Um dia, em Brasília, numa magnífica casa em frente ao lago Paranoá, um amigo queixava-se-me de que, todas as manhãs, era acordado por um chilrear infernal de passarada, que isso lhe era extremamente incomodativo e que, se soubesse que tal ocorreria, não tinha alugado aquela moradia. Fiquei siderado! É que se havia coisa que me agradava na casa onde eu então vivia, a uns quilómetros de distância da dele, era começar o dia a ouvir o descansativo som musical das aves. E sentia mesmo pena por não poder ter ali comigo o meu pai, "birdwatcher" militante, que, nos seus noventa e muitos anos de então, se dedicava ainda a distinguir e identificar o gorjeio dos pássaros, que toda a vida o entretivera.
Nos dias que correm, por um bambúrrio acústico por que sempre me felicito, e que tem muito a ver com a casual barreira de prédios circundantes, vivo no centro de Lisboa numa casa em cujas traseiras, para além de um muito vago rumor de fundo da cidade, só ouço os pássaros que andam pelos jardins e os sinos de uma igreja (que nunca percebi se é de a Santos ou a da Estrela), complementado, em parte dos dias da semana, pelo "chilrear" da pequenada de um infantário próximo. De longe a longe, lá do rio, ouço o ronco da sirene de um navio de cruzeiros. E é tudo! A vizinhança é sereníssima, os barulhos da rua não chegam a grande parte da casa e, mesmo no bulício da manhã lisboeta, usufruo de um magnífico quase silêncio. Se há um "paraíso" sonoro em Lisboa, ele anda ali pelas traseiras e pelo jardim da minha casa.
Gabava-me desta "felicidade", há uns dias, a um amigo. Perguntou-me se os elétricos que passam à minha porta não se faziam sentir, inquiriu sobre o efeito das aceleradelas na minha movimentada rua, tive de garantir-lhe que as rotas dos aviões não cruzavam o meu "share" de céu. Por fim, sempre com um olhar cético, não resistiu a inquirir: "Mas será que tu ouves bem? É que, com a idade..."