sexta-feira, abril 04, 2014

Educação diplomática

O "jet lag" não ajudava nada. Naquele primeiro dia em Seul, mais do que seguir o calendário de eventos daquele seminário, eu morria de cansaço. Mas o "dever" chamava-me: cabia-me co-presidir a um exercício que pretendia retirar, da experiência da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, lições para a gestão das tensões na península da Coreia. Coordenava uma delegação multinacional ida de Viena, tendo como meu contraparte o secretário de Estado coreano dos Negócios Estrangeiros, velho amigo de outros postos.

O programa de uma das noites incluía assistir uma peça de teatro coreano, a que se seguia um jantar num restaurante típico. Estafado como estava, passei "pelas brasas" no espetáculo, aproveitando a redução das luzes. Chegados ao restaurante, um espaço tradicional, percebi que nos íamos sentar "à coreana", em almofadas e com as pernas cruzadas sob uma mesa baixa, o que iria pôr à prova os meus sacrificados joelhos. Mas, pronto!, era serviço!

Por feitio, não sou muito dado a experiências gastronómicas radicais e, muito em especial, sou habitualmente avesso a culinárias étnicas. Por isso, à vista dos pratos locais, fui fazendo uma seleção criteriosa sobre aquilo que neles me apetecia comer. Até que chegou o prato principal. Nunca consigo recordar o que era; só sei que era algo "sinistro", pelo cheiro e pela prova. Com alguma arte, fui afastando a comida pelo prato, enquanto alimentava a conversa com o meu contraparte, sentado à minha frente. A certo passo, notando que eu já não comia e muito do que fora servido já estava disperso, o anfitrião coreano perguntou, preocupado:

- Não gosta da comida? 

Senti-me culpado pelo facto de não estar a corresponder à sua gentileza, pelo que me saiu qualquer coisa como isto:

- De forma nenhuma! Estava muito bom! Gostei imenso, mas já acabei.

O que eu fui dizer! O meu amigo coreano, temeroso que eu não tivesse ficado saciado, e apoiado no meu pronto elogio à sua comida nacional, logo mandou vir para mim uma nova dose, idêntica àquela que eu tinha dispersado com tanto cuidado pelo prato. E lá tive eu que comer aquela mistela, desta vez com escassa capacidade de disfarce. Foi uma noite bem penosa, confesso! A educação diplomática, às vezes, tem um elevado preço.

quinta-feira, abril 03, 2014

Novo governo francês

Não vou aqui entrar numa análise personalizada do novo executivo francês, chefiado por Manuel Valls, há pouco anunciado. Seria desinteressante para a maioria dos leitores deste blogue. Mas sempre direi que, tal como o anterior, ele representa uma calibrada representação das várias tendências e "baronatos", num modelo de "apaisement" que vai muito com o sentimento de François Hollande. Afinal de contas, não devemos esquecer que, na ordem constitucional francesa, é o presidente da República quem preside aos Conselhos de ministros, pelo que o governo é "o dele".

Valls não vai ter tarefa fácil, com os Ecologistas fora do executivo, ainda mais livres para o criticarem como vem sendo habitual, com a ala esquerda reforçada ou confirmada em algumas posições importantes (Economia, Educação, Justiça). Os "hollandais" de raíz garantem ou reforçam terrenos decisivos (Finanças, Defesa, Agricultura, Interior, Trabalho), com Ségolène Royale a obter uma pasta importante mas complexa (Ambiente e Energia) e duas suas antigas colaboradoras a preservarem áreas socialmente relevantes (Igualdade e Cultura). Resta alguma continuidade e a fusão de pastas, bem como certas promoções. 

"Much ado about nothing", apetece-me dizer, citando Shakespeare, ao verificar a composição deste novo governo. Por razões óbvias, não ouso traduzir o título da obra anglosaxónica por "a montanha pariu um rato"...

quarta-feira, abril 02, 2014

Escolher

Aqui na Polónia, fiz hoje parte de um pequeno painel de seleção para emprego de jovens com idade inferior a 26 anos, todos com elevadas qualificações académicas, na esmagadora maioria dos casos já com alguma experiência, obtida através de estágios profissionais ou de outro tipo de atividade pós-académica. Era um grupo de escassas dezenas de pessoas, que representavam menos de 1% dos candidatos originais a ingressar na empresa em que trabalho. Dominavam as mulheres. A seleção durou um dia completo e não foi nada fácil. No final, o grupo ficou naturalmente reduzido.

Sinto sempre um sentimento estranho quando intervenho neste tipo de seleção - e isso já me aconteceu no passado, noutros contextos. As coisas são relativamente fáceis quando se trata dos melhores candidatos ou daqueles cuja reprovação não suscita grandes dúvidas. Há apenas que saber descontar o efeito "show off" e as limitações provocadas por um conjuntural stresse. Os problemas situam-se na "zona cinzenta", que abrange quantos nos "dividem". Por mais questões que coloquemos, por muito que os ouçamos, individualmente ou interagindo em grupo, ficamos na incerteza se contribuir para o seu recrutamento é um erro nosso que a empresa vai ter de pagar ou se, ao invés, não será injusto estarmos a arruinar todo o seu esforço. É que um simples "não" de qualquer membro do júri é, neste contexto, suficiente para afastar um candidato.

O que de fascinante teve este exercício foi a possibilidade de conversar, por horas, com pessoas que representam uma nova geração, que nos ajudam a perceber melhor o que é a Polónia de hoje e os anseios daqueles que irão integrar as suas elites. Foi muito interessante verificar a matriz cosmopolita destes jovens, desde logo traduzida no inglês em que os exames se processaram, a importância que para eles teve o programa Erasmus, a leitura diversa que fazem dos vários mundos exteriores com que contactaram e, muito em especial, o modo como olham a construção das suas carreiras, a grande aposta que fazem na sua valorização pessoal, a qual é, para muitos deles, bem mais relevante que a obtenção de um mero emprego. No final, ficamos felizes pelos que escolhemos, mas acabamos sempre o exercício com alguma dúvida relativamente a quantos mandámos de volta para o mercado de trabalho.

terça-feira, abril 01, 2014

As Europas

No "lounge" da Lufthansa onde me encontro, no aeroporto de Munique, estamos, à vontade, mais de meia centena de pessoas. Não se ouve uma mosca, ou melhor, poder-se-ia ouvir alguma, se acaso as houvesse por aqui. O ruído das rodas das malas, toques de talheres ou de loiça, passos no soalho de madeira e o folhear de jornais é quase tudo o que surge como fundo. Estou aqui há quase uma hora e, acreditem!, nem um único telemóvel tocou alto. A esmagadora maioria dos olhos não encara os outros, concentra-se nos laptop, nos tablet ou no visor dos smartphones. Quem fala, fala baixo, como se estivesse numa biblioteca, condicionando os outros a proceder de forma idêntica. Até duas crianças se silenciam em frente de dois iPads. Há minutos, uma japonesa deu uma leve gargalhada e logo suscitou teutónicos sobrolhos. Não sei se gosto disto, mas imagino que quem gosta dificilmente deve aceitar o que nós somos.

Viagem


Paulo Barbosa (1945-2014)

Quando somos novos, a diferença de idades conta muito. Lembro-me do Paulo Barbosa, nos tempos de juventude em que Viana do Castelo era destino invariável dos meus agostos. Mas nunca falámos, por essa época, separados pela lógica etária dos grupos de amigos.

Só vim a conhecer o Paulo já na "carreira", para onde havia entrado sete anos antes de mim. A geografia nunca nos aproximou muito, mas tínhamos uma relação pessoal muito agradável. O Paulo era um homem sereno, elegante, com uma ironia fina, decantada de uma leitura amena da vida, que compatibilizou com um percurso profissional seguro e de mérito. 

O Paulo Barbosa morreu no passado sábado. Sabia-o bastante doente, mas não esperava vê-lo desaparecer tão cedo. 

A escolha de Valls

Há um novo tempo na política francesa. A nomeação de Manuel Valls, o enérgico ministro do Interior, que vinha a seduzir alguns setores da direita pela frontalidade do seu discurso securitário, traz para a linha dianteira da ação governativa um "outro" Partido Socialista. Alguns lembrarão, nos próximos dias, que Valls chegou a propôr a mudança do nome do partido, por considerar que o rótulo "socialista" podia ser inconveniente...

