneficiarem de uma onde de medo, que afeta a racionalidade e abre caminho à desconfiança e aos ódios fáceis. Quero crer que a França, onde o culto das liberdades é muito forte, saberá resistir às pulsões "maccartistas" e saberá preservá-las no essencial, na vaga securitária que vai seguir-se. O objetivo dos terroristas é perturbar o nosso sistema de vida, torná-lo tributário dos medos que nos infundem. Quando nossa liberdade vier a ser posta entre parêntesis por virtude de ataques como estes, os terroristas terão ganho uma importante batalha.


sexta-feira, novembro 13, 2015

Helder


Às vezes, sinto algum embaraço pelo facto de não poder estar com amigos que lançam livros, que são "estrelas" de um evento, que surgem na ribalta lisboeta. Embora estando por cá, as agendas impossibilitam que nos encontremos. 

O Helder Macedo está por Lisboa e eu não o "consigo" encontrar. Hoje, podia ir vê-lo à "Barraca", às 18.30, mas acontece que estarei em Santarém, noutro compromisso.

De manhã cedo, o David Dinis, na sua "newsletter", dizia que o Helder "é uma espécie em vias de extinção: culto, cosmopolita, elegante, sedutor, audacioso - e implacável até ao osso". E chamava a atenção para esta entrevista.

Neste ano em que o Helder faz 80 anos - ano de festa para ele, para a Suzete e para todos os seus amigos -, e não o tendo encontrado em Lisboa, prometo solenemente que, daqui a dias, irei expressamente a Oxford, para estar presence na grande homenagem que lhe é dedicada.

Para quem não conhecer a escrita mágica do Helder, recomendo que comece por este "Romance" que, por acaso, não o é... 

Paula Vieira Branco


Chegou a notícia da morte da Paula Passos de Gouveia Vieira Branco. Parte cedo, como cedo tinha terminado uma carreira diplomática que se sabia que ia ser brilhante, travada por uma doença contra a qual pouco se pode fazer, a não ser esperar. Para quem a conheceu, fica a imagem de uma pessoa muito inteligente, interessante, culta, com um espírito aberto. Uma mulher bonita, elegante. E, como os anos mostraram, também uma mulher muito corajosa, que lutou como e quanto pôde. Nos últimos anos "viamo-nos" no Facebook, uma janela para o mundo em que ela cultivava algumas das suas muitas amizades. Deixo ao Zé um abraço que é extensivo a toda a família. E esta imagem da nossa Tapada.  

Fernando Pinto


Não sei qual vai ser o futuro da TAP. Qualquer que ele seja, quero deixar aqui uma nota de profunda admiração pelo trabalho feito na companhia por Fernando Pinto e a sua equipa. Como embaixador de Portugal, tive o privilégio de acompanhar, e de dar o meu modesto contributo, para aquilo que foi uma extraordinária expansão da ação da TAP no Brasil, feita de visão e grande profissionalismo. Como português, sinto que devo um agradecimento muito sincero a Fernando Pinto por tudo quanto fez pela TAP, enquanto empresa pública.

A última bala


O país aguarda o que o chefe do Estado irá dizer, na sequência da queda do governo minoritário PSD/CDS. Há algo de ironicamente trágico na situação de Cavaco Silva: a mais importante decisão que teve de tomar durante o seu mandato surge quando já não dispõe de poder de dissolução do parlamento.

O presidente está na incómoda situação daquela figura que, nos filmes, só tem uma bala para se defender. Não pode falhar o tiro, tanto mais que o ciclo político lhe não dará mais nenhuma oportunidade para retificar o que agora vier a fazer. Cavaco Silva já percebeu que, quer ele goste quer não, a principal marca que deixará na vida política portuguesa será a que vai decorrer dos efeitos da decisão que vier a assumir nesta conjuntura.

De Cavaco Silva se dizia que, com orgulho, afirmava ser alguém que “não tem dúvidas e raramente se engana”. Talvez nesta linha, e para que o país disso ficasse bem ciente, vimo-lo anunciar, que tinha “todos os cenários estudados”. Ainda bem! Isso legitima que possamos esperar, não apenas uma rápida resolução da crise, mas igualmente uma sábia saída, em particular bem ponderada nos seus efeitos, para o impasse entretanto criado.

