sexta-feira, janeiro 09, 2015

Charlie

"Charlie Hebdo" foi o nome escolhido pelos editores de "Hara-Kiri" depois de esta revista ter sido suspensa pelas autoridades francesas, na sequência de comentários humorísticos feitos por ocasião da morte do general De Gaulle, em 1970.

O que raramente tem sido referido pela imprensa é que o novo nome foi uma homenagem a Charlie Brown, a figura central (a doutrina divide-se: para mim é Snoopy, mas tudo bem!) da fantástica banda desenhada americana "Peanuts", criada em 1950 por Charles M. Schulz.

Estou certo que Charlie Brown (e Snoopy e até a mazona Lucy) estarão bem tristes nos dias que correm.

Lajes


Há dois dias, chamei aqui a atenção para aquilo que o ministro Rui Machete disse durante o Seminário Diplomático, a propósito da (então ainda não anunciada, por isso apenas possível) decisão dos EUA de reduzir o número de militares americanos e trabalhadores portugueses na base das Lajes, nos Açores. As notícias souberam-se ontem e, infelizmente, confirmam aquilo que as palavras do ministro já prenunciavam. E que, por isso, então destaquei.

O processo da base das Lajes é um dos mais complexos da história das relações entre Portugal e os Estados Unidos da América. Tem, em si, uma dimensão de Estado que recomenda a maior contenção no seu tratamento. Ao longo dos anos, foi gerido por muitos e qualificados diplomatas portugueses, que fizeram tudo quanto esteve ao seu alcance para defender os interesses que politicamente foram considerados como essenciais. Dá-se a coincidência - porque é, de facto, apenas uma coincidência - de estar neste momento à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros uma pessoa como o dr. Rui Machete, que, pelas funções que longamente teve enquanto presidente da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), conhece, talvez melhor que ninguém, o contexto das contrapartidas americanas. Também por isso, tenho fortes razões para crer que, do lado do MNE e da nossa embaixada em Washington, foi feito tudo quanto era possível para que o desfecho não fosse o que acabou por ser. Mas registo que essa é a minha única certeza e gostava de ter outras. 

Historicamente, haverá um pecado original nesta questão das Lajes? Nunca esquecerei o que um dia ouvi ao embaixador António Vaz Pereira, meu "mestre" na arte diplomática, também ele antigo embaixador na NATO, quando, numa daquelas conversas que tivemos em Londres, e em que muito aprendi, me disse uma coisa que creio parecida com isto: "A tragédia das Lajes é que a cedência da base deveria ter sido feita sem contrapartidas. Uma soberania nunca se aluga, mesmo a um aliado, porque assim deixa de o ser e limita fortemente a capacidade de manobra do Estado". Imagino que esta perspetiva não seja consensual, mas hoje, olhando para a História, sinto-me de acordo com ela. É uma triste sina dos países frágeis dependerem de uns papéis verdes onde se lê "in God we trust".

Regresso ao futuro?


Há uns meses, a propósito das próximas eleições presidenciais, e analisando os putativos candidatos da área conservadora, escrevi por aqui que "Santana Lopes é um caso diferente. Desde há uns anos, agora ajudado pelo papel na Misericórdia de Lisboa, tem procurado construir uma imagem diversa do perfil "playboy" e pouco "statesmanlike" que os portugueses antes dele haviam fixado, modelo que o seu efémero e patético governo havia ajudado a instalar, de forma indelével, na memória coletiva. O modo pausado como fala, as constantes referências religiosas que pontuam o seu discurso, o registo "humano" e de atenção para com os desprotegidos da sorte que marca uma em cada duas das suas atuais palavras, desenham um retrato que tem pouco a ver com aquilo que sobre ele ainda predomina no imaginário coletivo".

Santana Lopes, quando saiu do governo, em 2005, disse que ia "andar por aí". E, durante uma década, andou. Deixou-se entretanto de futebóis e "parcimonizou-se" na palavra. Agora, tendo medido o terreno, colocou-se já em campanha, na perseguição de uma ambição que se sabe antiga. Será que Portugal irá algum dia eleger Santana Lopes para Belém? Como dizia a outra: sei lá! Ontem, no "Público", um homem de direita como João Miguel Tavares desenhou dele um dos mais cruéis retratos que me tem sido dado ler nos últimos anos.

À modorra da escolha do candidato da esquerda corresponde o início de uma interessante zizania na direita. Isto até seria divertido, se não se tratasse do país.
 

quinta-feira, janeiro 08, 2015

Ainda o "Charlie Hebdo"

No post anterior, falei da genialidade do "Charlie Hebdo", acrescentando: "nem sempre concordando com a crueldade crítica que utilizava". Com efeito, como se nota pela capa que acima reproduzo, o jornal ia (vai) frequentemente muito para além do que parece ser razoável, nomeadamente em termos de crítica das religiões - área a que sou completamente alheio, porque não faço parte de nenhuma "freguesia". Porém, tenho consciência de que as confissões religiosas fazem parte da sensibilidade íntima das pessoas, pelo que sempre entendi que deve ser mantida alguma contenção no tratamento deste tipo de matérias, reconhecendo embora que tudo isto se situa numa zona cinzenta muito difusa e de difícil tipificação. 

Neste domínio, tenho a sensação de que os católicos costumam ser bastante mais tolerantes, embora me recorde da polémica criada pelo "cartoon" do meu amigo António, quando colocou um preservativo no nariz do papa, ou mesmo de Herman José, quando retratou a raínha santa Isabel. No primeiro caso, houve protestos e um processo, mas creio que tudo ficou por aí, no segundo, o humorista foi afastado da RTP.

Outros casos são bastante mais complexos. O politicamente correto prevalecente não permite que disto se fale muito, mas a realidade é que é notório que, nas últimas décadas, a pressão social pune muito mais, entre nós, o tratamento livre dos temas judaicos do quem ouse atentar contra temáticas islâmicas. O trauma do extermínio judeu pelos nazis criou um formidável policiamento social, no tocante ao anti-semitismo, que é muito superior à consciência no combate à islamofobia. E é óbvio que o mundo islâmico se deu conta disto e não aprecia esta desigualdade de tratamento. Essa é também a dificuldade que se pressente em algum islamismo moderado, o qual, condenando com sinceridade barbáries como a de ontem, não pode deixar de refletir algum mal-estar que, no seu seio, é suscitado pela forma como a sua simbologia é tratada no humor e na caricatura.

A grande e essencial diferença entre as sociedades livres e as sociedades totalitárias é que, nas primeiras, há o primado da lei: quem se sente ofendido queixa-se à Justiça e esta, se acaso entender que os limites da liberdade de expressão foram ultrapassados, lá estará para punir, se for esse o caso. O mundo totalitário, que está instalado na cabeça dos "jihadistas" do "Estado islâmico" ou dos assassinos franceses dos jornalistas do "Charlie Hebdo" carateriza-se por não reconhecer a Justiça democrática e decide fazer "justiça" pelas próprias mãos, à luz da leitura extremada da sua doutrina religiosa. Não há compromisso possível nesta matéria e a liberdade deve ser defendida a todo o preço.

Esta não é uma questão fácil de tratar e menos fácil se torna num tempo traumático como o que vivemos. Mas temos a obrigação de ser honestos connosco mesmos e não metermos a cabeça na areia. Eu não meto.

Notas parisienses

1. Nunca fui um leitor regular do "Charlie Hebdo", mas reconheço a genialidade do seu traço e, embora nem sempre concordando com a crueldade crítica que utilizava, quero afirmar que felizes são os países onde pode publicar-se um jornal deste tipo. Em Portugal, um "Charlie Hebdo" não seria aniquilado pelas balas do terrorismo, mas por uma imensidão de processos judiciais e perseguições de outra ordem. Ter um "Charlie Hebdo", como ter um "Canard Enchainé" ou um "Private Eye" no Reino Unido, glorifica um país em matéria de liberdade de imprensa. Ver desaparecer Wolinski (cuja "especialidade" nem sequer eram, a meu ver, os cartoons políticos) é assistir à saída de cena de alguém que faz parte da memória da minha geração. Hoje é um dia triste.

2. Como o meu colega e sucessor em Paris, José Filipe Moraes Cabral, há horas sublinhou nas televisões, o corajoso papel assumido pela França (e praticamente por mais ninguém) na luta anti-terrorista no Sahel, bem como a sua aberta cooperação no combate ao "Estado Islâmico", expõe mais o país a retaliações desta natureza. É o preço da responsabilidade demonstrada por um grande Estado. Qualquer que seja a avaliação que se faça da política interna de Hollande, há que elogiar o seu forte empenhamento em matéria de segurança, demonstrado à escala global, não obstante as fortes condicionantes orçamentais que o país atualmente sofre.  

