terça-feira, março 18, 2014

José Medeiros Ferreira (1942-2014)

Foi-se o José Medeiros Ferreira! Vi-o, pela última vez, numa homenagem que a Casa dos Açores lhe prestou. Na intervenção com que encerrou a ocasião, pairava já um tom de despedida. Mas naquilo que disse esteve a mesma indómita coragem com que lhe víramos afrontar a terrível doença.

Tinhamos previsto fazer, dentro de algum tempo, um "mano-a-mano", numa conferência a dois, sobre "Portugal no Mundo". Seria a reedição de um idêntico exercício que ambos havíamos levado a cabo, a convite da Assembleia da República, sobre "A imagem de Portugal no mundo".

José Medeiros Ferreira, um açoreano que o acaso da vida quis que nascesse na Madeira (uma ironia com que ele brincava), foi uma grande figura da nossa democracia e da intelectualidade portuguesa. Perseguido e expulso da universidade na crise de 62, exilou-se em Genebra, onde fez parte do grupo oposicionista que publicou a revista "Polémica". Para o Congresso Republicano de Aveiro, em 1973, enviou uma "tese" em que prenunciava o modelo de revolta que, meses depois, viria a derrubar a ditadura. Ao lado de António Barreto, viria a juntar-se ao PS, depois de ser obrigado a fazer alguns meses de serviço militar... na famosa 5ª divisão.

Deputado, secretário de Estado e ministro dos Negócios Estrangeiros, viria a revelar-se com um pensamento estratégico de muito rara qualidade entre nós. Foi pela sua mão, num governo de Mário Soares, que Portugal pediu a adesão às Comunidades Europeias. A figura de Sá Carneiro seduziu-o e viria a ligar-se à sua Aliança Democrática, no pequeno grupo dos "Reformadores", uma vez mais com António Barreto, num percurso comum que não se manteria quando decidiu apoiar Ramalho Eanes, na aventura do PRD.

Seria de novo pela mão do PS que iria regressar ao parlamento, onde o cruzei como presidente da comissão de Assuntos Europeus, nos anos que passei no governo. Nunca mais regressaria a um executivo, embora eu pense que o país perdeu bastante com isso, ao não aproveitar o seu grande talento político. Porém, Medeiros Ferreira, que era uma voz que teimava ser independente e livre, tinha uma autonomia de pensamento que era, não raramente, algo incómoda para a máquina partidária.

Medeiros Ferreira foi um historiador de grande mérito, dedicado à História contemporânea e, muito em particular, ao papel dos militares. Professor universitário e comentador político, teve uma forte exposição pública nos últimos anos, nas televisões, nos jornais e na blogosfera, onde era autor de apontamentos de grande argúcia e frontalidade. Era um benfiquista afirmado e deve ter morrido contente por ver o seu clube prestes a regressar aos títulos.

Um dia, tive com o Zé Medeiros uma forte divergência. Com o tempo, soubemos ultrapassá-la, com mútuo garbo. Considerava-me um seu amigo e um seu grande admirador. Vai-nos fazer muita falta na tertúlia do Procópio, para onde nos trazia belas tiradas, que nos animavam as conversas e as ideias. À Maria Emília, deixo um sentido abraço.

10 comentários:

São disse...

Pêsames à família, em especial.

Mas também a quem o admirava e seguia o seu percurso, como eu fiz.

Embora esperada é uma notícia triste.

Que esteja na Luz!

Anónimo disse...

Dificilmente se encontram dez pessoas do seu quilate no Portugal contenporânreo.

Anónimo disse...

Medeiros Ferreira era um Senhor. Um político como hoje já quase não há. É curioso, mas, com a sua morte, somos levados a fazer paralelos com o que temos actualmente e quando no outro prato da balança encontramos o que vemos hoje em dia, no governo, mas também na oposição, arrepiamo-nos. O nosso nível político, dos nossos políticos, baixou a níveis que chocam. Perguntamo-nos: como foi possível ter-se chegado onde chegámos, termos hoje este miserável panorama, tão medíocre? O problema é que começamos aceitar a mediocridade sem dela nos apercebermos.
Como Medeiros Ferreira, já quase não há. Culto, educado, ponderado, de excelente trato, com princípios, valores, um político e uma pesso de mão cheia. E, hoje, uma raridade. A Política e o País ficaram mais pobres.