Recordo que, perante o resultado eleitoral, o presidente reagiu com estranho destempero, como se estivesse a passar um raspanete a quem “não votou bem". O discurso, lido como uma provocação à esquerda, favoreceu o raro caldo comum de cultura de diálogo que germinava no seio desta. Duvido que fosse este o efeito pretendido pelo presidente que, com algum irrealismo e até deselegância, pareceu procurar potenciar divisões no seio dos socialistas. Corrigiu a atitude na tomada de posse do breve governo, esperando-se agora que não recue nessa postura menos dramatizada, mais consonante com a responsabilidade de alguém que deve saber que qualquer palavra sua é escrutinada com atenção na ordem externa.

É que o país vive um tempo em que a fragilidade da sua situação económica está ainda muito dependente do humor dos mercados. Não devem ser estes a determinar as decisões de escolha do exercício democrático, mas é obrigação patriótica mínima dos atores políticos tentar evitar que a guerrilha interna fique ao serviço de uma imagem de instabilidade, que acabe por afetar os interesses externos de Portugal. Se aos partidos é legítimo pedir que tenham isso em atenção, para o chefe do Estado essa é uma exigência básica.

A situação atual, para Aníbal Cavaco Silva, deve assemelhar-se a um beco. Mas só se pode sair de um beco recuando. Ir em frente, significa ir contra a parede. Concedo que o leque das opções que o presidente tem perante si não é brilhante. Escolher entre o menor dos males não deve ser estimulante. Mas é o que tem de saber fazer. O país aguarda.

quinta-feira, novembro 12, 2015

O "blazer"


Eram duas figuras masculinas, um tanto caricatas. Dois alemães imensos, na casa dos cinquenta e tantos anos. Com um aspeto bizarro. Um deles, loiro, tinha uma t-shirt com menção a Chipre, creio que com um sol desenhado. O outro recordo que tinha um lenço "à Arafat" e um boné estranho. Ambos com proeminentes barrigas, muito "Oktoberfest". 

Abordaram-me hoje, junto ao "Paris em Lisboa", no Chiado. Perguntaram-me se sabia falar inglês. Pensei que queriam direções. E, de certo modo, queriam. Queriam saber onde eu tinha comprado o meu "blazer"! Expliquei que não era possível terem acesso ao local onde aquele casaco fora feito, mas que, por toda a Lisboa, em imensas casas comerciais, podiam encontrar casacos idênticos. 

Foi então que veio a surpresa: "É que só em Portugal é que vemos casacos desses! Na Alemanha ninguém veste assim. E aqui há imensa gente com eles. É um traje nacional?". Olhei em volta e, de facto, vi duas ou três pessoas de "blazer" azul, com botões metálicos, calças cinzentas, tal como eu estava vestido. Nunca me tinha passado pela cabeça que a frequência deste tipo de "blazer" pudesse ser associada a Portugal. Vou passar a estar mais atento.        

Reflexões sobre o futuro

O PSD/CDS mantém uma acentuada crispação política por ter sido afastado do poder. É natural e, até certo ponto, compreensível. O partido ganhou as eleições e a sua expetativa era poder governar. Só que não manteve a maioria absoluta de que dispunha nos últimos quatro anos, perdendo mesmo 700 mil eleitores.

Em 2011, com essa maioria absoluta, Passos Coelho recusou a proposta que o PS lhe fez para partilhar o governo, para implementar o "memorando de entendimento" com a Troika. Desta vez, para governar, a coligação precisava de obter, pelo menos, a abstenção do PS. O PS considerou que os seus eleitores não queriam que apoiasse, ou sequer tolerasse, uma política da qual o partido discordava em absoluto e contra a qual se tinha batido durante quatro anos. Aliás, António Costa tinha dito claramente, durante a campanha, que não daria o seu apoio a um governo de direita. Como tal, o PS recusou-se a dar esse "nil obstat". Não pode ter sido surpresa para ninguém.