Desde logo, fica confirmada, com esta designação, a recente mudança de direção levada a cabo por François Hollande, ao escolher o empresariado como o seu parceiro para o relançamento da economia francesa. Valls tem um pendor liberal (embora estas coisas, em França, devam ser contextualizadas) e sentir-se-á seguramente confortável com esta linha de ação. Assim, na economia, não deve esperar-se muito de novo.

Mas se esta escolha pode "cair bem" num eleitorado mais conservador, ela também poderá vir a ter efeitos divisivos no seio do PSF, cuja ala esquerda já tinha reagido com desagrado ao pacote de medidas anunciado, tido como demasiado "social-democrata" e que, de certo modo, confronta a memória socialista tradicional. Por isso, vai ser interessante perceber que "compensações" estarão preparadas para a esquerda do partido, de que a composição do novo governo será a resposta. Havia a sensação de que Valls tinha feito com algumas figuras deste setor uma aliança tática para a aproximação de uma nova geração ao poder. Veremos como este passo sobrevive. A questão do "nacionalismo económico", que inclui a temática europeia, vai estar, com certeza, em alguma evidência. Valls pode encontrar por aqui um terreno para uma certa ligação à esquerda, tanto mais que o seu entusiasmo pelo tema europeu nunca foi excessivo. Curiosamente, isto está longe de ser contraditório com a prioridade a dar ao mundo das empresas, dada a matriz protecionista do país.

Resta saber qual o futuro papel de Hollande. Com a saída de Ayrault e a nomeação de um primeiro-ministro "a pedido" do país, o presidente perde muito do pouco espaço de manobra que já tinha. Valls vai ser um primeiro-ministro enérgico e visível, o que quase sempre se tem mostrado menos compatível com o presidencialismo da V República. Se tiver sucesso, será ele, com toda a certeza, a tentar a ascensão ao Eliseu em 2017, em nome dos socialistas. Se falhar, depois de experimentada esta que era a cartada mais à direita que os socialistas tinham na mão, o caminho para o regresso ao poder dos conservadores franceses fica definitivamente aberto.

Meu Caro

Longe vão esses dias de 2010 em que você, aqui por Paris, me revelava, entre duas “demi”, a angústia matinal que sentia ao verificar, no Financial Times, o contínuo alargamento dos “spreads” dos “bonds” portugueses. Conhecemo-nos numa operação de “charme” que as suas autoridades por essa época organizaram, para explicar as medidas que tomavam para controlar os indicadores macro-económicos. Para si, eu fazia parte dos “mercados” que era necessário convencer. Para mim, você era o embaixador de um país simpático que lutava para se manter à tona, numa tormenta que não controlava e que revelava cruelmente algumas das suas fragilidades endémicas. Passámos a ver-nos com alguma regularidade.

As coisas complicaram-se, entretanto. A “troika” chegou aí e vi o seu lamento em face da “injustiça” das agências de notação, quando elas “puniam” Portugal porque fazia exatamente aquilo que lhe tinham pedido para fazer. Recordo-me de lhe ter dito que os diabolizados “mercados” não eram uma entidade a que fosse possível exigir racionalidade, muito menos justiça, porque a sua lógica era apenas fazer ganhar dinheiro.

Portugal passou, entretanto, por uma cura de rigor financeiro nunca antes vista. Lembro-me de lhe ter dito da minha admiração pelo caráter estoico do seu povo. Você fornecia-me números sobre o ajustamento já feito, na secreta esperança que eles pudessem animar a perspetiva dos “mercados” sobre o seu país. Pelas conversas que então teve comigo, imagino o que outros seus colegas devem ter feito pelo mundo, para mostrar o vosso esforço nacional.

Antes da sua partida de Paris, e quando lhe notei, a uma mesa do Flore, que ia regressar à “cidade branca”, nome que Alain Tanner chamara a Lisboa, você reagiu: Tanner estava errado, Lisboa era a cidade das cores e eu teria oportunidade de verificar isso, quando o fosse visitar. Tinha razão. Confirmei-o consigo, na semana passada, entre duas “imperiais”, na esplanada “cliché” da Brasileira, sob um sol quase obsceno em Março. Frente a uma loja simbolicamente chamada “Paris em Lisboa”, dei-lhe nota da leitura que, pela Europa, se vai fazendo do vosso processo de ajustamento, das perplexidades que subsistem quanto à sustentabilidade do “retrato” que hoje apresentam e quanto tudo dependerá, no essencial, da estabilização de uma resposta europeia institucionalizada.

Você falou-me, preocupado, da quase impossibilidade de manter o país, por muito mais tempo, sob o peso sobre-humano de austeridade. A propósito, pediu a minha opinião – ironizou, a opinião “dos mercados” – sobre um “manifesto”, que entre vós tinha tido grande impacto, subscrito por gente relevante, que ia desde a direita à extrema- esquerda, sobre a necessidade de encontrar meios de aligeirar o modo de pagamento da vossa dívida pública. Traduziu-me mesmo o essencial do texto.

Agora, de volta a Paris, tendo refletido sobre o assunto, quero felicitá-lo: o “manifesto” é “música” para os ouvidos dos mercados. Quando muitos esperariam que a esquerda portuguesa, e eventualmente alguma direita soberanista, defendessem, pura e simplesmente, o não pagamento de parte da dívida, conseguir juntar todos esses setores numa solene posição comum, que apenas disputa as taxas de juro e as maturidades, constitui um ato de grande responsabilidade. Parabéns! Eu não posso falar pelos “mercados”, mas posso garantir-lhe que eles estarão agora muito mais serenos sobre o que poderão ser as consequências de uma mudança política em Portugal. Ou uma mudança de “cores”, como você diria!

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

Hermano Sanches Ruivo

Hermano Sanches Ruivo foi reeleito Conselheiro na "Mairie" de Paris. Conheci-o em 1996, quando Eduardo Prado Coelho me convenceu a ir a Paris para apoiar uma iniciativa da "Cap Magellan", uma estrutura de jovens portugueses que dava os primeiros passos no complexo mundo do associativismo em França, que Hermano já então liderava.

Com uma forte determinação, Hermano Sanches Ruivo tem feito um caminho muito interessante na defesa da especificidade portuguesa no quadro do sistema político francês. É hoje a mais relevante figura dentre os cidadãos de origem portuguesa envolvidos na política francesa. 

Um forte abraço, Hermano!

França

Manuel Valls foi ontem nomeado primeiro-ministro de França. Recordo um texto que aqui publiquei há cerca de ano e meio:

Ontem, com um grupo de colegas, almocei com o novo ministro do Interior francês, Manuel Valls. Nasceu em Barcelona há 50 anos e tinha já 20 anos quando adquiriu, por naturalização, a nacionalidade francesa. Ocupa hoje um dos postos mais delicados do executivo da França, precisamente aquele que tem a seu cargo a questão dos direitos dos estrangeiros e a gestão dos fluxos migratórios.

Dei comigo a pensar se isto seria possível entre nós, se um estrangeiro que se tivesse naturalizado português no fim da adolescência seria aceite para ocupar um cargo de ministro, em especial numa pasta com esta sensibilidade específica. Como, já há meses, me tinha interrogado quando à facilidade com que a França conviveu com a candidatura à presidência da República de Eva Joly, uma norueguesa que, com 18 anos, veio trabalhar como "au pair" para Paris. Ou como os franceses acham natural que um cidadão como Daniel Cohn-Bendit, nascido em França mas apátrida até aos 14 anos, que, depois, optou pela nacionalidade alemã, deliberadamente para não cumprir o serviço militar neste país, tendo posteriormente dirigido a subversão estudantil no maio de 1968, seja hoje deputado europeu eleito nas listas francesas e uma das figuras cimeiras do partido ecologista.