3. A França é um país que tem anterior experiência de atentados terroristas com origem no islamismo radical, embora nenhum deles com esta expressão quantitativa em matéria de vítimas. Porém, no passado, a esmagadora maioria dos atentados que ocorreram em França foi cometida por cidadãos estrangeiros. Ao que tudo indica, o atentado de ontem terá sido levado a cabo por franceses, nascidos no seu solo, filhos de imigrantes. Tal como o Reino Unido experimentou em 2005, a sociedade francesa gerou já, dentro de si, os germes da violência radical islâmica, aliás percetível no elevado número de "jihadistas" gauleses (soa mal, não soa?) que estão já nas fileiras do "Estado Islâmico". Combater decididamente essa deriva é um imperativo, desconstruir as razões desta apetência para o radicalismo limite é uma necessidade.

4. O Islão é uma religião que sofre hoje uma forte diabolização (é irónico chamar o diabo a esta questão), um pouco por todo o lado, embora as pessoas tendam a esquecer que os cidadãos muçulmanos são, nos dias que correm, as principais vítimas das suas expressões mais sectárias. Da Indonésia ao Paquistão, do Quénia à Síria ou ao Iraque, muitos milhares de muçulmanos perderam ou perdem, dia após dia, a vida em atentados bem mais mortíferos que o que ontem abalou a França. Por essa razão, continua a ser estranho que as comunidades islâmicas moderadas não ergam mais a sua voz contra este tipo de facínoras que agem invocando os princípios corânicos. O que vemos é uma distanciação mole, um "não, mas", de quem parece intimidado e temeroso, embora longe de ser deliberado cúmplice. As figuras responsáveis entre esses muçulmanos, que são uma esmagadora maioria, talvez não se estejam a dar conta que, com a sua tibieza, se arriscam, um destes dias, a ficar na linha da frente de uma guerra religiosa que os não poupará. Curiosamente, na Europa, as comunidades muçulmanas reagem face ao radicais no seu seio como as monarquias do Golfo fizeram quanto ao Al Qeda. Ora a pusilanimidade só leva à tragédia, como a história prova.   

5. Contrariamente aos apelos exteriores que se ouviram, a sensação que tenho é de que a moldura legislativa francesa, para o combate à violência sectária e ao radicalismo que chega ao terrorismo, é já suficientemente sólida. Além disso, a França dispõe de uma rede de "intelligence" muito eficaz, que sempre poderá ser melhorada, mas que, tal como em qualquer outro país, não pode garantir nunca, em absoluto, uma prevenção total contra atos terroristas. O terrorismo dispõe da iniciativa e da capacidade de gerar surpresa. Pode-se limitar estatisticamente o desenvolvimento das suas redes, mas é impossível prevenir, em absoluto, que um atentado ocorra. 

6. O ato terrorista de ontem vai deixar marcas na política francesa. Mais do que para Hollande, é para o primeiro-ministro Manuel Valls que os olhares da França se voltarão nos próximos dias. Valls, que foi presidente de um município onde a convivência multicultural era uma das grandes questões (tendo, aliás, sido sucedido no cargo por um luso-descendente), mostrou, como ministro do Interior, um perfil securitário contrastante com o discurso mais contemporizador que o PSF costumava assumir nestes temas. A França vai-lhe exigir, não palavras, mas resultados concretos no esclarecimento rápido deste caso. De toda a forma, será sempre a direita política, da mais democrática à mais radical, quem irá ganhar com este episódio. Há uma grande inquietação em toda a França, uma preocupação evidente pela crescente afirmação comunitarista do islamismo, que induz tensões surdas na sociedade e, com alguma naturalidade, cria reflexos anti-imigração. Daqui a um discurso racista e xenófobo é um curto passo que muitos franceses já deram. Se, em termos de eleições legislativas ou presidenciais futuras, isso vier a ter uma expressão flagrante e maioritária, ficará mais evidente que o problema deixou já de ser só francês.

terça-feira, janeiro 06, 2015

Voo doméstico

Vila Real tem aeroporto ou um aeródromo (não sei se há diferenças). Isso não significa, porém, que a cidade esteja, em permanência, ligada à capital por voos regulares, que permitam atenuar a interioridade. Ao longo dos anos, tem havido períodos em que houve voos, outros há, como agora acontece, em que o aeroporto é apenas uma estrutura para atividades lúdicas.

Tudo começou nos anos 80, quando a cidade era servida por pequenos aviões, com quatro lugares para passageiros e um outro ao lado do piloto. Sempre me perguntei o que aconteceria se este tivesse uma indisposição, mas logo concluí que há perguntas que dá azar fazer. Numa viagem de Lisboa para Vila Real, o piloto enganou-se e, da escala que fizéramos em Viseu, zarpou diretamente para Bragança, destino de todos os restantes passageiros. Eu ia distraído com a paisagem e só "acordei" à vista do castelo da cidade. Advertido do erro, o homem não se incomodou: "Não há crise. À ida para baixo, deixo-o em Vila Real". E assim foi.

Chegados ao aeroporto de Vila Real, a pessoa que prestava assistência ao avião informou-me que um familiar tinha estado à minha espera mas que, tendo-se constatado que o voo tinha ido diretamente para Bragança, concluíra que eu tinha adiado a minha viagem, pelo que regressara à cidade. Nesse tempo, não havia telemóveis. De mala à ilharga, pedi ao responsável pelo aeroporto - verifiquei então que se tratava precisamente da mesma e única pessoa - que me deixasse chamar um taxi ou, como por por ali se diz, um "carro de praça". Guardo até hoje a frase que então dele escutei: "Nem pense nisso! Levo-o eu a casa. Deixe-me fechar o aeroporto e já vamos para Vila Real". E, com uma chave Yale, lá "fechou" (a porta da então pequena instalação d) o aeroporto e partimos para a cidade.

O meu amigo Teófilo Silva deixou-se, pouco depois, dessas aventuras aéreas e, desde há muito, dedica-se ao seu "Museu dos Presuntos", um dos melhores restaurantes de Vila Real, com uma escolha de vinhos do Douro dificilmente bativel. Este ano, ainda por lá não fui dar-lhe um abraço, mas hoje, ao passar por perto do aeroporto (ou aeródromo), lembrei-me desta historieta, típica das pequenas cidades, como aquelas que Vila Real já foi. Tempos em que ainda havia aviões.

A diplomacia e a espuma dos dias

Desde há precisamente 20 anos, por esta altura, o Ministério dos Negócios Estrangeiros organiza o seu Seminário Diplomático, que, durante dois dias, reúne a hierarquia política e diplomática das Necessidades com os chefes de missão no estrangeiro. No passado, os modelos variaram e a sua qualidade também. Porém, nunca deixou de ser um exercício útil, que permitiu coordenar posições, definir prioridades e proporcionar o contacto entre pessoas que operam por vezes a grandes distâncias mas cuja cultura comum de funcionamento é condição para a eficácia da sua ação.

Hoje, os órgãos de comunicação social estiveram na abertura do seminário. E que destacaram? Os comentários feitos sobre a eventual saída da Grécia do euro, assunto sobre o qual toda a gente tem uma opinião, mas que essencialmente é aos gregos que diz respeito, ou melhor, para o qual é em absoluto irrelevante qualquer leitura portuguesa. A espuma dos dias prevalece sobre as questões de fundo. 

Nas televisões, à hora do almoço, nem uma palavra sobre a passagem de mensagens à carreira por parte do chefe da diplomacia, no seu discurso inaugural. Se tivessem estado atentos, os jornalistas poderiam ter sublinhado aquilo que o dr. Rui Machete disse relativamente ao eventual efeito que o desfecho das negociações das Lages pode ter no relacionamento bilateral com os EUA. Esta foi a mais importante mensagem saída, até agora, deste Seminário Diplomático. 

TAP


Os países não são iguais. Não o são na riqueza, como o não são na sua situação geopolítica. Por isso, nas opções que a cada um é dado fazer, para a gestão do seu papel no mundo, devem maximizar as suas vantagens comparativas e minimizar as condicionantes que acentuam a suas debilidades.

Como por aqui tenho dito, Portugal é um país frágil. Nos dias que correm, essa fragilidade acentuou-se, por um estado de necessidade financeira que induziu mesmo algum desespero nacional. É em tempos turbulentos, de incerteza, que os países reclamam lideranças indutoras de confiança. Por um azar dos Távoras, calhou na rifa a Portugal, neste que é um dos mais delicados momentos da sua História recente, uma das menos capazes lideranças políticas de que temos memória. Felizmente vivemos em democracia e isso pode corrigir-se com o voto. Mas as eleições não podem remediar o que já for irremediável: e a privatização da TAP, a acontecer, sê-lo-ia. 