O PS sabia que, para poder ter o gesto que teve, tinha de apresentar uma alternativa, sem o que deixaria o país sem governo. Pode não se gostar desssa alternativa e, em especial, pode desconfiar-se se ela terá condições de sobrevivência e se o modo como ela está construída tem a solidez e a coerência para garantir uma governabilidade estável. Como já disse em diversas ocasiões, partilho fortemente essas dúvidas. E ao ver a CGTP à volta de S. Bento, ao ouvir Jerónimo de Sousa interrogar-se sobre a racionalidade da regra do limite do défice em 3% do PIB e Catarina Martins a contrariar, com imperdoável ligeireza, as sensatas palavras de Mário Centeno ao "Financial Times" sobre a dívida, só encontro motivos para manter a minha preocupação. 

Sei que isto não é popular no PS, mas eu falo apenas pela minha cabeça e espero para ver: não confio em que o PCP e o Bloco se mantenham num apoio leal a um eventual governo do PS. Se e quando eu tiver razão - e gostava muito de estar errado - o eleitorado ajuizará em conformidade. A democracia tem as eleições como terapêutica para as crises. 

Mas há uma preocupação que eu não tenho. É com António Costa, com o PS e com o seu compromisso para com as metas europeias. Tenho total confiança no líder do PS - até agora só tenho ouvido dizer que perderam essa confiança pessoas que não votaram nele -, um político com provas dadas, com quase quatro décadas de empenhamento democrático, que foi um excelente ministro, um magnífico presidente da Câmara de Lisboa. Além disso a Europa conhece-o: foi vice-presidente do Parlamento Europeu e presidiu a conselhos de ministros da União Europeia. Não lhe falta experiência e nunca ninguém o viu, alguma vez, falhar no seu empenhamento em procurar garantir o prestígio para Portugal na Europa.

Se o PS for governo sê-lo-á pelo facto de, não tendo uma determinada solução minoritária conseguido garantir apoio parlamentar, o presidente da República se ter visto obrigado a recorrer à segunda solução minoritária que lhe foi apresentada. Pode compreender-se que Cavaco Silva não goste de ver a sua década de Belém "coroada" com um governo de esquerda no poder. Mas, enfim, e para a História, sempre se poderá dizer que terminou do mesmo modo que Mário Soares e Jorge Sampaio...

quarta-feira, novembro 11, 2015

Facebook


Há uns anos, alguém me disse: "então não colocas nada na tua página do Facebook? Increvi-me como teu amigo, mas, afinal, nada..." Não tinha aberto nenhuma página naquela rede social mas, por curiosidade, fui ver. E não é que lá estava eu, com uma fotografia que alguém tinha retirado não sei bem de onde?! Alguém tinha criado uma página em meu nome, com uma profissão totalmente inventada.

Escrevi ao Facebook. Expliquei a situação, pedi o fim da página, mas sem efeito prático, exceto na desaparição da menção da profissão. Decidi então abrir uma página própria. Pelo menos, podia controlá-la. De início, coloquei lá escassos textos, na maioria dos casos chamando a atenção para posts deste blogue ou para artigos que publicava em jornais. Depois, com o tempo e com o tempo que ia tendo, fui depositando naquele espaço umas coisas leves, despretensiosas, graçolas, chamando a atenção para coisas curiosas ou de interesse. Fui sempre muito errático nas minhas respostas ou comentários. Às vezes, passavam-se semanas sem escrever uma palavra. Nalguns dias, "dava-me" para responder, opinar. Sem a menor regra, o que levava a "ofensas": então eu respondia a uns e não a outros? Não percebendo as pessoas que a liberdade é isso mesmo.

Não atribuia a mais pequena importância ao Facebook e - não vão acreditar, mas é verdade! - não sabia que podia "ver" as páginas dos outros. O meu amigo Luis Castro Mendes é testemunha dessa surpresa, perante a "revelação" que, numa noite de Estrasburgo, me fez. Eu só olhava a minha página! Não era por narcisismo, era por nabice informática! Verdade seja que nem essa "descoberta" me fazia ir ver o que os outros "postavam". Raramente o fiz, talvez uma vez por semana, por alguns minutos.

O resultado global da minha experiência no Facebook só não foi surpreendente para mim porque "eu sei do que a casa gasta", isto é, sei o que o país informático é - embora o Facebook, os blogues e o Twitter tenham clientes muito diversos, se bem que alguns comuns, como era o meu caso. 