Esta abertura da França àqueles que enriquecem a sua diversidade é uma das mais nobres marcas desta sociedade.

segunda-feira, março 31, 2014

Coisas de casal

Tinhamos convidado o casal para jantar. Ele era bastante mais velho do que ela, mas ambos eram muitos divertidos. Tinham feito um simpático jantar quando chegámos àquele posto diplomático, que nos permitiu conhecer, numa só ocasião, uma imensidão de gente interessante. Tinham uma moradia deslumbrante e recordarei para sempre as dezenas de convidados à volta de uma piscina interior iluminada, com uma vista magnífica sobre a cidade. Eram gente desafogada na vida, ambos profissionais com carreiras estabilizadas, cada um vindo de anteriores casamentos.

Para o jantar de retribuição que organizámos convidámos alguns amigos que sabíamos comuns e outros que com eles eram compatíveis. Mas a ocasião era em honra desse casal. Por isso, não foi sem alguma insatisfação que, na antevéspera, recebemos a indicação de que ele viria sozinho ao jantar. Mas, como há muito aprendi, "o que não tem remédio remediado está".

À hora do jantar, o convidado de honra não aparecia. Não era o estilo habitual dele, homem rigoroso, educado e muito atento a pormenores. Chegou, finalmente, com mais de meia hora de atraso.

- Então, já sei que a sua mulher não pôde vir, lancei eu para início de conversa, quando o fui receber à porta.

- Pois é! Aliás, é precisamente por causa dela que chego atrasado, pelo que lhe peço desculpa.

E, antes que eu lhe dissesse que isso não tinha a menor importância, "deixou cair", em tom de nota lateral, secundária:

- É que me atrasei a assinar os papéis de divórcio, papeladas, você sabe como é...

Não sei, mas imagino. 

domingo, março 30, 2014

Os encontros da política

Ontem, passei grande parte do dia em "trabalhos" de uma estimável Confraria de enófilos e gastrónomos. Como sempre acontece nestas ocasiões, na mesa onde abanquei fiz conhecimento com pessoas que nunca antes tinha cruzado. A conversa foi solta, como não podia deixar de ser, mas teve a saudável caraterística de fugirmos, com naturalidade, às temáticas potencialmente mais conflituais: não se falou de política. 

Evitar abordar temas de política e de religião - noutros meios acrescentar-se-ia à lista a saúde, questões de dinheiro e opinar sobre pessoas ausentes - é um ato de bom senso a qualquer mesa, quando na presença de gente que não conhecemos ou conhecemos menos bem. Há pessoas mais sensíveis face às suas convicções e uma ocasião pode ficar estragada se não soubermos preservar o respeito estrito pelo que os outros pensam. Já assisti a cenas bem desagradáveis neste domínio e, em duas ou três ocasiões, eu próprio cometi erros de que me arrependo.

Outras ocasiões, contudo, convocam precisamente a identificação social da opinião politica. Imediatamente após o 25 de abril, cruzei, numa rua de Vila Real, um colega de liceu que já não via há muitos anos. Demos fortes abraços, lembrámos algumas histórias antigas e perguntámos por conhecidos comuns. Foi uma daquelas conversas típicas destes reencontros, que têm substância para os primeiros 10 a 15 minutos, mas que se esgotam depois rapidamente, por falta de temas, devido ao facto dos mundos de cada um terem quase sempre limitados pontos de contacto.

Convém lembrar que se viviam, por esses dias, tempos ideológicos muito intensos. Muitos portugueses tinham despertado subitamente para a coisa política, assumindo-se face ao vasto leque de opções partidárias que a Revolução abrira. Esse meu amigo não escondeu a sua curiosidade sobre o lugar ideológico onde eu "estaria" e perguntou:

- Olha lá! E nas políticas, por onde andas? Mais às esquerdas ou mais às direitas?

Achei divertida a "fórmula" utilizada, tendo respondido com a verdade. De facto, logo concluímos que não andávamos pelas mesmas lateralizações ideológicas. Mas continuámos bons amigos.

sexta-feira, março 28, 2014

Tua

Há poucas horas, ao passar pelas obras da barragem na foz do rio Tua, que tanta controvérsia provocaram há cerca de dois anos, lembrei-me de um episódio comigo ocorrido em São Petersburgo, em Julho de 2012, aquando da reunião do Comité do Património Mundial encarregado de discutir a compatibilidade do prosseguimento daquela obra com o estatuto de "património mundial" do Alto Douro Vinhateiro. 

A mim, como embaixador junto da UNESCO, cabia-me defender naquela reunião, com base nas instruções recebidas, a continuidade da construção da barragem. Para tal, muni-me de todos os elementos técnicos disponíveis, tendo solicitado à empresa proprietária da barragem que enviasse à reunião um especialista qualificado, que me pudesse apoiar nas "alegações", durante o longo debate que então teve lugar. Era importante podermos ser totalmente transparentes sobre os trabalhos a executar.

Na altura em que a questão começou a ser discutida, pedi a esse técnico para se sentar a meu lado. Ao longo das minhas intervenções, solicitei-lhe esclarecimentos que me permitissem responder a questões colocadas, algumas delas de elevada tecnicidade. O ambiente era tenso, nada estava adquirido à partida, a posição de algumas entidades da UNESCO, bem como de certas delegações nacionais, por mais de uma vez ameaçou levar o sentido final da decisão para áreas distintas daquelas que eu tinha a obrigação de preservar. 

É nessas ocasiões negociais que o bom humor nos ajuda a "dessetressar". A certo ponto, uma das questões suscitadas prendia-se com o impacto visual da barragem. As alternativas não eram muitas, para além da possível modulação da cor da barragem. Foi então que, com um ar sério, e como se quisesse jogar essa hipótese no terreno negocial, me voltei para o qualificado técnico que me acompanhava e perguntei:

- Diga-me uma coisa, senhor engenheiro: e se avançássemos com a hipótese da barragem ser em vidro grosso, transparente, com a possibilidade de se verem os peixes?

O engenheiro achou que eu tinha ensandecido, arregalou os olhos, temeroso que a minha "loucura" se transformasse em proposta, e balbuciou:

- Em vidro, senhor embaixador?! Isso não pode ser! O vidro não aguenta a pressão da água, a barragem tem de ser em cimento!

Lá expliquei que não falava a sério... Com a graça, diminuí a tensão que nos atravessava e continuei a "batalha", que acabou por "sorrir às nossas cores", como se diz na bola.

A verdade mutável

Quantas pessoas, ao ouvirem ontem o ministro da Presidência afirmar que "não haverá reduções adicionais do rendimento dos reformados em Portugal", acreditaram, por um segundo, que isso pudesse corresponder à realidade? 

A palavra do Estado está hoje gasta, como nunca esteve, em Portugal. Ninguém, com um mínimo de bom senso, concede o menor crédito a uma garantia dada pelo primeiro-ministro ou por qualquer ministro, porque o justificativo da urgência financeira tem as costas largas para os transformar, dia após dia, em seguidores fiéis de Pimenta Machado, o antigo presidente do Vitória de Guimarães, que consagrou a expressão "o que é verdade hoje pode ser mentira amanhã".

Não sei se este governo se dá conta de quanto isso prejudica a imagem de seriedade do Estado, que lhe cumpre gerir. Podemos imaginar que isso lhe importe pouco, porquanto tem dado mostras de que a integridade da palavra pública não lhe interessa muito. Mas os efeitos deste comportamento, a prazo, são altamente danosos na relação de confiança que é essencial existir entre o Estado e os cidadãos. Hoje, todos nos "defendemos" do Estado, que sentimos ocupado por pessoas que detestam a máquina pública e, por essa razão, não têm o menor pejo em contribuir para o seu desprestígio.

Se pensarmos bem, chegou-se ao cúmulo de uma relação contratual entre dois privados, tutelada pela lei e gerida pela força dos tribunais, ser hoje bem mais sólida do que a relação que o Estado, suposto defensor do interesse comum, mantém com os seus cidadãos. Se há um objetivo que uma qualquer alternativa política deve impor a si mesma será tentar restituir aos cidadãos um mínimo de seriedade, de respeito pela palavra dada, enfim, de ética pública.

Diplomacia irónica

A discussão ia tensa, naquela reunião na União Europeia, nos anos 90. O embaixador belga, colocado em minoria numa questão que considerava essencial, reagiu com firmeza:

- Tant que la Belgique soit la Belgique, on n'acceptera pas ça!