Já vivi o suficiente para aprender que uma gestão empresarial pública é frequentemente menos eficiente do que uma gestão privada. Mas há casos em que a gestão pública pode ser excelente. Prova disso mesmo é que, em empresas públicas que foram privatizadas, porque eram atrativas, a responsabilidade pela respetiva gestão continua hoje nas mãos das mesmas pessoas que o Estado lá tinha colocado. O que demonstra que não devem ser tão maus assim... 

A TAP é uma empresa pública que tem tido excelentes gestores profissionais. Desde há vários anos que apresenta resultados operacionais positivos, fruto de uma estratégia inteligente que aproveitou a debilidade conjuntural de concorrentes e tirou partido de diversos outros fatores favoráveis. A questão em cima da mesa é saber de que forma é possível acorrer às necessidades de capital de que necessita para cimentar o seu crescimento. Neste domínio, nem só a privatização é opção, como se sabe.

O atual governo tem uma "fezada": é preciso privatizar tudo o que por cá for passível de interesse privado, como foi importante fazer desaparecer as "golden share", como deve anular-se qualquer mecanismo regulatório que dê ao Estado a possibilidade de condicionar, ainda que minimamente, a aplicação e circulação do capital externo em Portugal. O governo considera que o interesse nacional se defende defendendo sempre a total liberdade para o capital que aqui entra. Este pressuposto leva-o, pelos vistos, a não entender a existência de interesses geopolíticos nacionais específicos, que podem estar em objetiva contradição com esses interesses externos.

Volto ao ponto por onde comecei. Para um país como Portugal, com uma geografia de interesses que vive da ligação entre vários espaços e comunidades humanas, defender e potenciar essa especificidade é quase uma condição de sobrevivência. A TAP tem sido um instrumento importante para a sustentação da nossa identidade no mundo, bem como para a preservação desse derradeiro poder de relação que nos resta. Compete ao governo provar que isso se pode fazer com a sua alienação. Até lá, compete-nos estar contra ela.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, janeiro 05, 2015

Juízes e diplomatas

Os juízes querem um subsídio de exclusividade, ao que parece para compensar a perda da renda de casa que lhes era atribuída. Os jornais dizem que o governo está a estudar. Não tenho nada contra.

Este será um excelente momento para aos diplomatas ser atribuído um subsídio pela "dupla exclusividade" a que muitos deles estão sujeitos, pelo facto de, na esmagadora maioria dos casos, os seus cônjuges serem obrigados a abandonar as respetivas profissões, quando têm de os acompanhar para o estrangeiro, às vezes por longos períodos.

Reconheço, contudo, que os diplomatas estão longe de ter, nas suas mãos, instrumentos de pressão tão convincentes com aqueles que os magistrados possuem nos dias de hoje face aos políticos.

10 teses em letra de Twitter

1. Afinal, há um Espírito Santo bom: é português, treinador do Valência e fez baixar a grimpa ao Real de Madrid.

2. No parlamento, vai ser uma excitação: vem aí "o contabilista do Luxemburgo". Parece um título de Le Carré.

3. a) reduz-se drasticamente e deixa-se deteriorar o serviço público, b) o Estado passa a funcionar mal, c) os cidadãos queixam-se dos serviços, d) a culpa é do Estado e seus funcionários, claro!

4. Os juízes fazem de jornalistas e plantam notícias nos media. Os jornalistas fazem de magistrados, julgando eles próprios os arguidos (pedida de empréstimo ao Fernando Neves).

5. E ainda há quem não acredite na CPLP! Leia-se a Lusa: "Vaticano tem sete cardeais lusófonos com direito a voto e outros 10 não eleitores".

6. A punição a Sócrates pela entrevista surgirá antes do resultado do "rigoroso inquérito" às quebras do segredo de justiça anunciadas, há um mês, pela PGR?

7. Por que será que não há um comentador que esclareça que bastará uma derrota ou duas do Sporting para que o treinador vá desta para melhor?

8. Pelo modo como certa comunicação social olhou a ascensão a cardeal de dom Manuel Clemente fica a ideia de que foi um êxito deste governo.

9. Europeístas ingénuos acham que uma vitória do Syriza mudaria a vontade da Europa. Pelo contrário, acho que reforçará a sua intransigência.

10. Não somos a Grécia? Pois não! Entre o anúncio de eleições e a sua realização, passa menos de um mês. Cá é um trimestre....

domingo, janeiro 04, 2015

Fronteira

Não acho que se deva ter saudades das antigas fronteiras. Sem a mais leve das nostalgias, atravessei hoje uma fronteira terrestre portuguesa e, nesse instante, recordei a taquicardia pateta que nos invadia quando, num passado felizmente já distante, os carros eram sujeitos ao escrutínio inquisitivo das figuras policiescas que, com ar de caso, pretendiam saber o que trazíamos do estrangeiro, fosse isso "melocotones", "torrón de Alicante" ou uma simples garrafa de Coca-Cola (sim, é verdade!, Salazar não permitia que se importasse Coca-Cola, para quem não saiba).

Um dia dos anos 60, regressei a Portugal integrado num grupo que estava sob a benévola liderança de um simpático amigo, com grande experiência de travessia de várias fronteiras europeias. A prática de muitas viagens tinha-lhe ensinado engenhosos truques. Recordo aqui dois deles, que testemunhei.

Na travessia de Andorra para Espanha, esse amigo preparou a mala do carro por forma a dar a impressão de estar a abarrotar de objetos de uso comum. Por detrás de tudo aquilo, escondiam-se as coisas "proibidas", com as quais os guardas fronteiriças costumavam implicar. Mas o truque essencial, que ele havia treinado para não falhar, era colocar um penico de plástico por forma a que, logo que se abrisse a mala do carro, esse objeto caísse no chão. Era um penico com ar de usado (trazido expressamente de Portugal) e a finalidade era provocar no guarda um subliminar processo de rejeição, quase de nojo, que o desestimulasse de prosseguir a vistoria. Sou testemunha de que, nessa vez em que assisti, o truque funcionou perfeitamente.

Uns dias depois, em Espanha, chegados perto da nossa fronteira, estacionámos por mais de meia hora, a cerca de um quilómetro de Portugal, sem um aparente propósito. O meu amigo mantinha um sorriso misterioso, quando perguntado por que perdíamos tempo. Minutos depois, chegados à parte portuguesa da fronteira, enquanto alguém tratava dos passaportes, assisti à conversa entre esse amigo e o homem da alfândega:

- Deve ter ser muito cansativo estar aqui o dia todo nesta tarefa! Ainda lhe falta muito tempo de trabalho?

- Não, não! De facto, vou sair de serviço dentro de três a quatro minutos.

- Ainda bem! Desejo-lhe um bom descanso. O que pretende ver, no carro? 

- Nada. Não é necessário abrir nada. Podem seguir. Boa noite!

Foi só nesse momento que percebi por que razão tínhamos "feito horas" antes da fronteira. O meu amigo sabia dos turnos dos funcionários das alfândegas e, com uma precisão suíça, conseguia sempre chegar uns instantes antes deles abandonarem o posto, num momento em que a respetiva paciência já se tinha esgotado e estavam mais inclinados a ir para casa do que a vasculhar o carro de um simpático cidadão que, além do mais, se preocupava com o seu cansaço.

Há umas horas, ao olhar os edifícios decrépitos da velha alfândega de Vila Verde da Raia, com vidros destruídos e pixagens nas paredes, senti como estamos bem distantes desse pobre e triste tempo. Ainda bem!

sábado, janeiro 03, 2015

O fim de semana de José Sócrates

Não faço ideia se aquilo que José Sócrates disse ontem a uma televisão, em resposta a perguntas que lhe foram colocadas, vai ajudar ou não à sua defesa. Não é essa a questão. Desde a sua detenção, há mais de um mês, a comunicação social tem sido inundada por dados e inferências que, pelo seu pormenor, só podem ter sido fornecidas pelos agentes da Justiça que têm o processo a seu cargo. Já aqui escrevi uma vez que acho que isso foi feito, embora contrariando abertamente a lei, como forma encontrada pelos responsáveis judiciais para legitimarem um ato que sabiam que tinha um peso político excecional. Por virtude desses elementos trazidos a público, não há bicho careta neste país que não opine sobre o assunto, que não dê bitaites sobre o processo, uns incensando o antigo primeiro-ministro e defendendo abertamente a tese da cabala, política ou da magistratura, outros pré-condenando-o liminarmente, numa sentença que já há muito transitou em julgado popular. 

