segunda-feira, março 17, 2014

Ainda o 16 de março

Há cinco anos, contei por aqui esta historieta, passada em 16 de março de 1974. Valeu-me, à época, comentários menos complacentes de algumas leitoras, como ainda se poderá ler nos comentários então publicados. Porque a idade, aumentando, diminuiu ainda mais o meu tropismo para o "politicamente correto", aqui reproduzo o episódio com quatro décadas, com um imenso abraço àquele que o titula e que, creio, não terá apetência para agora o relembrar. Aqui vai.

O António era um conquistador “nato” ou, como ele dizia, com graça e referindo-se às suas tendências esquerdistas, menos “Nato” e mais “Pacto de Varsóvia”.

Conheci-o em Paris, nos anos 60, onde estudava sociologia e levava uma bela vida, hospedado da cidade universitária, com um cheque mensal enviado pelo pai, um militar da Marinha que a Revolução havia de alcandorar na hierarquia. Vestia-se sempre impecavelmente, tinha um MGB GT que era a inveja de muitos, abancava com nocturna regularidade na barra do Gambrinus, onde espalhava a sua imensa simpatia e charme.

É claro que o facto de ser casado lhe limitava, naturalmente, o espaço de manobra para as aventuras, pelo que necessitava de montar alguns estratagemas para as levar a cabo. O que quase sempre conseguia.

Naquele mês de Março de 1974, ambos estávamos a prestar serviço como oficiais milicianos na EPAM (Escola Prática de Administração Militar), na Alameda das Linhas de Torres, no Lumiar. Um dia, o António pediu a minha ajuda para uma “operação”: telefonar à mulher dele, a meio da manhã, informando-a de que, inesperadamente, tinha ocorrido uma emergência e que ele fora enviado, com outros colegas, para um “exercício militar”, pelo que estaria incomunicável durante 48 horas. Devia acrescentar que era apenas um treino, pelo que não havia qualquer razão para ela se preocupar. Na lógica de uma velha (ainda que contestável, eu sei!) solidariedade masculina, prontifiquei-me a fazer a chamada telefónica.

O plano do António era arrancar cedo para a Ericeira, acompanhado de uma bela pequena, impante no seu MGB. Havia já assegurado, antecipadamente, uma folga no serviço, para que tudo corresse sem falhas. No seu caminho para a Ericeira, passou na Alameda das Linhas de Torres e do que se lembrou? De ir atestar o depósito de gasolina na unidade militar, onde o preço era muito mais barato. Esse era um dos privilégios que ninguém deixava de utilizar.

À chegada à EPAM, um complexo situado onde hoje é uma universidade, o António estranhou ao ver que os grandes portões de entrada estavam fechados, contrariamente ao que era habitual. Buzinou, aparecendo pela guarita a cabeça do sargento-de-guarda, o qual, reconhecendo-o, deixou entrar o MGB.

Só que a vida tem destas surpresas: estávamos precisamente no dia 16 de Março, as tropas fiéis ao general Spínola tinham-se amotinado na noite anterior nas Caldas da Rainha e a EPAM, como todas as unidades militares, estava, desde há horas, de rigorosa prevenção. Como era de regra nestes casos, todos os militares ficavam obrigatoriamente retidos em serviço.

O António já não foi autorizado a abandonar a unidade, recordo-me da sua fúria e do imenso gozo com que alguns de nós, conhecedores do “esquema” que acabara de se esboroar, vimos a pobre e bela amiga do António a ter de sair da EPAM, a pé, com um saco na mão, em busca de um táxi ou de um autocarro.

Por mim, livrei-me de ter de dizer uma mentira à mulher do António. Ele tinha agora um álibi imbatível.

7 comentários:

zpf disse...

Conhece a história que teve como protagonista o Luís Sttau Monteiro na noite da passagem de ano em 1961 e em que ele se "desenfiou" de casa com um estratagema semelhante e acabou com os costados em Caxias ou no Aljube durante uns meses à conta disso?

Helena Sacadura Cabral disse...

Coitada da pequena...
Esse António deve ter chegado longe!

Anónimo disse...

Qual (das) pequena(s)?
António é nome fictício?
antonio pa

Portugalredecouvertes disse...

Eu sempre penso que temos tantos assuntos para filmes e que Hollywood não sabe!

Anónimo disse...

Também estive na EPAM e no 2º GCAM uns tempos antes. Conheci e convivi com o António, noutros contextos, sendo, num deles, conhecido pelo MFB (militante do fato branco). Excelente e otimista companheiro. Relativamente à historieta referida no texto era conhecida de "todos" que privaram com o António nos anos a seguir ao 25 de abril.

Isabel Seixas disse...

Um post tão interessante só deve ser replicado, no mínimo de cinco em cinco anos.

Eventualmente uma esposa toda contente, aliviada, a suspirar com prazer por não ter de simular tanto bocejo e forjar tanta enxaqueca...

Se os homens soubessem de facto o tempo que perdem com essa trabalheira , ainda por cima a ocupar os amigos e gerar problemas de consciência a quem se calhar nem se confessa, ohhhhhh!...

Bastava pedir!...

Que "botisse" de elástico masculina...

valha-nos o 25 de abril Feminino.



Anónimo disse...

ERA UMA VEZ

Naquele sábado, uau, era dia de ir até Lisboa, dar uma volta pelo Chiado,cuscar novidades nas decorações na UNIKA, imaginar coisas para a casa que um dia havíamos de construir.

Em frente à Brasileira,coisa estranha, dois ou três carros militares estacionados, militares aprumados que não falavam com ninguém. As pessoas passavam e perguntavam-se tal como nós.

No Domingo seguinte,Manuel Caetano
dizia no telejornal da altura qualquer coisa mais ou menos assim, com um sorrisinho de gozo que me irritou.

"Um grupo de militares tentou uma aventura a partir das Caldas, rapidamente impedida. Nada afecta a razão que assiste ao Governo em prosseguir a sua política aqui e no Ultramar. E aqui entrava o sorriso...Como se pode ver(e mostrava imagens) o nosso
País continua em paz e feliz e vai alegremente viver mais uma tarde de futebol".

Pensei para comigo. Realmente "eles" têm isto tão bem guardado que nunca acontecerá nada.

Um mês antes, um Coliseu cheio tenha cantado com o Zeca e companheiros tudo o que se podia cantar. Eu estava lá. E parecia que algo estava eminente.Era uma força a crescer no peito de uma geração...

Multiplicavam-se os sinais contraditórios.

Dias depois, julgo que o sorriso do tal senhor seria assim para o amarelo. Não sei. Nunca mais o vi.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...