O sorriso com que aquele seu colega, de um país vizinho, useiro da mesma língua, ouviu a frase, prenunciava uma resposta à altura. E ela veio, mordaz, jogando implicitamente com a conflitualidade interna belga, que ciclicamente ameaça a unidade do país:

- Alors, c'est pas grave, ça va pas prendre beaucoup de temps...

quinta-feira, março 27, 2014

A notação das agências

Há pouco, enquanto redigia um texto para um jornal, lembrei-me de uma história, que tinha esquecida na minha memória. Ela aí vai.

Estávamos em julho de 2011. O novo governo português havia tomado posse há cerca de duas semanas. O "memorando de entendimento" com a "troika" estava no início do seu processo de implementação. As agências de notação, reagindo ao anúncio das primeiras medidas, haviam, umas após as outras, e para surpresa de muitos, levado a cabo um "downgrading" de Portugal.

Um dia, na minha qualidade de embaixador em Paris, "puxei da pena" e decidi publicar no mais importante diário económico francês, o "Les Echos", um artigo (leia aqui a versão original e aqui a tradução) em que contestava as agências e procurava, entre outras coisas, sublinhar o que me parecia ser a contradição entre o início do processo de ajustamento e a sua decisão de, nesse momento, baixar a classificação do país, precisamente na véspera de uma ida aos mercados para "reciclar" a nossa dívida. Era uma época algo angustiante, em que eu ia dizendo mais ou menos o mesmo a todas as televisões e rádios a que conseguia fazer chegar a voz oficial portuguesa em França. Sem pedir quaisquer instruções a Lisboa, diga-se.

Num desses dias, fui desafiado a debater numa importante rádio e televisão noticiosa - já não sei se foi a BFM ou a LCI - com um representante da "Standards & Poor's". Por um instante, hesitei em aceitar o convite, dada a dúvida de estar à altura da tecnicidade do debate. Mas aceitei o risco, porque temia que a "falta de comparência" deixasse o homem da agência sem contraditório. O debate acabou por ser sereno e civilizado. A certo passo, confrontado por mim com a questão do facto de Portugal estar a cumprir precisamente aquilo que a comunidade internacional lhe pedira e a estranha atitude das agências de notação, o meu interlocutor foi muito claro: "É evidente que nós achamos positivo que Portugal esteja a corresponder, desde a primeira hora, àquilo que o memorando exige. Mas não nos compete avaliar a vossa vontade política e mesmo os eventuais efeitos, a prazo, da "receita" que vai ser aplicada ao longo dos próximos três anos. Nós avaliamos as consequências imediatas das medidas que agora vão ser postas em prática na vossa economia. E essas medidas, indo ou não no caminho certo, têm agora um efeito recessivo, porque contraem o mercado interno e afetam o crescimento económico. Esse é o mercado que avaliamos".

A partir desse dia, passei a perceber melhor as agências de notação e a fazer uma leitura um pouco mais sofisticada dos seus "humores".

quarta-feira, março 26, 2014

A diplomacia do Brasil

O "Público" insere hoje um artigo de Adriana Erthal Abdnur sobre a política externa brasileira, que julgo deveria merecer alguma reflexão. Nesse texto, é sublinhado que o Brasil se afasta cada vez mais de uma agenda "ocidental", de que o caso mais recente é a sua rejeição das sanções à Rússia, por virtude da intervenção na Crimeia. Essa posição, na perspetiva da articulista, culminaria uma deriva "sulista" que, cada vez mais, marca a agenda do Itamaraty.

Há muitos anos que reflito sobre isto e digo aos meus amigos brasileiros que eles estão a cumular dois obstáculos à sua mais do que justa reivindicação para acederem a um lugar de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

O primeiro obstáculo vem dos países do Norte. O alargamento do CSNU a novos países do Sul (consideremos "do Sul" a China e a Rússia) só poderá ter lugar se e quando tal inclusão se fizer de molde a não desequilibrar o atual sentido tendencial de voto no seio do Conselho. Para ser mais claro: só entrará para o CSNU um país do Sul que, no limite, dê garantias sólidas de que manterá uma orientação pelo menos neutral face à conjugação "ocidental" de interesses representada pelos EUA, Reino Unido e França. É injusto? É, mas é assim. Ora, a "excessiva" coreografia da diplomacia brasileira, que já deu sinais "negativos" quanto à questão nuclear no Irão e agora se indicia crítica na sensível questão ucraniana, funciona em claro desfavor das ambições do Brasil.

Mas o Brasil tem também "amigos de Peniche" nos restantes membros do Conselho. Rússia e China estão muito pouco interessados em deixar de ser os únicos a "representar" o Sul neste âmbito, com tudo o que significa de influência junto do "grupo dos 77" - para simplificar, os antigos "países não alinhados". Moscovo pode ter ficado grata com o gesto de Brasília, mas isso nem sequer lhe garante a boa vontade de Pequim. Talvez antes pelo contrário.

Não obstante o esforço voluntarista feito na elevação da sua voz diplomática um pouco por todo o mundo, o trabalho notável na Organização Mundial de Comércio e outras agências multilaterais, a sua constante atenção às operações de paz da ONU, o seu cuidado com as diversas agendas regionais (América do Sul, mas também Médio Oriente e outras), creio que o Brasil tem hoje à sua frente alguns obstáculos sérios nesse seu objetivo de ganhar a consagração institucional suprema à escala global. 

Um amigo diplomata brasileiro, muito crítico da atual linha política, dizia-me, já há anos, que o Brasil mantinha uma "diplomacia adolescente" - pela sua excessiva ambição, pela sua frequente precipitação, pela ânsia de pretender "ir a todas". Ele era capaz de ter alguma razão, embora eu considere que a "juventude" não é nada que se não cure com o tempo.

E, já agora, uma nota de sentido egoísta: Portugal tem tudo a ganhar e nada a perder com uma "subida" do Brasil na escala global das nações. Um dia posso explicar isto com mais pormenor, mas parece-me uma evidência.

Um debate europeu?

Em tese, percebe-se a ideia há dias adiantada pelo presidente da República no sentido da campanha para o Parlamento europeu dever ser aproveitada para um debate sereno sobre os caminhos futuros da Europa. Num mundo ideal, assim seria. Mas o chefe do Estado não desconhecerá que a temática europeia, em muitos aspetos, faz já hoje parte da política "interna" e que há uma imbricação quase inevitável entre aquilo que é do debate europeu e aquilo que releva da nossa política nacional. Eu diria mesmo mais: nunca como hoje as duas coisas estiveram tão ligadas e, entre nós, o processo de ajustamento ajudou a "meter tudo no mesmo saco". Se acaso os partidos da oposição à atual maioria se resignassem a seguir o conselho do presidente, estariam a desperdiçar um ensejo para contestar, precisamente, o que tem sido a atitude (e reparem que eu não digo "a política") dessa mesma maioria no terreno europeu, com consequências de grande monta no plano das políticas públicas internas. Ora isto é impensável, pelo que a campanha para as eleições europeias não pode senão ser um capítulo mais da luta política interna, tentando dar ao eleitorado uma primeira perspetiva daquilo que terá de ser decidido em 2015. Ou mesmo antes desse ano, se o chefe de Estado quiser entender dever tirar ilações, também elas extensivas mas porventura clarificadoras, daquilo que se vai passar no dia 25 de maio. O país do pós-troika ficaria bem melhor servido se os nossos credores externos pudessem beneficiar, desde já, de uma clarificação, que se torna urgente, do nosso quadro político. Para ser mais claro: deveria haver eleições legislativas tão cedo quanto possível. Recorde-se que o argumento da importância do cumprimento da legislatura foi quebrado pelo próprio presidente em julho do ano passado, quando estimulou a patética "semana do consenso", com a ideia de eleições antecipadas em meados deste ano. Se os resultados de 25 de maio mostrarem que há uma inversão clara na vontade dos portugueses, a atitude mais saudável seria a convocação de eleições legislativas. Digo eu, não sei!, como se diz na minha terra.

terça-feira, março 25, 2014

"Ni-ni"

A maioria dos observadores das eleições municipais francesas coloca o bom resultado obtido pelo Front National como o mais preocupante sinal do estado de espírito do eleitorado.