Mas mesmo no seio destes últimos, entre os quais se encontram os que em nenhuma circunstância acreditariam em Sócrates, nem que a Justiça o viesse um dia a beatificar, julgo que só um punhado de fanáticos recusará o direito do indiciado (porque não é ainda acusado, como se sabe) vir a terreiro dar a sua versão dos factos. Eu diria mesmo que quem anda com o caso Sócrates na boca até deve estar agradecido pelo facto de agora ter novo pasto argumentativo para a conversa de café (e de televisão).

Para José Sócrates este é, na realidade, o seu primeiro fim de semana de alguma "liberdade", em que toda a gente discutirá versões que surgem, finalmente, contrapostas em público. E - querem apostar? - não tarda vão surgir por aí novas fugas informativas do processo, escolhidas para tentar contrariar a nova "narrativa" de Sócrates. Para o cidadão curioso, este ping-pong argumentativo é excelente, dá para um fartote de charla com os amigos.

É claro que, sob o ponto de vista do direito, vai com certeza emergir a questão de saber-se se, tendo sido recusada pelo juíz a possibilidade de José Sócrates falar para um jornal, essa determinação não é infringida agora por esta entrevista a uma televisão. Sócrates pode vir a ser punido por ter incumprido essa decisão? E o que é que lhe pode acontecer? Prendem-no?

sexta-feira, janeiro 02, 2015

Ó Zé!

Então isso fazia-se-nos?! Ainda há dias recebi os teus "seasons greetings", essa maravilhosa fórmula anglo-saxónica que nos permite ultrapassar as peculiaridades religiosas dos correspondentes, e - diz-me agora a Fernanda - resolveste baldar-te a 2015? Eu sei que o ano não se apresenta radioso, mas não precisavas de exagerar! Contava ver-te em fevereiro, aperaltado com o smoking de regra, no jantar anual do grande Joseph Crabtree - logo este ano, em que vamos testar novas mesas e vitualhas diferentes! - nessa nossa ritual romagem londrina. Não vai ser assim, o destino não quis. Foi aliás em Londres que te conheci, nos idos de 90, numa das festas magníficas que fazias no teu apartamento, ali perto de Victoria Station. Eu tinha acabado de chegar e lembro-me bem de me comentares, com o jeito irónico que era o teu, que, ao longo dos anos, "lá pela embaixada, tenho visto de tudo". Não elaboraste sobre o que tinhas visto, mas também não era preciso. O facto é que passaste a ver-me por lá a mim, que nos tornámos amigos e montámos a operação que levou o Nuno Brederode Santos ao CPE, para uma memorável palestra sobre o "cavaquistão" de então, tendo nós os três terminado a noite no bar do Brown's (o Nuno nunca se "tratou" mal, como sabes!), que é célebre pelos scones do meio da tarde mas que, nesse serão, o foi por alguns muitos maltes que nos amaciaram a frigidez da noite. Meu caro Zé Laranjo, não te vamos ver mais, não me vais voltar a dar aquele abraço grande, com a gargalhada galhofeira que era a tua imagem de marca. Deixo um beijo à Xica, minha companheira de mesa no jantar de 2014, também de coragem e de força. E tu, meu malandro, deixas imensas saudades aos teus amigos, mas, conhecendo-te, irias proibir-nos o pecado da melancolia. So long, Zé! 

O presidente

2015 será o último ano de Cavaco Silva como presidente da República. Não julgo que venhamos a ter quaisquer surpresas no tocante ao seu comportamento institucional, nestes meses que dele nos restam em Belém. A sua mensagem de ano novo assim o indica.

Todos os presidentes da República inaugurada com a Constituição de 1976 encaminharam os seus segundos mandatos na tentativa de deixarem uma marca própria. Independentemente das suas agendas políticas pessoais, do esquiço de auto-retrato para a História que todos procuraram deixar pendurado nas paredes de Belém, cada um, a seu modo, contribuiu claramente para a estabilização do regime e para o reforço da matriz funcional do cargo, deste semi-presidencialismo atípico que os nossos constituintes desenharam, com uma ambiguidade muito à portuguesa.

Cavaco Silva terminará a sua década de uma forma muito diferente. O seu segundo mandato foi uma incrível sucessão de "trapalhadas" - e estou a ser diplomaticamente eufemista ao escrever isto. Poder-se-á dizer que não foi ajudado pela crise financeira, mas o que o país já reteve, para sempre, é que o chefe de Estado teoricamente mais bem preparado para transmitir segurança a uma sociedade em quebra de confiança económica demonstrou, muito simplesmente, uma flagrante incapacidade para ser útil a Portugal. 

Quero com isto dizer uma coisa muito clara: a meu ver, Aníbal Cavaco Silva, pelo modo como geriu a função presidencial, pela maneira como se deixou enlear no que, agora iniludivelmente, se evidencia como uma subserviência à maioria que governa o país, deu sólidos argumentos a quantos entendem, como há semanas Pedro Bacelar de Vasconcelos defendeu, que, de futuro, deverá ser revista a Constituição por forma a ser o parlamento a escolher o chefe de Estado, como hoje acontece na Grécia, em Itália ou mesmo na Alemanha. Com efeito, Cavaco Silva, com o seu comportamento enquanto Presidente, mostrou que pode não fazer sentido continuar a eleger alguém por sufrágio direto, quando essa personalidade, em lugar de utilizar essa forte legitimidade para se colocar acima das forças políticas e representar o sentimento profundo do país, se torna num instrumento dócil das maiorias de turno, preocupado apenas em garantir uma saída airosa para o seu pé-de-página na História pátria. Embora defensor do sistema atual, creio que haveria vantagem em que o assunto fosse abertamente discutido, quanto mais não seja para evitar que o exemplo do atual presidente venha a contaminar a imagem futura da função presidencial.

Um dia, ao tempo em que era primeiro-ministro, Cavaco Silva teve a deselegância institucional de dizer que era preciso "ajudar o dr. Mário Soares a acabar o seu mandato (presidencial) com dignidade". Com sincera pena, como cidadão que acredita que o prestígio das instituições e dos seus titulares é um bem público precioso, temo que Cavaco Silva tenha arruinado já as hipóteses de ver aplicada a frase a si próprio.

quinta-feira, janeiro 01, 2015

"Dois, três, muitos Vietnam"


David Dinis, diretor do "Observador" desafiou onze pessoas para escreverem a propósito de eventos sobre os quais, em 2015, passarão algumas décadas. Coube-me lembrar o início da guerra do Vietnam, sobre o qual transcorrem 60 anos. Nesse curto texto, fiz um paralelo connosco nesse tempo:

"Em 1955, há precisamente 60 anos, no auge da Guerra Fria, começava o conflito do Vietnam. Portugal entrava nesse mesmo ano para a ONU, onde, de imediato, mergulhou no crescente calvário da defesa da sua política colonial. A guerra do Vietnam terminaria 20 anos depois, em 1975, com o Viet Cong a entrar em Saigão e a ridicularizar a América. Nesse mesmo ano, já com a Revolução de abril a todo o vapor, todas as colónias portuguesas se tornavam independentes.Voltemos a 1955.

A esquerda portuguesa, incluindo o PCP, estava então longe de ter um discurso anti-colonialista. Ele só surgiria depois da maturação das consequências da Conferência de Bandung e da formação da Tricontinental. Recorde-se que Norton de Matos e Cunha Leal, próceres da oposição a Salazar, foram orgulhosos “colonialistas”.

O início da experiência cubana, o aproveitamento hábil por Moscovo do movimento dos “não-alinhados” e a revolta angolana em 1961 conduziram à evolução do discurso da oposição à ditadura quanto às colónias. Entre nós, a simpatia pela luta do povo vietnamita viria a crescer em simultâneo com o espalhar da consciência anti-colonial. Marcou algumas universidades e meios intelectuais, tendo o anti-americanismo como forte sub-ideologia federadora. Os ventos do maio francês de 1968 fizeram o resto.

Pouco antes, Guevara defendera que eclodissem pelo mundo “dois, três, muitos Vietnam”. A História tirou-lhe entretanto a vida e viria mais tarde a trocar-lhe as voltas. O então Terceiro Mundo não se tornou comunista e até o “farol” soviético deixou de brilhar. A estupidez americana e a teimosia de Fidel suspenderam Cuba no tempo. O Vietnam vive unificado pelo capitalismo mais desenfreado. E as nossas antigas colónias são o que são."

Bom Ano !


quarta-feira, dezembro 31, 2014

A outra cidade

Estas épocas do ano levam-nos muitas vezes aos cemitérios. É uma forma de lembrar os que já foram e alimentar o sonho, impossível e virtual, de os termos connosco neste tempo ritualmente festivo. Nessas romagens, tenho sempre o cuidado de procurar não cultivar a tristeza, tentando avivar apenas os tempos alegres passados com as pessoas próximas que tenho espalhadas por aqueles espaços. Curiosamente, e no que me toca, não costumo sair deprimido dos cemitérios, depois dessas visitas ao passado. "Tu não te deixas apanhar muito pela nostalgia", disse-me uma pessoa, convencida que o faço por defesa. E, se calhar, tem razão.