Inscreveu-se na minha página (diz-se "portal", não é?) imensa gente como "amigo". Os comentários começaram a emergir, na maioria dos casos serenos, mesmo quando frequentemente contraditórios, noutros mais agressivos. Também os "gostos" emergiram e uma coisa chamada "toques", que nunca percebi muito bem o que era. Alguns dos comentários passaram as marcas que eu considerava razoáveis e, com naturalidade, os seus autores foram postos fora de cena. Em "waiting list" para "amigos" está ainda bastante mais de um milhar de pessoas que, ao que me dizem, só podem comentar se acaso eu lhes atribuir essa qualidade.

Nos últimos meses, o Facebook cansou-me. Alguns comentadores entraram muitas vezes em violenta troca de palavras com outros. A radicalização política seguiu a dualização ideológica em que o país caiu. O espaço tornou-se tenso, desconfiado, ácido, às vezes insultuoso. Algumas pessoas não gostaram do qualificativo de "loja dos trezentos das redes informáticas" como o designei. Dei a mim mesmo um tempo para reflexão sobre se por lá continuaria. Porém, a "gritaria" escrita dos últimos dias decidiu-me: deixei ontem de "postar", não consulto a minha página nem a dos outros, não vou ver as mensagens. Quem quiser ter a simpatia de ler o que escrevo tem este blogue como espaço de consulta.

Voltarei ao Facebook? Não sei. Pelo menos, nos tempos mais próximos, estou "out". Só peço que ninguém leve a mal, por favor.

PS - Há menos de cinco minutos, recebi um telefonema de um jornalista, perguntando se o anúncio da decisão de suspender a presença no Facebook podia ter uma leitura política... Ah! e o PS com que se inicia este parágrafo significa "post scriptum"...

Paulo Cunha e Silva


Não conheci bem Paulo Cunha e Silva, que agora morreu, subitamente. Falámos apenas algumas vezes. Creio que o nosso último encontro foi há pouco mais de um ano, num restaurante do Porto, onde ele estava com Rui Moreira e eu acompanhado do seu amigo Artur Castro Neves, também já desaparecido. Trocámos algumas breves impressões sobre o belo momento do Porto, como cidade atrativa.

Da obra cultural que Paulo Cunha e Silva estava a desenvolver no Porto só recebia notas positivas. A memória de quem trabalhou com ele no passado era, em absoluto, idêntica. Era uma grande figura da ação cultural e é uma banalidade dizer que dele se esperava ainda muito. Mas as banalidades, às vezes, são grandes verdades.

Por razões que os tempos muito próximos tornarão mais evidentes (mas nada a ver com política, digo desde já, para evitar especulações!), tinha agora a perspetiva de poder vir trabalhar com Paulo Cunha e Silva bastante mais de perto. E mantinha uma expetativa muito positiva quanto a isso. A sua morte é uma grande perda para o Porto e para o país.  

Ao café


Tenho uma tertúlia semanal (peço desculpa por ter faltado ontem à sopa de lebre) onde cada um dos convivas pede o café de forma diferente: curto com chávena aquecida, longo em chávena fria, vice-versa em cada um dos modelos, passando por mim que, para eterna surpresa dos empregados, peço "um café normal".

Hoje, ao almoço, vi emergir uma cena idêntica. Até que uma senhora presente se saiu com esta: "para mim, com a asa para a esquerda, por favor". Todos nos rimos, mas fiquei a pensar: seria canhota ou teria sido por ser hoje?

A independência de Angola e os "retornados"


Hoje, quatro décadas exatas sobre a independência de Angola, deixem-me que volte a contar aqui uma cena ocorrida comigo, em S. Paulo, em 2005, na inauguração de uma exposição de pintura de José de Guimarães, na FIESP.

Eram os meus primeiros tempos no Brasil e muitas pessoas queriam conhecer o novo embaixador, recém-chegado. A certo passo do cocktail de abertura do evento, aproximou-se de mim uma senhora idosa que, com extrema simpatia, me disse, com um sotaque já muito brasileiro, mas onde se detetava a sua origem portuguesa: "Tenho sempre muito orgulho em conhecer os representantes da minha pátria! Por isso, queria saudá-lo, senhor embaixador, e desejar-lhe muitas felicidades para o seu trabalho".