Não considero irrelevante esse facto, mas acho muito mais perigosa a deriva que se está a verificar no seio da direita democrática, representada pela UMP, que expressamente rejeita respeitar a "regra republicana" de aconselhar o voto, nos círculos onde os seus candidatos não possam ser eleitos, no candidato da área democrática que melhor colocado estiver para derrotar o representante da extrema-direita. 

A direita francesa confirma assim que passou definitivamente a não respeitar uma regra não escrita da política democrática desse país, que vigorou desde o fim da ocupação nazi e que, pela primeira vez, foi posta em causa pela liderança da UMP, titulada por Jean-François Copé, nas eleições legislativas de 2012. Para a direita, passa a valer uma linha já conhecida por "ni-ni" ("ni Front National, ni "front republicain" "). E não deixa de ser significativo que Copé seja agora seguido nesta orientação pelo antigo PM François Fillon, que, em 2012, usou uma formulação menos "neutral". Ao colocar-se numa equidistância entre a esquerda e a extrema-direita, como que equiparando-as em dignidade política, os conservadores franceses demonstram estarem crescentemente reféns de um eleitorado cujo "mainstream" se deslocou bastante para a direita. E isto não é uma boa notícia.

Termino lembrando duas coisas: que a esquerda apelou, em 2003, ao voto maciço no candidato da direita às eleições presidenciais, com vista a derrotar Jean-Marie Le Pen, e que também, no próximo domingo, a mesma esquerda apelou já a que o seu eleitorado vote nos candidatos da UMP, sempre que essa seja a forma de afastar candidatos do Front National. 

Impostos

A doutora Teodora Cardoso sugeriu a possibilidade de vir a ser criada uma nova imposição fiscal, desta vez sobre os levantamentos bancários, como fator estimulador da poupança. Soma-se assim à ideia de Vitor Bento sobre o assunto, embora este apenas limitasse o imposto aos levantamentos no Multibanco.

E que tal um imposto sobre a circulação de pessoas físicas, a cobrar por cada vez que saiamos à rua? Ou um selo anual de circulação? Que tal um concurso de ideias sobre novos impostos possíveis? Com a atribuição de automóveis aos mais criativos?

Em tempo: a "caricatura" da proposta da doutora Teodora Cardoso que acima fiz simplifica demasiado a substância daquilo que, de facto, foi por ela sugerido. Mea culpa.

Nação rebelde

Ao final da tarde de ontem, numa sala pejada, José Manuel Félix Ribeiro lançou o seu livro "Portugal - a economia de uma Nação Rebelde". Jorge Sampaio fez a apresentação.

Foi bonito que a data de 24 de março tenha sido escolhida para este lançamento. Trata-se de um dia que diz muito a uma certa geração portuguesa que lutou contra a ditadura. Em 1962, foi a tentativa de comemoração desse "dia internacional do estudante" que lançou as bases para a "crise" que incendiou a universidade portuguesa, sendo líder da RIA (Reunião Inter-Associações) Jorge Sampaio. Anos mais tarde, em 1969, José Manuel Félix Ribeiro seria uma das figuras mais em evidência nas lutas académicas de então. Foi bom vê-los juntos, numa sala onde estavam muitas caras comuns a ambos os tempos.

O livro é excelente, com leituras inovadoras sobre a inserção internacional de Portugal, dissecando sem meias palavras a situação que vivemos e lançando perspetivas, por vezes ousadas, sobre as saídas que o país deve escolher. 

segunda-feira, março 24, 2014

José Sócrates na TV

Só há pouco vi a entrevista feita a José Sócrates por José Rodrigues dos Santos, que altera de forma muito substancial o modelo plácido e de mero "compère" que vinha sendo utilizado pela sua parceira habitual de programa - modelo esse, aliás, similar àquele que é utilizado para os espaços de intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa, de Marques Mendes, de Morais Sarmento, de António Vitorino, de Manuela Fereira Leite, de Augusto Santos Silva, de Francisco Louçã ou de Bagão Felix.

Acho que a RTP merece ser felicitada pela introdução do contraditório na conversa, que a torna muito mais animada, mais viva, mas também mais exigente para o entrevistado e interessante para o espetador. É claro que alguns dirão que aquele espaço não é, em rigor, um espaço de entrevista, mas um mero contraponto para um comentário político, pelo que a fixação da agenda discursiva é da responsabilidade essencial do titular do programa. Pode ser que assim seja, mas acho que todos têm a ganhar muito mais com o prosseguimento deste modelo. Desde logo, o jornalismo, que está praticamente ausente dos outros momentos de comentário. E, depois, o próprio José Sócrates, que é estimulado a prestações mais afirmativas e menos complacentes com a sua "narrativa", o que lhe oferece uma oportunidade para mostrar o seu espírito combativo.

Resta-me uma dúvida: como vão passar as ser as "conversas" com Morais Sarmento, que a RTP "inventou" para equilibrar politicamente a contestada presença de Sócrates? E será que os outros interlocutores televisivos de políticos "na reserva" vão aprender com a excelente lição dada por Rodrigues dos Santos?

Em tempo: tinha-me "esquecido" que, neste país de "prós e contras", o tema Sócrates é um catalizador de comentários contrastantes, como o Acordo Ortográfico, as touradas ou a República.

Gastronomia

O leitor deste blogue não deve fazer ideia do que é a Agavi, mas é pena. Trata-se de uma interessante associação empresarial sem fins lucrativos, criada no Porto, destinada à promoção da gastronomia e vinhos, produtos regionais e biodiversidade. Desde a fundação da Agavi, em outubro de 2010, que integro o seu Conselho Superior, presidido pelo Doutor Daniel Serrão. Reuniremos no próximo dia 27 a sua assembleia geral.

Nesta jornada nortenha em prol das atividades do gosto, irei, dois dias depois, estar presente como "confrade de mérito", no "capítulo da Primavera" da Confraria dos Enófilos e Gastrónomos de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Carrazeda de Ansiães, cuja exigente "agenda de trabalhos" acabo de receber, subscrita pelo respetivo "Diretório de Notáveis".

Em contraponto com o post anterior, fica feita a prova de que o trabalho não é incompatível com atividades cuja dimensão lúdica se cruza com a promoção de valores de manifesto interesse cultural.

Responsabilidades

Há dias, ao aceitar mais um desafio profissional, que me obrigará a mais algumas (e, desta vez, mais longínquas) viagens, a acrescer às várias que já teria de fazer por virtude dos compromissos que tenho assumidos para os próximos anos, dei comigo a pensar que, de facto, esta minha atípica "reforma" está a ser bem mais movimentada do que alguma vez poderia pensar. Alguém sabe onde se vendem horas?  

domingo, março 23, 2014

Adolfo Suárez (1932-2014)

Morreu Adolfo Suárez. A Espanha ficou a dever-lhe uma importante fatia da sabedoria com que foi pilotada a transição do franquismo para a democracia. Como muitos personagens "de charneira", Suárez nunca se tornaria numa figura consensual no seu país. O seu mandato não foi pacífico, alguma direita e setores militares contribuíram para o fim do seu período como "presidente del gobierno", parte substancial da esquerda nunca o apreciou, não obstante ter sido ele quem correu o risco, então apreciável, de decidir legalizar o Partido Comunista, colocando assim termo a um tabu que dividia as "duas Espanhas". Por mim, recordarei sempre a postura de quem não cedeu, naqueles segundos dramáticos da "tejerada", à berraria do golpismo: a sua atitude de apoio a Gutierrez Mellado, com risco da própria vida, desenharam-lhe um lugar na História da Espanha democrática.

Patrões

Este fim-de-semana trouxe a novidade de uma carta de antigos presidentes da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP) em que é contestada a adesão do atual titular do cargo ao "manifesto" sobre a reestruturação da dívida pública portuguesa.

Este dissídio entre "patrões dos patrões" é uma novidade, mas não é uma surpresa. Com efeito, já se suspeitava que a linha seguida por António Saraiva, com origens muito diferentes das de todos os seus predecessores, não fazia a unanimidade destes, nomeadamente pelo seu comportamento no quadro da concertação social ao longo dos últimos anos. O "manifesto" deve ter sido a gota de água que fez transbordar o copo.