Há dias, em Vila Real, dei um volta pelo cemitério de Santa Iria, o cemitério "novo", há muito criado para complementar o "velho" de S. Dinis, cujos limites de crescimento já nem recordo quando foram atingidos. Nunca tinha feito esta visita com muita atenção: em regra, dos cemitérios sai-se rapidamente e o frio da época estimula a isso. Com um belo sol de inverno, decidi passear pelo cemitério "novo". Foi então muito curioso reencontrar por ali imensas figuras da minha infância e juventude, comerciantes de cujas caras me lembrava à porta de lojas, caras que cruzei, por décadas, pelas ruas, cavalheiros e senhoras cujo nome muitas vezes desconhecia mas que, por dever de educação, sempre cumprimentava, quando, em pequeno, passeava com os meus pais. E quantos outros, menos "notáveis", estarão perdidos por tantas campas rasas sem nome! É a vantagem de se "ser" de uma cidade que já foi pequena, onde todos nos conhecíamos, quando de lá saí há 50 anos. O cemitério "novo" tem quase a idade da minha memória de Vila Real. Assim, por lá cruzei agora amigos que partiram cedo, descobri pessoas de cuja existência já nem me lembrava (e de cuja morte me não tinha sequer apercebido), pude relacionar parentescos e ligações familiares. Ah! e também apreciei a forma estética como os que por cá ficaram quiseram que os seus familiares ficassem consagrados nas pedras - uns sóbrios, outros agigantados face à imagem em vida. Foi um passeio muito interessante, por essa que é outra minha cidade.

terça-feira, dezembro 30, 2014

Fundação Mário Soares

Um jornal traz hoje, com ares de "escândalo", que o BES era um dos financiadores, através de mecenato, da Fundação Mário Soares. 

Esta informação, ao contrário do efeito pretendido, só atenua a má imagem que a gestão do BES havia deixado em mim e no país. Com efeito, utilizar a lei do mecenato para apoiar uma instituição com uma obra notável como aquela que a FMS tem levado a cabo, na promoção de importantes valores culturais e histórico-políticos, só contribui para relevar o sentido de responsabilidade social que terá orientado a política de mecenato do banco.

segunda-feira, dezembro 29, 2014

Suspeições

Não faço parte dos meus muitos iluminados compatriotas que dão por verdades definitivas as suspeitas sobre figuras públicas e por óbvios culpados os mais badalados investigados. "À la limite", para essa gente, o processo e o julgamento mais não são do um mero pro forma, destinado a quantificar a pena, uma tarefa que apenas tem como objetivo confirmar aquilo que o seu "bom senso" ou a vox populi já condenou.

Vem isto a propósito do caso dos submarinos. Um artigo de Manuel Carvalho no "Público" de ontem, recomenda ao Dr. Paulo Portas que saia da cena política, por virtude das suspeitas que se lhe terão colado à pele naquele processo. O jornalista em causa é extremamente qualificado, mas aquilo que hoje escreve situa-se, a meu ver, nesse limiar muito perigoso entre o "toda a gente sabe!" e a condenação no pelourinho populista. Não é um artigo digno, nem de Manuel Carvalho nem do "Público".

O caso dos submarinos é uma vergonha para a Justiça portuguesa, prova a sua imensa incompetência e expõe o país e as suas instituições ao ridículo internacional. Um processo que, na Alemanha, levou à relativamente rápida condenação de várias pessoas por provada corrupção, de que terão beneficiado incertos em Portugal, morre aqui na praia, por atrasos e prescrição, que acabam por ser um afrontoso insulto aos contribuintes, que desembolsaram as verbas que pagaram os submarinos, as luvas corruptas e todas as comissões a que tudo deu direito - parte das quais aterrou, equitativamente, nos bolsos de cada um dos ramos da família Espírito Santo, como ninguém hoje contesta.

Porém, o facto de nada ter sido provado, com o relator do despacho de arquivamento a deleitar-se com subtilezas estilísticas que fazem a delícia dos exegetas dessas pérolas de Pilatos, não autoriza ninguém a converter um suspeito público (ou mediático) em culpado. Pode haver - e eu julgo que há - muito boas razões para que o Dr. Paulo Portas seja afastado da titularidade do exercício das funções político-institucionais que exerce. Mas isso faz-se com um papelinho em que se coloca uma cruz, se dobra em quatro e se deita numa caixa. Até lá, dar por culpado o então ministro da Defesa ou quem quer que seja, só porque a Justiça se revelou incapaz e a voz pública o reclama é um ato impróprio da uma imprensa que se quer livre. A dignidade e o bom nome das pessoas não pode estar à mercê das insinuações e do diz-que-disse. A Justiça não funcionou? Regenere-se a Justiça!

Pergaminhos

Há dias, procurando na internet dados sobre uma determinada pessoa, fui conduzido, num cruzamento de dados, a uma estranha autobiografia de um antigo colega da carreira diplomática, com quem aliás julgo que nunca me cruzei. Essa figura viria a ter um final de carreira algo atribulado, a contas com a Justiça, que não lhe terá perdoado o facto de ter colocado no mercado alguns passaportes que tinha a seu cargo e que acabaram por surgir nas mãos de cidadãos estrangeiros, que lhos terão comprado por avultadas quantias. O diplomata em questão foi devidamente condenado e passou algum tempo na prisão. Foi uma das escassas manchas de uma profissão honrada que, em geral, é constituída por pessoas de bem, com elevado sentido de serviço público. Por isso, o seu nome é, simultaneamente, para lembrar tristemente entre nós e para esquecer em público, como farei aqui.

Falo disso hoje apenas para notar uma das perversidades da internet: quem ler o texto auto-elogioso assinado por aquele meu ex-colega, e não conhecer o vergonhoso final profissional que teve, é levado a pensar estar perante um funcionário qualificado, com uma carreira merecedora de encómios, tanto mais que ele recheia o texto de prosápias em que ninguém da profissão o reconhece. E, naturalmente, essa tal figura, que nem sequer sei se ainda é viva, não diz uma linha sobre o período negro da sua vida, embora gaste laudas a alindar o seu estatuto nobiliárquico. 

Este é um dos graves problemas do mundo informático: poder servir de veículo fácil à mentira e às fantasias. 

domingo, dezembro 28, 2014

Padecimentos

Quatro dos seis médicos que deveriam estar nas urgências do Hospital Amadora-Sintra, na véspera de Natal, faltaram ao serviço, com baixa médica. 

Quero aqui deixar uma nota de simpatia para esses distintos profissionais, que imagino terão ficado fortemente incomodados ao saberem que a sua ausência levou a atrasos no atendimento de cerca de 20 horas, mas, principalmente, pelo facto dos seus padecimentos físicos (embora eu não exclua de todo os psíquicos) lhes terem, com toda a certeza, arruinado as merecidas Consoadas. 

Não sei se a lei permite, mas gostaria de saber os nomes dos atentos e devotados colegas que lhes passaram os atestados para as baixas. 

Ah! E já agora, faço votos que não tenham uma recaída no dia 31 de dezembro. É que um azar nunca vem só!

A pressa da vida

Um dia consegui juntá-los a uma mesa da Gomes, na ingénua crença de que, por tê-los a ambos como amigos, haveriam de se dar bem. Erro crasso. O José cedo arvorou a machista arrogância vilarrealense e sentiu-se deslocado no registo intelectual das referências em que a conversa descaía. Logo que pôde, abalou para a zona do balcão mais próxima da máquina de cortar fiambre, posto de observação onde há décadas se sentia confortável. Ao que me lembra, o Sérgio nem lhe havia passado cartão, absorvido que estava no chamamento constante de conhecidos, saltitante no seu gesticular frenético, sublinhado pela voz anasalada que enchia a sala.

Há mais de quinze anos, pelo Natal, desapareceu tragicamente o Sérgio Moutinho. Neste último Natal fomos, uns poucos, despedir-nos do José Araújo, traído pelo coração agitado. Deixámo-lo em Santa Iria, perto do Sérgio. Que mais havia de comum entre ambos, à parte a circunstância – irrelevante para o leitor – de serem ambos meus amigos ? A pressa da vida.

O Sérgio era um furacão em pessoa, a ousadia chocante no comportamento e na palavra, a incessante procura da afectividade, sem baias nem temores. Na minha memória, não consigo ter dele um retrato estático, vejo-o no movimento de um filme, a chegar ou a partir, sem tempo para paragens, sem paciência para ouvir o irrelevante e o tonto, fosse ele ideia ou pessoa. Tinha a pressa do mundo, a vertigem de viver intensamente, no fio da navalha – como a navalha que haveria de matá-lo numa noite trágica na Anatólia. 