Fiquei naturalmente sensibilizado com o gesto daquela simpática compatriota, que agradeci, tendo-lhe perguntado, com naturalidade, quando tinha vindo para o Brasil. Os bonitos olhos da octogenária entristeceram, antes de dizer: "Nem me fale nisso! Vim de Angola, em finais de 1974, deixando para trás tudo o que havia ganho numa vida de trabalho. Com o desgosto, o meu marido acabou por falecer pouco depois da chegada ao Brasil. Graças a amigos, consegui mudar a minha vida. Mas olhe! Nunca perdoarei àquela bandidagem que, no nosso país, fez o 25 de abril!"

Não tive a menor coragem para retorquir à senhora que, com o maior dos orgulhos, eu também fazia parte da "bandidagem" que fez o 25 de abril, que essa fora a data que dera a liberdade à pátria de que ela tanto gostava e que esse fora um dos dias mais felizes da minha vida. "Compreendi" a senhora? Claro que sim. Ponho-me no lugar dela e pergunto-me se apreciaria que lhe oferecessem cravos vermelhos... 

Nunca me passaria pela cabeça tentar explicar àquela senhora, tal como nunca o faço quando cruzo outros portugueses que viveram e sofreram esses tempos, que a tragédia da descolonização desordenada foi, como bem dizia Ernesto Melo Antunes, a outra face da tragédia que foi a colonização. E que, por muitas culpas que possam ser atribuídas aos responsáveis políticos que geriram o país logo após o 25 de abril, a responsabilidade maior competirá sempre àqueles que, tendo tido a oportunidade histórica de negociar atempadamente a independência das colónias, não o fizeram, pela cegueira da ditadura que defendiam e nos faziam sofrer - a nós, portugueses, e aos povos dessas mesmas colónias, convém também nunca esquecer.

O imenso respeito que tenho pelo drama que marcou a vida dos "retornados", que sempre afirmo publicamente, vai de par com aquele que não tenho pela classe política que o 25 de abril, em boa hora, derrubou.

terça-feira, novembro 10, 2015

O guindaste


Notei esse guindaste desde os primeiros tempos em que cheguei a Luanda, no ano de 1982. Muito alto, estava quase no topo da avenida que sai da Mutamba para o hospital Josina Machel, do lado direito. Eu olhava o guindaste sempre que por ali passava. Ao lado, havia um grande prédio por concluir, de que se viam as estruturas em cimento. Quase quatro anos depois, quando parti, o guindaste continuava ali, exatamente na mesma posição, com a obra no mesmo estado. Para mim, essa ficou, para sempre, como a imagem da Angola de então, parada no tempo, à espera de uma paz que só viria muitos anos depois.

Amanhã, 11 de novembro de 2015, passados 40 anos desde o dia em que Angola formalmente se tornou independente, lembrei-me desse guindaste, sei lá bem porquê.  

segunda-feira, novembro 09, 2015

O "vigésimo" premiado

As ilusões com que se procura "enganar o parceiro", nos dias que correm, são muito mais sofisticadas do que eram no passado. Aos incautos que, da província, vinham a Lisboa, acontecia, por vezes, serem ludibriados por espertalhões que lhes tentavam "vender gato por lebre".

Um dos truques mais conhecidos era o do "vigésimo premiado". Em que consistia? Alguém se aproximava de uma potencial vítima e dizia estar num embaraço: ia partir dentro de minutos num barco para África ou para o Brasil e não tivera tempo de ir trocar uma cautela de lotaria que comprara dias antes e que tinha nesse dia sido premiada. Em apoio do que afirmava, mostrava a lista da Santa Casa (provavelmente relativa a uma outra semana) que "provava" o "valor" desse talão - geralmente o chamado "vigésimo", correspondente a 1/20 de um bilhete completo. O que era então proposto ao incauto? Que ficasse com o "vigésimo", que logo que trocado lhe garantiria uma boa maquia, e que adiantasse ao apressado viajante "apenas" uma compensação financeira razoável - geralmente todo o dinheiro que o inocente trazia consigo. Este, convencido de que fazia um ótimo negócio, era desembolsado e ficava na mão com o "vigésimo", que, afinal, quando chegasse à casa de câmbios, verificaria que nada valia.