Anónimo disse...

Infelizmente, deste nível já não existem !

Alexandre

Anónimo disse...

Sobre o José pouco há a dizer porque a sua dimensão pessoal esgota todos os considerandos.

Para a Emília, irmão Luis e sua esposa Vera, meus amigos de longa data, aquele abração.

Guilherme.

EGR disse...

Senhor Embaixador: sempre que tive opurtunidade ouvi, com admiração, Medeiros Ferreira.
E sempre tive presente que foi uma destacada figura da oposição a ditadura, bem como acompanhei,enquanto normal cidadão interessado na vida do país, sua relevante participação na nossa política no pós 25 de Abril.
Lia, habitualmente, o seu blogue Cortex Frontal e, francamente, como há muito nele não aparecia um texto, suspeitava que algo de grave se passava com Medeiros Ferreira.
Por certo muitos considerarão,que a morte dele constitui uma perda.
Mas,quem assim não entendeu foi a RTP que hoje no Telejornal das oito somente passados 50 minutos de noticiario deu breve conta do falecimento de Medeiros Ferreira.
Antes disso a RTP noticiou as disputas entre Sporting e Futebol Clube do Porto a propósito das arbitragens.
Mais uma vez serviço público.








Anónimo disse...

açorIano

patricio branco disse...

magnifica, expressiva fotografia, as estantes cheias de livros, o abajur do candeeiro torto, o olhar pensante para fora à janela, etc
um grande homem, intelectual, académico, politico, os seus comentários em debates na tv eram sempre interessantes de ouvir
vi o a falar em 64 ou 65 na universidade, num comício, um colega que estava ao meu lado dizia, este não é o tipo de intervenção ou palavras de que a maioria dos assistentes gosta de ouvir, eram talvez palavras criticas pensadas, estruturadas, não incitações emocionais.
vi o uma vez a entrar na sá da costa com mario soares e Sottomayor cardia, anos 70, depois de almoço, bem vestidos, de sobretudos, era inverno, folhearam os livros expostos.
demitiu se em 1977 não sem antes ter definido orientações politicas importantes, cee, macau, mas ou tinha divergências com mario soares ou desejava voltar à vida académica, de historiador.
um homem correcto, simpático, que, felizmente, não fez da politica a grande ambição da sua vida, outras coisas tinha também para fazer...

Defreitas disse...

Vim aqui a este "blog", e a outros, para aprender, para comparar ideias e, no fundo, para dialogar.
De vez em quando leio aqui noticias tristes como aquela deste "post", sobre pessoas que não tive a oportunidade de conhecer. Por ter emigrado nos anos 60 e consequentemente ter assistido de longe a esses tempos da Revolução dos Cravos, muitos homens de qualidade só me apareceram no momento da partida, quando o tempo os devorou.

José Medeiros Ferreira é um deles. Depreendo daquilo que leio que era um patriota, um resistente, e um homem de grande cultura.
Por ter grandes lacunas deste domínio, tenho uma grande admiração por todos aqueles que deixaram páginas de cultura , ao mesmo tempo que afirmavam as suas convicções arreigadas , mesmo ao preço , por vezes, da própria liberdade.

O Senhor Embaixador presta-lhe uma justa homenagem, com a qualidade que lhe é conhecida, à qual não há nada a acrescentar.

Resta-me o sabor amargo de constatar que perdi muito ao deixar o meu pais, mesmo se na minha juventude também combati, com os meios que eram os meus, e na medida do que foi possível, ao lado doutras pessoas de grande valor.

Porque pessoas deste valor nunca há demais num pais tão pequeno e tão maltratado, é uma perda irreparável quando nos deixam .

Vasco Valente disse...

Foi um grande Ministro dos Negócios Estrangeiros, num momento particularmente difícil, quando a Democracia começava a consolidar-se e a dar os primeiros passos, com o 1.ª Governo Constitucional e demonstrou desde logo uma lúcida visão estratégica de quais eram os nossos interesses e qual devia ser a nossa posição. Infelizmente o seu mandato foi curto, mas contribuiu decisivamente para lançar as bases da nossa política externa. E foi também uma grande figura da nossa vida intelectual, que muita falta nos vai fazer pelas suas análises profundas, vindas duma inteligência superior e temperadas por uma dose salutar de fino humor. vamos sentir muito a sua falta. Que descanse em paz!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...