O José Araújo parecia ser o seu oposto. Pousava pelas esquinas da vida com um fácies vincado e grave, onde às vezes aparecia um esgar equívoco, sempre apoiado na frase curta e no gesto cortante. Mas quem o conhecia sabia que naquela cabeça, com o cabelo branco a subir sobre a samarra, vivia um adolescente à procura incessante de um segundo futuro, que ele sentia cada vez mais atolado nas complicações do presente. A vida do José foi a da viagem adiada, a tentativa de fuga a uma rotina que teimava em lhe atar as mãos, a mitificação de mundos ideais onde, chegado que fosse, tudo seria fácil, tudo correria a preceito para a realização dos seus sonhos, uma espécie de Pasárgada, logo ele que nunca lera Manuel Bandeira. 

Embora muito diferentes, com ambos eu tendia a cometer o erro pateta de os tentar trazer à minha leitura da realidade, fazendo o elogio da serenidade, pregando a necessidade de ponderação e dizendo-lhes para pararem um pouco para pensar. O Sérgio achava-me, cada vez mais, um burguês acomodado. O José desconcertava-me, dando-me sempre razão de forma irónica, intimamente ciente que eu jamais o compreenderia.

A minha última discussão com o Sérgio foi sobre o seu - para mim, excessivo - empenhamento em favor da causa curda, questão que, para alguns, poderá não ter sido alheia à sua morte violenta na Turquia. Recordo-me de o ter alertado para os erros profissionais em que poderia estar a incorrer, pedi-lhe a calma e a moderação que eu, no fundo, sabia que ele nunca iria ter. Ria-se de mim e dos meus cuidados, como ele sabia fazê-lo, sem qualquer acrimónia, na certeza de que a nossa amizade era intocável.

O José falou-me, há meses, no seu projecto de ida para o Brasil. Era o renascer da sua ambição de criar um museu de automóveis antigos, ideia que sempre me pareceu desenhar de forma irrealista, como tantas outras iniciativas que eu lhe ouvira no nosso passado de longa convivência. Tentei mostrar-lhe os riscos de uma deslocação sem preparação cuidada, dos imponderáveis de um negócio sem apoios sólidos. Reagiu com impaciente complacência, com um “pois, mas assim ninguém chega a sítio nenhum!”. Agora, dizem-me, tinha já viagem marcada e afirmara tencionar procurar-me, quando chegasse ao Brasil.

Hoje pergunto-me, simplesmente: que direito temos nós de tentar atrasar a pressa dos sonhos que fazem as vidas? 

(Publicado no “Notícias de Vila Real” em 28.12.04)

O tialecto

Tenho umas amigas e uns amigos que vivem encafuados no "politicamente correto" do léxico social LL (Lapa-Linha), para o qual alguém descobriu há uns anos a fabulosa designação de "tialecto". Encanito vivamente com esses vícios de casta e passo o tempo a trocar-lhes as voltas. E faço isso, muitas vezes, de propósito. Deteto-lhes no olhar o desapontamento (será a pena?) por eu teimar em não os acompanhar nessa maneira "bem", isto é, não "possidónia" (eles nunca dizem "pirosa") de dizer as coisas. Outros devem pensar lá para com eles: um embaixador a falar assim... foi no que deu aquela coisa do 25 de abril! (ou "o sinistro vinte e cinco do quatro", como referia sempre um amigo desaparecido, a quem a data nunca entusiasmara).

Nesse mundo, não se diz "prendas" mas sempre "presentes", foge-se ao satânico "vermelho" (que "finamente" se pronuncia "vermâlho", tal como "joâlho" ou "espâlho", mas talvez abram uma justificada exceção para "Coelho") e diz-se "encarnado", uma "mala" ou uma "bolsa" de mão é sempre e só uma "carteira", nunca se vai a uma "tourada" mas frequentam-se "corridas (de touros)", jamais uma bola é batida num "campo de ténis" mas sempre num "court", nada se pendura numa "cruzeta" mas tudo num "cabide", não se vai ao "quarto de banho" mas à "casa de banho", não se comemora um "aniversário" mas os "anos", como não se vai a um "funeral" mas a um "enterro", não se habita uma "vivenda" ou mesmo uma "moradia" mas sempre uma "casa", não se tem um cisco no "olho" mas sim na "vista", uma "piquena" (nunca, jamais!, uma "pequena") não põe batom nos "lábios" mas sempre na "boca", nada é "negro" mas apenas "preto", não se anda de "automóvel" mas de "carro", ninguém se despede com um "tchau" mas com um "adeus", não se põe "pomada" nos sapatos mas "graxa", não se diz "a minha mãe" mas sempre e só "a mãe", não se ouve música na "rádio" mas sim na "telefonia", vai-se à "discoteca" mas à "boîte" só às escondidas, ninguém se "aleija" só se "magoa", não se veste um "robe" mas um "roupão", para lavar as mãos é foleiro falar em "sabonete" mas não em "sabão", nunca se referem os "cortinados" mas só as "cortinas", uma cor nunca é "lilás" ou "violeta" mas simplesmente "roxo" e só um "brega" pronuncia "sanita" em lugar de (e apenas quando necessário) "retrete". 

"Tá ver?! É fácil!", explicam elas, com aquela rouquidão que, por um mistério traqueio-social (há quem diga que pode ser efeito dos gelados do Santini), algumas "piquenas bem" adquirem, logo a seguir a Paço d'Arcos - a doutrina divide-se, mas eu defendo, há anos, que é no Alto da Barra que começa a verdadeira fronteira, que se reproduz até uma linha muito irregular, que vai da Malveira da Serra ao Vassoureiro.

Quem se descair e deixar cair, num chá na Garrett do Estoril, um desses impronunciáveis termos, e assim não cumprir esta espécie de "acordo ortográfico social", passa a ser olhado como alguém fora da tribo, sujeito a uma exclusão fria do grupo. Como quem, como eu, teima sempre em dar às "piquenas" dois beijinhos. Na Bélgica e na Polónia dou mesmo três...

(Nota: a bibliografia recomendada para este tema, diz quem sabe, são as obras completas de Margarida Rebelo Pinto, que a Gallimard, por pura "caturreira", ainda não colocou na "Pléiade")

sábado, dezembro 27, 2014

Molinhos

Na minha infância, em Viana do Castelo, na noite de Consoada em casa da minha avó paterna, as prendas eram quase sempre muito práticas: meias, camisolas, pijamas e outras peças de roupa. Lembro-me bem do desapontamento que sentia quando olhava o papel de embrulho e notava que era do "Eugénio Pinheiro", uma loja de roupa na rua da Picota. No dia seguinte, viajava-se para Vila Real, onde estavam os meus avós e tios maternos e "vingava-me": aí, as opções, em matéria de presentes, eram bem mais lúdicas e quase sempre eram apenas brinquedos.

Há dias, ouvi um lamento curioso de uma criança que se queixava à mãe de que só lhe davam "presentes molinhos". Como eu a compreendi...

Balanços


Durante vários anos, fui um ávido consumidor dos "balanços" que são feitos pela comunicação social, nos finais de ano. Partia do princípio que isso me ajudava a recuperar informação que, por uma qualquer razão, me havia escapado durante os doze meses precedentes. Lia assim com atenção os trabalhos de síntese dos jornais e revistas, e cuidava em não perder as compilações televisivas - sobre política, personalidades, cinema, arte, livros ou música. Nos "bons tempos", cheguei a guardar em pastas, como fanático da recolha informativa que sempre assumi ser, alguns desses sumários escritos de factos e eventos.

Não consigo datar o momento em que "deixei cair", por manifesta falta de interesse, esse tipo de informação. Só sei que, nos dias de hoje, nem sequer passo os olhos por esses apanhados de factos e notícias que a comunicação social anualmente ainda não dispensa, embora me pareça que com um entusiasmo cada vez mais reduzido. No meu caso, essas páginas e esses programas televisivos ignoro-os em absoluto. Nem sequer tenho curiosidade em tentar interpretar os critérios seguidos, quase sempre identificadores de opções editoriais subliminares, em que seria instrutivo reconhecer.

Dou-me conta que o mesmo me ocorre com os anuários. A partir de inícios dos anos 60, adquiria com regularidade o "World Almanac and Book of Facts", um calhamaço americano, vendido então a preço muito acessível (lembro-me que custava menos de dois dólares) onde constava tudo, desde fichas de países a todo o tipo de records, bem como listagens das coisas mais inconcebíveis. Com algumas pontuais "recaídas", deixei-me disso nos anos 80 mas, quase em sequência, passei a adquirir, sem falha, os magníficos "Yearbook" da "Encyclopaedia Britannica", volumes caros mas do melhor que já vi editado. Porém, também estes, a partir de certa altura, deixaram de me interessar e jazem hoje sem a menor consulta, ocupando largo espaço (tal como as dezenas de volumes da própria "Britannica", somados aos ainda mais numerosos livros da "Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira" e suas atualizações) nas minhas estantes. 