O truque do "vigésimo premiado" já tem barbas mas, às vezes, ainda há quem caia nele. Mas também há quem perceba que o "vigésimo" afinal, não vale nada e não o aceite. Cada vez há menos inocentes, embora esses, às vezes, ainda continuem a jogar na lotaria. É que a miragem da "sorte grande" é sempre muito atrativa.

(em tempo: a subtileza é uma arte que eu não domino)

Da cartola


Com a aproximação de um possível novo governo, o trabalho das pitonisas, mais ou menos mediáticas, começa a "apertar". Ontem foi um comentador televisivo, a partir de amanhã serão os jornais. O modelo é simples: juntam-se alguns nomes de quem ciclicamente se fala, somam-se outros da lavra do opinador e, quando interessa, pintalga-se tudo com algum "gossip", às vezes para tentar promover, outras para procurar "queimar". 

À volta de um café, discutia isto hoje com um amigo. E ambos concluímos que, com tantos debates televisivos, tantos colóquios, conferências e ajuntamentos similares, o "baralho" possível de governantes já é, com certeza, do conhecimento de todo o país. Já "toda a gente" foi ao Prós e Contras, já todos debateram com todos as temáticas mais especiosas, desde os animados "programas da manhã" dos canais de sinal aberto até aos mais recônditos frente-a-frente em obscuros canais de cabo. Haverá, nalguma remota universidade, numa PME de sucesso ou num posto elevado da administração pública, alguma "novidade" que ainda seja possível tirar da cartola... tanto mais que os "coelhos" que nos últimos anos dela saíram entrarão, finalmente, num mais do que merecido pousio?

Noutros tempos, as coisas não eram assim. Conta-se que Salazar ouvia alguns escassos conselheiros próximos quando pretendia fazer alguma substituição no governo. Supico Pinto, Soares da Fonseca, Albino dos Reis ou Mário de Figueiredo avançavam sugestões de "jovens" (com aqueles cabelos empastados e puxados para trás, os jovens da ditadura pareciam sempre mais velhos, já repararam?) esperanças políticas. Salazar não os conhecia, interessava-lhe ter deles uma ideia que fosse para além de alguma produção escrita, mas não queria encontrá-los antes de decidir convidá-los. Por isso, diz-se que, num dia já nos anos 60, perante um novo nome que lhe foi sugerido, disse ao seu conselheiro: "faça-mo 'passar' na televisão"...

Agora, todos já passaram.

A morte do poeta

Deito-me quase sempre tarde. Estava a ler. Deviam ser quase duas da manhã, nessa noite de Jerusalém, quando o telefone tocou. Consigo datar facilmente o momento: 26 de junho de 1978. Na véspera, no hall do hotel, tínhamos estado a assistir à final do campeonato do mundo de futebol, entre a Argentina e a Holanda, Quase toda a sala, onde havia muitos americanos que, nos dias seguintes, eu veria trocar "Israel bonds" ao balcão, havia "puxado" pela Holanda, com as raízes judaicas a ajudar.

Uma chamada telefónica, àquela hora?! Tenho sempre maus pressentimentos e detesto surpresas.

Atendi: "Acordei-o?". A voz era do chefe de gabinete do ministro Luis Saias, ministro da Agricultura do governo PS-CDS. Queria que eu me deslocasse ao quarto do ministro, se não me desse muito incómodo. Ainda inquiri se era alguma emergência. Sossegou-me: era uma questão "política", sobre a qual o ministro queria consultar-me, com alguma urgência. Fiquei um pouco inquieto, já perceberão porquê.

Eu era então um jovem diplomata, entrado no MNE há menos de três anos. Tinha a meu cargo o "desk" do Médio Oriente e Magreb, na direção-geral dos Negócios Económicos. Semanas antes, o "chefe da repartição" (equivalente à atual direção de serviços) do setor político do ministério, Queirós de Barros, chamara-me ao seu gabinete: "Você foi indicado pelo seu diretor-geral para integrar uma delegação que vai deslocar-se a Israel na próxima semana. Venha comigo ao ministro." Ir ao ministro? Um jovem terceiro-secretário? Não era comum. Lá fui com Queirós de Barros ao "terceiro andar", para ser recebido por Vitor Sá Machado, então ministro dos Negócios Estrangeiros, um dos três membros do CDS nesse executivo, que um mês depois cessaria funções.