Quaisquer que venham a ser as consequências deste conflito para o movimento patronal - e não é de excluir que isto possa prenunciar uma qualquer "revolta" interna -, trata-se de algo bastante curioso, num meio pouco dado à exibição de clivagens.  

sábado, março 22, 2014

Metanoia

Hoje e amanhã estarei presente numa reunião da Metanoia - movimento católico de profissionais, convidado para proferir hoje uma conferência sobre o tema "A Europa dos cidadãos: passado, presente e futuro", intervindo amanhã num debate conduzido por Maria Flor Pedroso e Jorge Wemans. 

Olhar o mundo

Tive um grande gosto de ser hoje o primeiro convidado da nova fase do programa "Olhar o mundo", da RTP, desta vez a cargo de António Mateus. 

A questão russo-ucraniana e as reações ocidentais suscitadas, as eleições presidenciais na Guiné-Bissau e a possível entrada da Guiné Equatorial na CPLP foram os principais temas abordados. Ainda houve tempo para curtos apontamentos sobre as ameaças às liberdades na Turquia, a profunda crise na Venezuela, os equilíbrios nas eleições municipais francesas, a crise diplomática entre os países do Golfo, o agravamento da situação interna na Líbia, o modo como a política externa americana afeta a imagem do presidente Obama, a evolução recente do processo político em Moçambique e até a tragédia do avião malaio.

Ver o programa aqui.

Debate sobre a Europa

Foi uma conversa interessante aquela que ontem tive na Antena 1, lado-a-lado com o economista João Ferreira do Amaral, sobre os temas que ocuparam o último Conselho Europeu.

Pode ouvir o programa aqui.

sexta-feira, março 21, 2014

Um lagarto em Benguela


Recordo ter chegado a uma varanda, onde estavam sentadas três pessoas, num fim de tarde, com o sol já a cair. Para tal, tinha atravessado toda a casa, mobilada e decorada com grande simplicidade, sem quaisquer luxos. Os tempos, que eram de guerra, não estavam para isso. 

Sobre uma mesa, havia várias garrafas de cerveja Cuca, algumas já vazias, além de uma bela pratada de caju. Um rádio portátil, grande, de pilhas, daqueles com asa e lugar para cassetes, de onde saía um som forte e roufenho, dominava a cena. Ao lado, estava um exemplar, já com mais de uma semana, do jornal português, nessa altura trissemanário, "A Bola".

Era uma moradia de um só andar, numa rua de Benguela, no sul de Angola. Estávamos em 21 de março de 1984. Há precisamente 30 anos. Já perceberão por que recordo a data.

Eu tinha ali arribado poucos minutos antes, no avião da tarde da TAAG, ido de Luanda. Pousara a mala na residência do nosso cônsul-geral, Fernando Coelho, que me tinha ido buscar ao aeroporto e que, de imediato, me convidou a ir beber umas cervejas a casa de umas pessoas.

O Fernando tinha chegado a Angola semanas antes de mim, dois anos antes. Num posto muito difícil, isolado, nas complexas condições de vida que eram então as de Angola, ele tinha sabido estruturar uma eficaz rede de contactos, rapidamente passou a movimentar-se com grande à-vontade na sociedade local e, o que era mais importante, transmitiu segurança à inquieta comunidade portuguesa. Assumia uma atitude humana de grande simplicidade, às vezes numa postura que eu vi como algo arriscada no modo aberto como se expunha, recusando a distância profissional a que alguns colegas recorrem, para desenharem uma bolha de importância à sua volta. O Fernando era uma joia de pessoa e criava amigos com muita facilidade.

Alguns desses seus amigos de Benguela estavam ali reunidos, um dos quais me foi indicado ser o proprietário da casa. Eram todos angolanos: dois mulatos e um negro. Cumprimentaram-me, embora sem me prestarem grande atenção, quando o Fernando me apresentou: um diplomata, seu colega, que vivia em Luanda, onde trabalhava na embaixada. Estavam todos muito fixados a ouvir o relato de um jogo de futebol.

Tendo já na mão uma cerveja que alguém me estendeu e com acesso livre ao cajú, refastelei-me numa cadeira de braços e apreciei a cena: acompanhavam, pela rádio, o jogo que o Benfica estava a disputar com o Liverpool, no estádio da Luz.

O ambiente estava pesado. O Benfica perdia, e já estava na segunda parte, por dois golos. Toda a sala era benfiquista, ferrenha. Bom, toda não: eu era sportinguista, mas o Fernando tivera o prudente cuidado de não começar por referir a quem ali me acolhia esse despiciendo pormenor.

O que era mais curioso no grupo era constatar o modo como seguiam o jogo, quase como se estivessem na Luz. O relato, pela rádio, era muito bem feito, vivo, cheio de notas que, para quem nele estivesse concentrado, criavam uma imagem muito impressiva sobre aquilo que se passava em Lisboa.

Eu sabia muito bem que, em Angola, um pouco como em todas as outras antigas colónias portuguesas, a fidelidade aos nossos principais clubes tinha sobrevivido, intocada, aos respetivos processos de independência. Era uma espécie de afetividade que se autonomizara, em absoluto, dos processos descolonizadores. Não deixava de ser interessante assistir ao sofrimento daqueles angolanos, fanáticos benfiquistas de Benguela, que, inclinados sobre a mesa, bebiam as palavras do locutor português.

Mais do que isso: que se pronunciavam, com firme opinião, sobre o andamento da partida, as prestações de cada um dos jogadores do Benfica, as opções técnicas que iam sendo feitas pelo treinador. "Este Eriksson hoje só faz asneiras", comentava, irado e agitado, o único negro na sala. "O Maniche já devia ter saído! O gajo não sobe bem pela esquerda! Devia meter o Filipović!".

Outro dos presentes, um mulato mais velho, recomendava, por uma qualquer razão tática, a entrada de Shéu, que estava no banco de suplentes. Resposta do terceiro membro do grupo, o dono da casa, com uma gargalhada: "Esse tipo é do lado de lá, não presta!", sublinhando a origem moçambicana do jogador. Toda a gente riu, mais por nervoso do que pela pertinência da graçola.

Eu não tinha uma opinião técnica definitiva sobre nada, até porque era de outra "freguesia" desportiva. Conhecia quase todos os jogadores do Benfica, claro, mas não fazia a menot ideia se uns eram melhores do que outros para "dar a volta àquilo", como se clamava pela sala. 

E assim tudo continuou até ao final do jogo, comigo relativamente silencioso, entretanto já revelado como sportinguista, mas a assumir publicamente uma discreta simpatia, embora talvez não muito entusiasta, pela desdita dos encarnados naquela noite. O Benfica acabaria, no final, por encaixar quatro golos, como o Nené a salvar a honra do convento da Luz. A carreira do Benfica na taça europeia que disputava tinha, nesse ano, chegado ao fim.

Encerrado o jogo, desligado o rádio, com alguns ligeiros impropérios e comentários sobre a partida ainda a pairarem na conversa, numa desilusão que os minutos iam diluindo, surgiu de lá de dentro, da cozinha, uma senhora, mulata, muito vistosa, aparentemente a dona da casa, até aí discretamente ausente. Trazia, com um sorriso agradável e um claro alheamento quanto à jornada desportiva que havia mobilizado a sua casa, alguma coisa para jantarmos. Já não recordo o que foi, pelo que não deve ter sido coisa gastronomicamente memorável. A senhora regressou logo à cozinha, não nos acompanhando na mesa. Eram assim as coisas, por ali.

A conversa alargou-se então a outros temas. Aquele núcleo de benfiquistas de Benguela continuava triste pelo desfecho do jogo, mas foram muito simpáticos, mesmo algo cerimoniosos, para com o intruso forasteiro que eu ali estava a ser. O Fernando Coelho, visivelmente muito bem integrado no grupo, do qual resultava ser íntimo, animava a mesa e os espíritos, com a alegria contagiante de homem bom que sempre foi. 