A que se deverá este desinteresse por estes mananciais de informação? Pode haver outras explicações plausíveis, derivadas de qualquer alteração de prioridades, que me estejam a falhar. Porém, a simples conclusão pessoal a que cheguei é que a razão essencial dessa minha mudança de atitude só tem um nome: Google.

sexta-feira, dezembro 26, 2014

Adriano de Carvalho

Naquele tempo, antes de Schengen, chegados a Lisboa de avião, tínhamos de preencher aqueles irritantes papelinhos de entrada, com identificação pessoal e número do passaporte. Eu vivia ainda no encantamento "maçarico" de ter um passaporte diplomático (azul, de carneira, com os dados insertos à mão, com a letra magnífica de uma senhora do Protocolo). Antes da aterragem na Portela, comecei a preencher a ficha. O cavalheiro ao meu lado, com quem viajara desde Genebra, acompanhado de um imensa família, nessa véspera de Natal de 1977 (eu vinha da Líbia), dedicava-se à mesma tarefa e tinha um passaporte idêntico. Olhámos um para o outro e apresentámo-nos: ele era o embaixador Adriano de Carvalho, nosso representante permanente junto das Organizações Internacionais, em Genebra.

Adriano de Carvalho era um nome consagrado na carreira. Especialista em questões multilaterais, tinha um historial de grande negociador. Três anos depois, voltaria a encontrá-lo em Oslo, quando por ali foi por questões da EFTA, a acompanhar o ministro português do Comércio. Tinha uma figura avantajada, um ar impositivo mas cordial, um à-vontade e uma autoridade profissional com que dominava claramente a delegação portuguesa. Ao que às vezes recordo, por uma imagem que guardo da ocasião, tinha o vício da fotografia. 

Passaram-se muitos anos. Cheguei a Brasília em 2005. Adriano de Carvalho saíra do cargo de embaixador no Brasil quase 20 anos antes. E, no entanto, não obstante muitos qualificados colegas que lhe sucederam e me haviam antecedido nesse posto, ele era, de longe, aquele de que mais pessoas ainda falavam, que havia deixado uma marca de qualidade e prestígio associado ao nome de Portugal. Fora, aliás, o primeiro do escasso número de portugueses a quem a Universidade de Brasília tinha atribuído um doutoramento "honoris causa". Quando saí daquele posto, tive um grande gosto em oferecer-lhe um livro que aí publiquei sobre os meus quatro anos no Brasil, que me agradeceu com grande amabilidade.

Leio agora, pelos jornais, que o embaixador Adriano de Carvalho faleceu, neste Natal. Ficará na história do Ministério dos Negócios estrangeiros como um grande servidor público, frontal, exigente, mas de extrema competência. Fazem falta ao serviço diplomático português muitas figuras do seu calibre. À sua família, deixo uma mensagem de grande respeito e pesar. 

A propósito de Brasília

Já tive esta discussão mil vezes.

De novo, há dias, ouvi a alguém: "Não gosto de Brasília. Não gosto daquela ideia orwelliana que Niemeyer tem do urbanismo, de organizar a cidade em espaços estanques, querendo "controlar" a dinâmica humana. Aquilo é uma forma de estalinismo, é produto do facto de Niemeyer ser comunista, de ter um espírito de "engenheiro social". Niemeyer pode ser genial, mas não consegue ultrapassar, por vício ideológico, o racionalismo extremado que o levou a desenhar uma distribuição dos espaços que é contrária à natureza. Olhando para as "asas" de Brasília, nota-se que aquilo é produto de alguém que, como Niemeyer, não tem nenhum amor à liberdade, que usa a autoridade do seu risco para impor um modo de distribuição das pessoas pelos espaços. Volto a dizer: Niemeyer é um grande arquiteto, mas tem a alma de um ditador social."

Quantas vezes já ouvi isto, dito de forma mais ou menos sofisticada. E, no entanto, Oscar Niemeyer, o tal arquiteto genial, não teve, contrariamente à mitologia popular, nenhuma influência no desenho espacial da capital brasileira.

Chamava-se Lúcio Costa o também genial arquiteto que "inventou" Brasília, que desenhou o "Plano Piloto" da cidade, vencedor do concurso aberto para o modelo da nova capital. Coube a Niemeyer, que tinha sido seu aluno, desenhar os edifícios que são a imagem de marca da cidade (a catedral, os ministérios, o congresso, o palácio do Planalto, o palácio da Alvorada e tantos outros), "plantando-os" nos espaços que Lúcio Costa definiu. Pode hoje dizer-se que a projeção das obras de Niemeyer acabou por abafar, no plano internacional, o papel de Lúcio Costa. Mas o seu a seu dono! E, já agora, se é possível encontrar uma raíz teórica no traço organizativo da cidade, ele está no urbanismo funcionalista de Le Corbusier e na "carta de Atenas". E, para esta escola arquitetónica, contribuíram muitas influências, sendo que o racionalismo socialista é apenas uma delas.

Mas esta é uma discussão perdida, como já concluí.

(Deixo uma fotografia de Lúcio Costa. Pode ser que contribua para que o seu desconhecimento diminua, pelo menos junto dos meus amigos.)

quinta-feira, dezembro 25, 2014

O sinaleiro e o Natal


O Porto decidiu agora, como animação sazonal, colocar um sinaleiro junto à ponte D. Luiz. 

Sempre fui um fã dos "cabeças de giz", cuja avaliação dos fluxos de trânsito será sempre muito mais racional do que a de qualquer semáforo. Contudo, entendo bem que, nos dias de hoje, não se possa "desperdiçar", com regularidade, a utilização de polícias nessas tarefas. Mas acho importante, porque fazem parte da iconografia das cidades, não esquecer figuras como o sinaleiro Inácio, por alguma razão conhecido como o "bailarino", que encantava a cidade de Lisboa com a sua coreografia.

Ainda antes da 2ª guerra mundial, o Automóvel Clube de Portugal lançou, com apoio de algumas empresas, uma campanha nacional intitulada "Natal do Sinaleiro", que se tornou muito popular nos anos 50 e 60, com o apoio do "Diário de Notícias" e de "O Século". Tratava-se de mobilizar a afetividade pública face a esses agentes da ordem rodoviária. Os automobilistas eram estimulados a deixarem prendas junto dos seus sinaleiros favoritos. As ofertas chegavam a ser porcos, cabritos, sacos de batatas, garrafões de vinho, azeite, diversos outros produtos alimentares e até dinheiro!

Fica aqui uma foto desses outros tempos, no Cais do Sodré.

quarta-feira, dezembro 24, 2014

Boas festas !


A bica de 24


O local ainda existe, em Vila Real, mas tem hoje outro nome. Na altura, era o Café Imperial, no Cabo da Bila (leia-se com "bê"). Era um espaço sem nenhuma graça. Na minha juventude, nunca a nenhum de nós passava pela cabeça frequentar o Imperial. Era "longe", o ambiente era inconfortável e, acima de tudo, tinha um dono sempre com cara de poucos amigos, o Lima. Constava que, de quando em vez, tinha altercações com clientes, que chegavam a extremos físicos violentos. Note-se que o tal Lima, na sua rudeza, era simultaneamente um verdadeiro génio da estética: desenhava a primor as passadeiras de flores que se faziam pela Páscoa, numa rua vizinha, e foi o responsável por um mítico Cortejo Luminoso, que a cidade organizou no início dos anos 60.

Mas nem por isso o Imperial deixava de ser uma "no go area". Com uma única exceção, em todo o ano: no dia 24 de dezembro. Nessa noite, o Lima, que se dizia que era comunista, fazia questão de manter o café aberto, para quem se aventurasse a uma bica profissional depois da Consoada. Por muitos anos, foi o único café aberto na cidade. Para ele convergia, nessa noite, uma fauna heteróclita - de solitários friorentos, de esquerdalhos assumidos, de irreverentes empedernidos e de quem mais calhasse. No meu caso e de gente da minha geração, a sortida era apenas uma benévola manifestação de rebeldia. O Lima olhava-nos a todos, irónico, ciente da excecionalidade oportunista da visita de todo aquele pessoal, que ali desaguava, única e exclusivamente por falta de opção para a bica, a qual, na ocasião, se pedia "com cheirinho" de bagaço, para afastar as constipações. Ah! e lembro-me que o café era péssimo! No gelo do ambiente (o Lima não usava aquecimento), sobressaíam pelas mesas samarras e cachecóis, por entre nuvens de fumo de tabaco, que enchiam o Imperial nessa sua singular noite de glória. O Lima vingava-se, fechando às 11 e meia, o que deixava desasados por meia hora os episódicos clientes que tinham ainda a intenção de ir à Missa do Galo, um pouco mais acima, a S. Pedro. O que ele se deveria divertir, ao vê-los, a "encher" a meia hora, batendo as botas para aquecer, pelo desamparo frígido do Cabo da Bila (com "bê").