O ministro recebeu-nos com grande afabilidade e explicou: "O primeiro-ministro Mário Soares decidiu enviar uma delegação a Israel, chefiada pelo ministro da Agricultura (sem trair qualquer deslealdade com o chefe do governo, o ministro deixava claro que essa decisão viera "de cima", provavelmente sem o seu parecer. Soares, por esses anos, no quadro da Internacional Socialista, dera vários sinais de aproximação a Israel). Você conhece, com certeza, a delicadeza da posição portuguesa face a Israel (Israel tinha uma representação consular em Lisboa, mas não havia mútua acreditação de embaixadores em Lisboa e Tel-Aviv). Temos excelentes relações com os países árabes, pelo que há que evitar que esta visita tenha impactos negativos no mundo árabe, que possam afetar as nossas crescentes relações económicas com vários desses países (eu sabia: não só tinha esse tema a meu cargo no MNE como, durante os dois anos anteriores, tinha estado envolvido em várias missões de natureza económica a alguns desses Estados). Por isso, esta viagem tem de ser essencialmente técnica e não pode correr mal no plano político! As mensagens que, nesse âmbito, sejam passadas pela nossa parte, não podem fugir "um milímetro" àquilo que tem vindo a ser a posição que Portugal tem assumido publicamente, em especial sobre o estatuto dos territórios ocupados e, em geral, sobre a questão israelo-palestina. Cabe-lhe a si "briefar" o ministro da Agricultura sobre isto. Já agora, quero lembrar-lhe uma coisa, se acaso não sabia: nunca um diplomata português esteve em Israel numa viagem oficial. Você será o primeiro! (Caí das núvens e, por um instante, fiquei "flattered" com o que parecia ser uma distinção). A escolha recaiu em si porque queremos que a nossa representação nesta delegação seja feita ao nível diplomático mais baixo possível (Ora bolas! Lá se foi todo o orgulho...)".

No regresso do breve encontro com o ministro, Queirós de Barros passou-me um "non-paper" (folha branca sem timbre) que sumariava as principais linhas da posição portuguesa no conflito entre Israel e os palestinos. E alertou-me, uma vez mais: "Não deixe que o ministro da Agricultura saia desta linha. Se alguma coisa correr mal, pode ser uma grande chatice!". Regressei ao meu serviço bastante preocupado. Então, dentro do governo, não fora possível dar orientações rigorosas ao ministro e era agora eu, um diplomata "ao nível diplomático mais baixo possível", que ia conseguir controlá-lo?!

Dias depois, na viagem aérea para Israel, via Roma, pedi ao ministro para me ouvir uns minutos. Repeti-lhe o que me havia sido dito para lhe dizer. Foi muito simpático mas, naturalmente, não me pareceu muito aberto a deixar-se "tutorizar" por completo por mim. A minha preocupação havia, aliás, aumentado, ao ter-me dado conta de quem era o contraparte israelita de Luis Saias: nada mais nada menos que Ariel Sharon, que então era ministro da Agricultura! "Apenas" o general mais político do Estado judeu, que viria a ser um polémico primeiro-ministro e cuja biografia me dispenso de relatar aqui.

Os primeiros encontros tidos em Israel, para meu descanso, assentaram em questões técnicas, que o ministro não parecia dominar por completo (não era essa a sua função) mas que o setor especializado do grupo mantinha a seu cargo de forma competente - recordo-me que iam da aquacultura até à extensão rural. Com Sharon tinha havido apenas uma "courtesy call" e estava prevista uma ida à sua quinta no deserto do Neguev. A minha derradeira preocupação era uma conferência de imprensa, no último dia, entre os dois ministros. Taticamente, tinha-me voluntariado para traduzir as palavras do nosso ministro, para tentar "controlar" o exercício.