O jantar terminou entretanto e era tempo de regressarmos à residência do Fernando. Agradecendo a amabilidade do acolhimento, despedi-me daqueles meus novos e fugazes conhecimentos e fui caminhando para fora de casa, em direção ao carro do Fernando. Este ficou um pouco para trás. Despedia-se do dono da casa, a quem, num tom de voz baixa mas não deliberadamente audível por mim, ouvi dizer: "É simpático, esse seu amigo. Pena é ser lagarto!"

Periscópio

"É Periscópio!" dizia o jovem da mesa ao lado, pelo telefone, ao amigo, pretendendo identificar o bar onde arrulha, com uma pequena, desde há minutos.

Logo levou, da nossa mesa, um berro corretor: "Procópio!" A educação do "jeunisme" atual nem o levou a agradecer. Mas lá corrigiu, ao amigo: "Parece que é Procópio!"

Parece?! Quem lhe atasse um arado!

Em tempo: se se apressarem ainda o apanham por aqui...

Ainda o "manifesto"

Já aqui disse o que pensava sobre o "manifesto" que propõe a reestruturação da dívida pública portuguesa. É um documento corajoso, deve ser refletido, embora eu me interrogue sobre a sua oportunidade.

Dito isto, achei menos bem o surgimento de outras 74 personalidades estrangeiras em apoio ao documento. Para quê? Para mostrar que também "lá fora" há quem tenha ideias idênticas? Isso era natural. Estou certo que os opositores ao "manifesto", se assim o quisessem, poderiam agregar a opinião de outros tantos "sábios", dizendo precisamente o contrário. Os economistas são como os advogados: há opiniões para todos os gostos.

A importância do "manifesto" era precisamente ser um documento português, reunindo personalidades de valia incontestada, por forma a ser visto "lá fora", pelos nossos credores, como traduzindo uma opinião qualificada nacional, de largo espetro, a qual, dada a expectável evolução da situação política interna, poderá vir a ter consequências na atitude de um futuro governo face ao problema. Querer concitar apoios externos declaratórios para o texto parece-me transparecer uma falta de confiança menos digna da coragem que o ato original revelou. Não havia necessidade...

quinta-feira, março 20, 2014

Pacto para o investimento

Transcrevo, de seguida, o texto "Pacto para o investimento", que hoje publico na revista "Sábado", que me pediu, como a várias outras pessoas, uma "ideia" para o país:

"Já não é tempo de milagres. A vida dos portugueses só pode melhorar se o país puder criar mais riqueza. Limitado o endividamento, circunscritos os fundos comunitários, apenas uma injeção de investimento produtivo pode funcionar. Para tal, há fatores que não dependem de nós, porque derivam do quadro externo em que nos interessa manter integrados. Outros decorrem da eventual coragem dos agentes políticos em levar à prática o interesse coletivo, ousando afrontar os poderes das corporações, dos lóbis e da rua. 

A capacidade de rutura da classe política portuguesa é reconhecidamente escassa. O conúbio entre alguma representação institucional e certos interesses, do parlamento às autarquias, apresenta aos potenciais investidores um país que, não obstante fantásticos avanços, tem vastas zonas de atraso comportamental.

É urgente gerar entre nós um pacto social para relançar o investimento produtivo, desenhar-lhe rapidamente os contornos – na burocracia, na justiça, na estabilidade fiscal, no apoio à qualificação, no combate à corrupção e ao “arranjismo”. A sociedade civil, que teve coragem para pôr termo ao tabu da dívida, tem de ser capaz de forçar um choque de realismo, apresentando às forças partidárias uma agenda para a modernidade da sociedade e da economia. Para além dos “suspeitos habituais”, há que envolver nela os bancos, as universidades e a comunicação social. Quem tem coragem para avançar?"

Herman José

Herman José fez 60 anos. Todos lhe devemos algumas das nossas melhores gargalhadas. A vida deste país seria muito mais triste sem ele. E isso não é coisa pouca. É uma figura tão genial que até lhe perdoamos alguns registos de facilidade, bem como um anseio quase obsessivo da consensualidade, que às vezes desgostam. Mas Herman José é muito mais do que isso. E, até agora, é insuperável. Parabéns, Herman, vai ver que é agradável ser sexagenário, palavra que, contudo, começa bem mas acaba mal...

quarta-feira, março 19, 2014

Lembrança

Ontem, numa esplanada na Foz, no Porto, lembrei-me de uma frase do meu pai. "Exilado" em Vila Real desde 1946, viveu por lá uma vida bem feliz, por mais de seis décadas. Mas nunca o abandonou a saudade do mar, da foz do rio Lima que o viu crescer, dessa Viana do Castelo que para ele funcionou como eterna âncora afetiva. "Gostava de acordar todas as manhãs numa casa com vista para o mar", dizia-nos, às vezes, embora soubéssemos que a ele, já transmontano de coração, far-lhe-ia muito mais falta a imagem do Marão ao fundo.

Li há pouco que hoje é dia do pai. 

E depois da "troika"

Diz-se, às vezes, que, no nosso país, há conversa a mais e realizações a menos. Talvez seja verdade mas, pelo que me toca, saio sempre mais enriquecido desses exercícios intelectuais, particularmente se neles for possível ouvir atores responsáveis pelas políticas ou observadores atentos da realidade.

Tenho pena de não me ser possível assistir ao debate que, por esta hora, envolve Manuela Ferreira Leite, Bagão Felix, Teixeira dos Santos e Vitor Gaspar, no quadro da excelente iniciativa promovida pelo ISCTE sobre as políticas públicas, olhando já para o período depois do ajustamento. Deve ser curioso...

Hoje à tarde, serei um dos protagonistas de um outro debate. Com Diogo Feio, Pedro Silva Pereira e Paulo Rangel, estarei num painel em que a política europeia será abordada. Tenho esperança que possamos sair um pouco da "espuma dos dias" e ir mais além do mero confronto pré-eleitoral.

Em tempo: foi um debate sereno, muito construtivo, em que cada um de nós teve oportunidade de colocar o essencial da sua experiência. As divergências não foram muitas, embora não tivesse sido unânime a leitura das virtualidades do processo de ajustamento e do modo como o governo atuou e atua no quadro europeu. No essencial, porém, verificou-se uma grande consonância no reconhecimento da necessidade de uma postura interventiva portuguesa no palco europeu, bem como na importância de serem escolhidos como titulares da nossa representação a esse nível personalidades qualificadas. Todos lembrámos Medeiros Ferreira, o homem que criou os 3D da Revolução de abril (Democratizar, Descolonizar, Desenvolver). Só que agora os 3D são outros: Défice, Dívida e Desemprego...

terça-feira, março 18, 2014

José Medeiros Ferreira (1942-2014)

Foi-se o José Medeiros Ferreira! Vi-o, pela última vez, numa homenagem que a Casa dos Açores lhe prestou. Na intervenção com que encerrou a ocasião, pairava já um tom de despedida. Mas naquilo que disse esteve a mesma indómita coragem com que lhe víramos afrontar a terrível doença.

Tinhamos previsto fazer, dentro de algum tempo, um "mano-a-mano", numa conferência a dois, sobre "Portugal no Mundo". Seria a reedição de um idêntico exercício que ambos havíamos levado a cabo, a convite da Assembleia da República, sobre "A imagem de Portugal no mundo".

José Medeiros Ferreira, um açoreano que o acaso da vida quis que nascesse na Madeira (uma ironia com que ele brincava), foi uma grande figura da nossa democracia e da intelectualidade portuguesa. Perseguido e expulso da universidade na crise de 62, exilou-se em Genebra, onde fez parte do grupo oposicionista que publicou a revista "Polémica". Para o Congresso Republicano de Aveiro, em 1973, enviou uma "tese" em que prenunciava o modelo de revolta que, meses depois, viria a derrubar a ditadura. Ao lado de António Barreto, viria a juntar-se ao PS, depois de ser obrigado a fazer alguns meses de serviço militar... na famosa 5ª divisão.

Deputado, secretário de Estado e ministro dos Negócios Estrangeiros, viria a revelar-se com um pensamento estratégico de muito rara qualidade entre nós. Foi pela sua mão, num governo de Mário Soares, que Portugal pediu a adesão às Comunidades Europeias. A figura de Sá Carneiro seduziu-o e viria a ligar-se à sua Aliança Democrática, no pequeno grupo dos "Reformadores", uma vez mais com António Barreto, num percurso comum que não se manteria quando decidiu apoiar Ramalho Eanes, na aventura do PRD.