Num dos anos, numa noite de 24 de dezembro, o Imperial fechou. O Lima desapareceu. Não tínhamos para onde ir! Surgiu a informação de que, para os lados da estação, estava "uma coisa aberta". Lá fomos nós, pela ventania da ponte, beber uma bica à longínqua rua da Madame Brouillard, cujo nome rimava a preceito com a noite. Nos anos seguintes, os locais "hereges" foram mudando e nós, já motorizados, podíamos procurar alternativas nas redondezas. Num Natal "trágico", em que a cidade mais parecia o Kolditz, tivemos de ir até Escariz para encontrar "uma coisa aberta" - uma tasca atulhada de bêbados, de um emigrante regressado da Itália. Noutro, surgiu uma "venda" imunda com café, em Abambres. Depois, com o tempo, Vila Real foi-se dessacralizando. Por dois ou três anos, a noite de Consoada terminava num tal "Alibabá", um espaço recente, com uma dona de belos olhos e um café aceitável. 

Hoje, tudo mudou, para bem melhor. Nestes dias 24 de dezembro, aqui por Vila Real, é um regabofe: já só falta ver o Afonso, na Pastelaria Gomes, a servir bicas com "cristas de galo"...

terça-feira, dezembro 23, 2014

A um amigo

Este post é dedicado a um amigo com o qual, ao longo do último ano, pensei várias vezes ir almoçar mas nunca o fiz, a quem, em mais de uma ocasião, pensei telefonar e acabei por não o fazer, junto de cuja casa passei num sábado à tarde e não toquei à porta, para irmos tomar um café e charlar um pouco. Um amigo que, entretanto, soube que esteve adoentado mas que acabei por não contactar, a quem sucederam alguns problemas familiares mas a quem eu, convencido de que não lhe poderia ser útil, acabei por não dizer nada. Ah! e a quem me esqueci de telefonar no aniversário.

Não vou dizer aqui o nome desse amigo - ou dessa amiga - que deve estar um pouco desiludido comigo. Tem muitos nomes esse amigo ou essa amiga. Só eles sabem quem são. Para eles e para elas, aqui fica a minha lembrança amiga neste Natal.

Pousadas

O vento das privatizações sopra a todo o vapor. Faltam escassos meses para o termo do mandato deste executivo, mas a vontade de “passar a patacos” tudo o que cheire a público parece fazer parte do caderno de encargos de quem ainda dirige este país.

Fala-se agora, com renovada insistência, na privatização integral das Pousadas de Portugal. Declarações oficiais mostram essa disponibilidade de alienar o capital das Pousadas que ainda estava em mãos públicas.

As Pousadas foram uma criação do Estado, em 1940. Desde então, foram criadas 59 unidades, das quais só restam 35, uma delas no Brasil. (Escrevo com a “autoridade” afetiva de quem pernoitou em 49 dessas unidades). As Pousadas destinavam-se a fomentar o turismo e o conhecimento de zonas mais remotas do país. Tiveram, durante muito tempo, preços “políticos” baixos, chegando a haver a regra de não se poder pernoitar mais de três noites seguidas na mesma unidade. O Estado desenhou e construiu os edifícios, ou adaptou com elevados custos monumentos históricos, e manteve sempre as Pousadas – criadas à imagem dos Paradores espanhóis – como propriedade pública. Inicialmente, era a própria Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais que equipava as Pousadas, recheando-as com obras de arte onde se gastou muito dinheiro dos contribuintes e que constituem hoje um riquíssimo património, que se espera esteja bem inventariado e preservado.

Depois de uma experiência de gestão através de uma empresa pública, foi decidido abrir as Pousadas a um concessionário privado, por um período limitado de tempo. Neste entretanto, desde a concessão, como evoluíram as Pousadas? O serviço piorou em muitas unidades, que sofreram drásticos cortes no pessoal e, o que é bem mais grave, foram encerradas ou “franchisadas" unidades clássicas da rede, edifícios de elevado valor arquitetónico, algumas das primeiras unidades criadas logo após 1940. Por virtude destes encerramentos, foram retiradas algumas unidades hoteleiras importantes a certas zonas do país e, com essa alienação, perdeu-se para sempre um património de grande valor simbólico e sentimental.

Não terá sido por acaso que, à época, foi feita uma concessão não uma alienação da rede. É porque as Pousadas cumprem também um serviço público, elas não são uma mera cadeia de hotéis. Algumas Pousadas podiam ser menos rentáveis do que as outras, mas esse era o preço que o concessionário teria de suportar por ter herdado uma marca de prestígio e uma rede fabulosa de edifícios públicos, de onde retira fortes lucros. Essa era também a contrapartida para que novas e ainda mais rentáveis Pousadas pudessem continuar a ser instaladas em outros espaços e edifícios públicos, como se diz agora que vai ocorrer no Palácio Foz.

As Pousadas fazem parte da nossa memória patrimonial. Não se pode pedir a um concessionário que com elas perca dinheiro, mas o Estado tem a obrigação de garantir que os bens públicos – patrimoniais e morais – são objeto de uma gestão equilibrada que salvaguarde sempre o interesse coletivo.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

Maurice Duverger


Acabo de ter conhecimento de que morreu Maurice Duverger, aos 97 anos. Confesso que não tinha ideia de que ainda fosse vivo. 

Consagrado constitucionalista francês, os seus trabalhos sobre os partidos políticos e a V República, bem como os seus manuais académicos dedicados à ciência política e direito constitucional, educaram várias gerações. Duverger tinha o grande mérito da clareza de escrita, que não afetava o seu elevado rigor conceptual. Teve uma considerável influência em Portugal, nos anos 70, ao tempo em que o debate constitucional português estava no auge. Mas também sempre teve por cá os seus detratores.

Por razões académicas e políticas, Duverger foi um autor que li bastante. Tenho ainda imensa coisa escrita por ele e, há meses, ao arrumar livros para seguirem para o meu espólio na Biblioteca de Vila Real, deparei com o 2º volume do seu clássico "Institutions politiques et droit constitutionnel", editado pela PUF na famosa "Thémis", dedicado ao sistema político francês. E lembrei-me do instante em que o comprei (tenho uma forte memória da compra dos meus livros).

Um dos meus hábitos, nas tardes lisboetas de muitos sábados, entre 1969 e 1973, era visitar a "Livrelco", uma cooperativa livreira universitária situada num 1º andar de uma transversal à avenida da República. Tal como já acontecera no Porto, com a congénere "Unicepe", eu era sócio da "Livrelco", o que me permitia adquirir livros com algum desconto. Por lá passava com alguma regularidade, à cata das novidades, portuguesas ou estrangeiras, que estivessem ao alcance da minha bolsa de então.

Numa dessas tardes, embora o preço fosse elevado, decidi-me a comprar o 2º volume da obra de Duverger que antes referi. A evolução do sistema político francês era um assunto que sempre me fascinara e achei que ganharia muito em ler o que o politólogo escrevera sobre ele. 

Descia eu as escadas da "Livrelco", talvez com a intenção de me ir sentar a apreciar o livro na esplanada da "Granfina", ali próxima, quando me cruzei com um colega e amigo, que subia para a livraria. Falámos brevemente e mostrei-lhe, orgulhoso, a minha aquisição, aliás bem cara. Detetei alguma preocupação na sua cara. Perguntou-me se havia por lá mais algum exemplar do volume. Disse-lhe que tinha a ideia de que era exemplar único. O fácies dele cerrou-se ainda mais. "Que chatice!", disse. "Porquê?". inquiri. Olhando para os lados, não fosse alguém ouvir, confessou-me: "É que, na semana passada, "saquei" de cá o primeiro volume; hoje, vinha "sacar" esse..."

Não sei se foram apenas os "saques" que fizeram a "Livrelco" entrar numa crise, um ou dois anos depois, obrigando a uma intervenção das Associações de Estudantes, que ocuparam os respetivos corpos gerentes. Fiz parte dessa lista e achei imensa graça ao facto daquele meu amigo, também apaixonado pela obra de Duverger, mas cujas obras adquiria por "saque", integrar o ... Conselho Fiscal!    

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...