Mas voltemos àquela noite, dias antes do fim da visita, em que o chefe de gabinete me acordou e me pediu para ir à "suite" de Luis Saias. Que diabo de problema "político" surgira?! Voltava a ficar preocupado. Chegado à "suite", o ministro esclareceu: havia recebido uma mensagem do seu homólogo, Ariel Sharon, informando-o que, no dia seguinte, seria recebido por Menahem Begin.

Fiquei siderado! Um encontro com Begin, uma figura com um passado mais do que controverso na política israelita (só o futuro lhe viria a reservar um outro lugar na História), daria uma maior projeção política a esta deslocação, que era tudo o que não desejávamos. O próprio Luis Saias tinha consciência disso. Assim, e não sendo possível escusar-se ao encontro, fui de opinião que o ministro se limitasse a sublinhar os aspetos técnicos da sua visita, talvez destacando o potencial de cooperação bilateral vislumbrado em vários setores. Se acaso a "política" tivesse de vir à baila, Saias deveria seguir a "cábula" que eu trazia de Lisboa, e que eu próprio já quase sabia de cor. Luis Saias era um político muito sensato e disse-me que já havia decidido isso mesmo.

Falámos uns minutos e, quando me preparava para sair da "suite", não sei se Luis Saias se o seu chefe de gabinete comentaram, uma vez mais, o inesperado deste encontro com "o chefe de Estado". Nessa altura, dei um "salto" interior. "Chefe de Estado"! Begin era "chefe do governo", era o primeiro-ministro!

O chefe de Estado de Israel é uma "rainha de Inglaterra", não tem o menor poder político, é eleito no parlamento e exerce uma função formal, que a constituição anula em termos substantivos. Esclareci os meus interlocutores que o nosso ministro iria ser recebido por Itzhak Navon, um estimável poeta (nunca dele li nada), uma figura mais do que apagada, que seguramente abordaria generalidades e encheria o encontro de platitudes. O que acabou por acontecer.

Porque lembro esta história? Porque li, há minutos, que Itzhak Navon morreu.

domingo, novembro 08, 2015

António Paulouro


Nos anos 60, quando vim estudar para Lisboa, na casa de família onde eu vivia assinava-se o "Jornal do Fundão".

Desde o primeiro momento, fiquei surpreendido com a rara qualidade de um jornal de província que conseguia aliar a atenção às questões da região, pelo que dispunha de forte implantação junto de pessoas oriundas da Cova da Beira, com temáticas nacionais frontais e ousadas, nas quais se destacava uma cobertura muito rica dos temas culturais, que eram objeto de um suplemento regular. Anos mais tarde, eu próprio cheguei a ser assinante do jornal.

A alma do "Jornal do Fundão" era então António Paulouro, que o havia criado em 1946. Geralmente pouco atenta à imprensa de província, tida por submissa e convencional, a ditadura começou a olhar com mais cuidado este jornal irreverente, que acabaria por ser objeto de crescente e regular pressão da censura e chegou a estar suspenso. Inúmeras figuras da intelectualidade portuguesa e brasileira, tais como José Cardoso Pires, João Cabral de Melo Neto, Erico Veríssimo, António José Saraiva, Artur Portela, Eduardo Lourenço, Alexandre Pinheiro Torres, Mário Castrim e tantas outras, colaboraram com o "Jornal do Fundão" e dessa forma ajudaram a sustentar o prestígio grangeado pelo título. 

Tive o gosto de conhecer pessoalmente António Paulouro, no Fundão, num dia de setembro de 1969. Morreu em 2002. Teria completado 100 anos em 2015. Os seus amigos e admiradores juntaram-se ontem naquela cidade para uma bem merecida homenagem àquele que foi, além de uma grande figura do jornalismo e da cultura, um cidadão empenhado civicamente, um democrata a quem a luta contra a ditadura muito deve.

Deixo aqui, nesta breve memória, uma palavra de respeito e admiração extensiva ao seu sobrinho, Fernando Paulouro, que lhe sucedeu na direção do jornal. Mas também estendo um abraço de amizade a Abílio Laceiras, correspondente do "Jornal do Fundão" em Paris, um cidadão que aí cultiva a imagem desse importante órgão, que ganhou já um lugar na história da comunicação social portuguesa.

sábado, novembro 07, 2015

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...