terça-feira, março 18, 2014

Irrelevância

Há dias, ao atentar no discurso de um dirigente político português sobre a Europa, dei comigo a pensar que o atual quadro decisório europeu configura um terreno de crescente dificuldade para a expressão dos interesses próprios do nosso país. Nada que seja uma novidade, mas, durante alguns anos, tentei concordar com quantos não achavam isto importante. Hoje estou mais preocupado.

Os vários interesses nacionais que se projetam em Bruxelas comportam, entre si, uma margem significativa de divergências, por vezes de conflito, que cabe à União tentar conciliar nas suas deliberações. Desde a criação da máquina comunitária europeia, os Estados mais populosos tiveram, com toda a naturalidade democrática, um peso maior nas decisões. Quando Portugal entrou para as Comunidades, o seu voto à mesa do Conselho de Ministros valia precisamente metade do poder decisório alemão. Para a Comissão, a Alemanha podia indicar dois comissários e Portugal apenas um. No Parlamento europeu, o número de eleitos alemães era quatro vezes o nosso.

Era uma relação desequilibrada? Era, mas era gerível. Muitas decisões nos Conselhos de ministros eram então tomadas por unanimidade, a Comissão Europeia vivia uma cultura de “proteção” dos interesses dos países mais pequenos e mais pobres, o âmbito das temáticas em que a Europa intervinha era bem menor e o Parlamento estava longe de possuir os poderes de que hoje dispõe. Além disso, a Europa comunitária de então era um “clube de ricos” com escassos “pobres” para contentar. Eram dias felizes.

Desde então tudo mudou. Dos “doze” de 1986, passámos agora a 28, com um quadro de interesses médios muito mais diverso. A utilização das votações por maioria, com o abandono progressivo da unanimidade, passou de exceção a regra. Com o modelo do Tratado de Lisboa, a Comissão perdeu poderes para o Conselho de ministros, onde o peso demográfico de cada Estado é a matriz central do processo decisório. Os 22 deputados portugueses são hoje uma gota de água no seio dos 736 membros do PE. E serão ainda menos, a partir de Maio.

Portugal tem hoje de operar numa União onde o padrão médio de interesses se afasta progressivamente dos seus e fá-lo com meios de afirmação de poder decisório cada vez mais reduzidos, em termos relativos. Esta é uma questão da maior sensibilidade, porque toca de perto a questão da legitimidade dos dirigentes nacionais perante os respetivos eleitores.

Quando um cidadão alemão ou francês vota para eleger os seus deputados nacionais, está indiretamente a escolher governantes que, à partida, têm garantida uma forte capacidade de intervenção nos Conselhos de ministros da União, porque se acolhem sob o chapéu de países com força institucional própria. Um eleitor português ou grego vai acabar por tomar consciência, um destes dias, de que está a escolher dirigentes que pesam muito pouco, mesmo em assuntos que lhes dizem diretamente respeito, e aos quais pouco mais resta do que a coreografia verbal à entrada ou saída das reuniões europeias, onde o sentido das decisões já está tomado, com ou sem a sua presença. Será por isso é que alguns já lá nem vão?

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

6 comentários:

Anónimo disse...

Excelente reflexão. Corajosa também.

Anónimo disse...

A ler, outro ponto de vista no DE:

"O país visto da pastelaria Versailles"

Alexandre

FranciscoB disse...

É fundamental fazer acordos sectoriais com países com os mesmos interesses de Portugal.

Anónimo disse...