Seria de novo pela mão do PS que iria regressar ao parlamento, onde o cruzei como presidente da comissão de Assuntos Europeus, nos anos que passei no governo. Nunca mais regressaria a um executivo, embora eu pense que o país perdeu bastante com isso, ao não aproveitar o seu grande talento político. Porém, Medeiros Ferreira, que era uma voz que teimava ser independente e livre, tinha uma autonomia de pensamento que era, não raramente, algo incómoda para a máquina partidária.

Medeiros Ferreira foi um historiador de grande mérito, dedicado à História contemporânea e, muito em particular, ao papel dos militares. Professor universitário e comentador político, teve uma forte exposição pública nos últimos anos, nas televisões, nos jornais e na blogosfera, onde era autor de apontamentos de grande argúcia e frontalidade. Era um benfiquista afirmado e deve ter morrido contente por ver o seu clube prestes a regressar aos títulos.

Um dia, tive com o Zé Medeiros uma forte divergência. Com o tempo, soubemos ultrapassá-la, com mútuo garbo. Considerava-me um seu amigo e um seu grande admirador. Vai-nos fazer muita falta na tertúlia do Procópio, para onde nos trazia belas tiradas, que nos animavam as conversas e as ideias. À Maria Emília, deixo um sentido abraço.

Irrelevância

Há dias, ao atentar no discurso de um dirigente político português sobre a Europa, dei comigo a pensar que o atual quadro decisório europeu configura um terreno de crescente dificuldade para a expressão dos interesses próprios do nosso país. Nada que seja uma novidade, mas, durante alguns anos, tentei concordar com quantos não achavam isto importante. Hoje estou mais preocupado.

Os vários interesses nacionais que se projetam em Bruxelas comportam, entre si, uma margem significativa de divergências, por vezes de conflito, que cabe à União tentar conciliar nas suas deliberações. Desde a criação da máquina comunitária europeia, os Estados mais populosos tiveram, com toda a naturalidade democrática, um peso maior nas decisões. Quando Portugal entrou para as Comunidades, o seu voto à mesa do Conselho de Ministros valia precisamente metade do poder decisório alemão. Para a Comissão, a Alemanha podia indicar dois comissários e Portugal apenas um. No Parlamento europeu, o número de eleitos alemães era quatro vezes o nosso.

Era uma relação desequilibrada? Era, mas era gerível. Muitas decisões nos Conselhos de ministros eram então tomadas por unanimidade, a Comissão Europeia vivia uma cultura de “proteção” dos interesses dos países mais pequenos e mais pobres, o âmbito das temáticas em que a Europa intervinha era bem menor e o Parlamento estava longe de possuir os poderes de que hoje dispõe. Além disso, a Europa comunitária de então era um “clube de ricos” com escassos “pobres” para contentar. Eram dias felizes.

Desde então tudo mudou. Dos “doze” de 1986, passámos agora a 28, com um quadro de interesses médios muito mais diverso. A utilização das votações por maioria, com o abandono progressivo da unanimidade, passou de exceção a regra. Com o modelo do Tratado de Lisboa, a Comissão perdeu poderes para o Conselho de ministros, onde o peso demográfico de cada Estado é a matriz central do processo decisório. Os 22 deputados portugueses são hoje uma gota de água no seio dos 736 membros do PE. E serão ainda menos, a partir de Maio.

Portugal tem hoje de operar numa União onde o padrão médio de interesses se afasta progressivamente dos seus e fá-lo com meios de afirmação de poder decisório cada vez mais reduzidos, em termos relativos. Esta é uma questão da maior sensibilidade, porque toca de perto a questão da legitimidade dos dirigentes nacionais perante os respetivos eleitores.

Quando um cidadão alemão ou francês vota para eleger os seus deputados nacionais, está indiretamente a escolher governantes que, à partida, têm garantida uma forte capacidade de intervenção nos Conselhos de ministros da União, porque se acolhem sob o chapéu de países com força institucional própria. Um eleitor português ou grego vai acabar por tomar consciência, um destes dias, de que está a escolher dirigentes que pesam muito pouco, mesmo em assuntos que lhes dizem diretamente respeito, e aos quais pouco mais resta do que a coreografia verbal à entrada ou saída das reuniões europeias, onde o sentido das decisões já está tomado, com ou sem a sua presença. Será por isso é que alguns já lá nem vão?

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, março 17, 2014

Ainda o 16 de março

Há cinco anos, contei por aqui esta historieta, passada em 16 de março de 1974. Valeu-me, à época, comentários menos complacentes de algumas leitoras, como ainda se poderá ler nos comentários então publicados. Porque a idade, aumentando, diminuiu ainda mais o meu tropismo para o "politicamente correto", aqui reproduzo o episódio com quatro décadas, com um imenso abraço àquele que o titula e que, creio, não terá apetência para agora o relembrar. Aqui vai.

O António era um conquistador “nato” ou, como ele dizia, com graça e referindo-se às suas tendências esquerdistas, menos “Nato” e mais “Pacto de Varsóvia”.

Conheci-o em Paris, nos anos 60, onde estudava sociologia e levava uma bela vida, hospedado da cidade universitária, com um cheque mensal enviado pelo pai, um militar da Marinha que a Revolução havia de alcandorar na hierarquia. Vestia-se sempre impecavelmente, tinha um MGB GT que era a inveja de muitos, abancava com nocturna regularidade na barra do Gambrinus, onde espalhava a sua imensa simpatia e charme.

É claro que o facto de ser casado lhe limitava, naturalmente, o espaço de manobra para as aventuras, pelo que necessitava de montar alguns estratagemas para as levar a cabo. O que quase sempre conseguia.

Naquele mês de Março de 1974, ambos estávamos a prestar serviço como oficiais milicianos na EPAM (Escola Prática de Administração Militar), na Alameda das Linhas de Torres, no Lumiar. Um dia, o António pediu a minha ajuda para uma “operação”: telefonar à mulher dele, a meio da manhã, informando-a de que, inesperadamente, tinha ocorrido uma emergência e que ele fora enviado, com outros colegas, para um “exercício militar”, pelo que estaria incomunicável durante 48 horas. Devia acrescentar que era apenas um treino, pelo que não havia qualquer razão para ela se preocupar. Na lógica de uma velha (ainda que contestável, eu sei!) solidariedade masculina, prontifiquei-me a fazer a chamada telefónica.

O plano do António era arrancar cedo para a Ericeira, acompanhado de uma bela pequena, impante no seu MGB. Havia já assegurado, antecipadamente, uma folga no serviço, para que tudo corresse sem falhas. No seu caminho para a Ericeira, passou na Alameda das Linhas de Torres e do que se lembrou? De ir atestar o depósito de gasolina na unidade militar, onde o preço era muito mais barato. Esse era um dos privilégios que ninguém deixava de utilizar.

À chegada à EPAM, um complexo situado onde hoje é uma universidade, o António estranhou ao ver que os grandes portões de entrada estavam fechados, contrariamente ao que era habitual. Buzinou, aparecendo pela guarita a cabeça do sargento-de-guarda, o qual, reconhecendo-o, deixou entrar o MGB.

Só que a vida tem destas surpresas: estávamos precisamente no dia 16 de Março, as tropas fiéis ao general Spínola tinham-se amotinado na noite anterior nas Caldas da Rainha e a EPAM, como todas as unidades militares, estava, desde há horas, de rigorosa prevenção. Como era de regra nestes casos, todos os militares ficavam obrigatoriamente retidos em serviço.

O António já não foi autorizado a abandonar a unidade, recordo-me da sua fúria e do imenso gozo com que alguns de nós, conhecedores do “esquema” que acabara de se esboroar, vimos a pobre e bela amiga do António a ter de sair da EPAM, a pé, com um saco na mão, em busca de um táxi ou de um autocarro.

Por mim, livrei-me de ter de dizer uma mentira à mulher do António. Ele tinha agora um álibi imbatível.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...