O Embaixador Seixas da Costa sabe bem do que fala. Foi um dos melhores Secretários de Estado dos Assuntos Europeus "ever". Porventura não quis ir tão longe, mas eu aditaria que as regras de ponderação de votos no seio do Conselho foram desvirtuadas com o Tratado de Lisboa e é pena que o nome de Portugal tenha ficado paar sempre associado a esse processo. É que o peso demográfico de cada EM é agora o critério que conta, é com base nele que adoptamos e adoptaremos decisões por maioria qualificada. E a MQ já é a regra na UE. Ora, isso é desvirtuar a ideia de integração europeia, que repousa numa equidade subtil entre todos os EM, independentemente da sua dimensão, da sua maior ou menor população. Os critérios então ponderados para atribuir um peso aos EM, expresso em votações no CONS, tiveram como objectivo assegurar que nenhum EM se sentia menos do que outro, que nenhum EM se sentia excluído de uma decisão. E eram só seis, à época. Certo, alguns sempre contaram mais no processo de decisão e esses foram em regra os mais populosos, os maiores EM da UE, mas não esqueçamos que tudo isso era coberto pelo "manto diáfano da fantasia" de que todos os EM eram iguais. E a verdade é que onde antes havia um directório encapotado, às vezes até envergonhado, hoje temos um Tratado que legitima essa actuação por parte dos EM mais desenvolvidos, que se reunem a toda a hora, publicitando tais encontros ( e porque é que se haviam de esconder, se um Tratado lhes veio dar a base jurídica para tal? )a dois, a três e a quatro e depois reportam no Conselho e no CE o que decidiram em "petit comité". Ponderar votos ( essa originalidade da então CEE ) visou responder à necessidade de contrapôr ao peso populacional, mas também económico de um dado país, outros factores que mitigassem a "menor" dimensão de um EM, para que ele não se sentisse de alguma forma amputado na sua soberania. E lhe dessem a garantia de que, por detrás de um voto, mesmo ponderado, os seus interesses estavam sempre representados. Juntou-se o melhor de 2 mundos: contornou-se a regra e manteve-se a ideia: "um Estado, um voto". Foi esse extraordinário equilíbrio que, temo, tenha desaparecido.
Oxalá me engane.

E, não, não concordo: este não é "O país visto da pastelaria Versailles", a não ser que essa referência seja apenas uma alusão aos sítios privilegiados pelo Embaixador Seixas da Costa para apurar as suas reflexões. Parece-me mais "a Europa pensada na Pastelaria Versailles".

Unknown disse...

O atrito da construção da UE pode vir dos umbigos grandes demais. E com o caminho burocratizado que os managers levam ainda nos arriscamos a criar um cabeçudo com pés de barro, mas com um umbigo enorme.

Defreitas disse...

Não sei se o problema da representatividade dos Estados e dos Cidadãos não está ultrapassado por um problema maior que é a viabilidade da UE tal como ela é hoje ,não só política mas, e sobretudo, com a moeda que a representa na economia mundial.
Com mais ou menos comissários, mais ou menos votos nas assembleias, mais ou menos representatividade, creio que as dificuldades contra as quais nos debatemos vêm sobretudo duma moeda que não corresponde à nossa força económica.

Uma moeda que foi feita para as economias fortes não pode ser utilizada pelas economias mais débeis.

Actualmente, os tenores da UE querem absolutamente que sejamos competitivos, mais competitivos . Mas competitivos em relação a quem? Quem são os nossos concorrentes? A Alemanha, a França, o Reino Unido? Se estes fossem os nossos concorrentes, sem dúvida nenhuma que teria sido mais fácil para Portugal utilizar as facilidades cambiais para melhorar temporariamente a nossa competitividade. Assim fizeram vários países no passado, antes do Euro. Uma desvalorização do Escudo e as coisas poderiam melhorar.

Como não podemos desvalorizar o Euro, o que é que fazemos : Desvalorizamos os custos sociais, baixando os salários, as reformas, aumentando as taxas e impostos, retirando poder de compra àqueles que já sofrem dos salários mais baixos da UE ! São mais miseráveis, portanto mais competitivos. Como no Bangladesh!

Adeus ao crescimento e aos investimentos que são os únicos que poderiam criar empregos.

Assim, que os 6 maiores Estados da UE, que representam 3/4 da população da UE, tenham mais direitos de voto que os 21 restantes, não me parece chocante. O que me parece absolutamente chocante é de impor às economias mais fracas do grande mercado a mesma moeda que a dos países ricos como a Alemanha, que retira grandes benefícios do desequilíbrio da balança comercial, graças aos produtos com margem acrescentada superior, com que nos inunda.

Mas o facto é que são precisamente os países ricos que nos impõem a moeda forte, porque é assim que eles nos submetem.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...