segunda-feira, janeiro 13, 2014

O toque do telefone

A introdução dos meus dados no computador prosseguia à velocidade necessária. Atrás do homem, um telefone tocou. O homem não atendeu. Passaram minutos. O telefone continuou a tocar. Passou um colega e perguntou ao homem a razão por que não atendia o telefone. O homem respondeu: estou a atender este senhor, respondo ao telefone quando terminar. Intervim para felicitar o homem, para dar-lhe razão, perante o colega que não deve ter gostado e algumas outras pessoas do público próximo, que senti divididas. Para mim, as coisas são claras: não se atende um telefone quando se está a atender alguém. É uma falta de atenção. Este episódio ocorreu há minutos.

Recordei-me então de duas cenas. A primeira foi "uma peixeirada", que, há uns anos, fiz ao balcão de banco. Estava a ser atendido por um empregado. Tocou um telefone e o empregado atendeu. Durante algum tempo, dedicou-se a dar informações pelo telefone, deixando-me de lado. Dirigi-me ao balcão ao lado e mandei chamar o gerente. O "meu" empregado continuava ao telefone. Pedi o livro de reclamações. O gerente estava aflito. Interrompeu o telefonema do empregado. Obrigou-o a tratar do meu assunto e a despachar a chamada telefónica. O empregado engrolou uma justificação de que tivera de interromper o meu assunto... porque o telefone tocara. Alto e bom som, deixei claro: "não admito que ninguém atenda um telefone quando está a tratar um assunto comigo. O telefone não pode ter prioridade sobre as pessoas que estão presentes.". Não sei se aprendeu.

Segunda cena. Uma grande figura da nossa diplomacia era conhecida por passar horas ao telefone. Sentávamo-nos em frente a ele no gabinete e éramos sistematicamente interrompidos por uma corte de amigos, conhecidos e personagens correlativos, a quem ele tinha dado o seu número direto ou para quem ele antes pedira um conjunto de chamadas, através da secretária. Esta consultava para tal a conhecida lista de telefones e endereços desse diplomata, manuscrita e há décadas rasurada, conhecida como "o livro de cozinha", com páginas soltas e nomes de mortos, que ele tinha pena de eliminar, o que chegou a originar confusões em fins de ano, porque para um deles chegou a estar preparado um cartão de Boas Festas, lamentavelmente tardias. Uma tarde, eu estava sentado frente a esse meu colega, tentando expor um determinado assunto e obter dele uma reação. A nossa conversa foi interrompida, sem exagero, aí umas seis vezes, por chamadas que chegavam. A certo ponto, "passei-me", levantei-me e fui para o meu gabinete. Telefonei-lhe. Respondeu-me de lá: "Anda aqui à minha sala. Ainda não acabámos a conversa!". Não hesitei: "Não vou. Se estou aí à tua frente, sou interrompido por algum telefonema. Assim, resolvemos isto pelo telefone, com a certeza de eu poder terminar o assunto". E assim fiz. Lembras-te, António?

O ator secundário

Este fim de semana, fui ao teatro. Era uma companhia paga com dinheiros públicos, isto é, nossos. A peça era fracota. Eu já sabia, mas tinha uma curiosidade quase masoquista em vê-la. Por uma qualquer razão, estive muito atento ao principal ator secundário e à sua relação cénica com o ator principal. Sempre achei interessante observar o papel que, em algumas peças, é desempenhado por quem, sendo um razoável artista, acaba necessariamente por sofrer a sombra da primeira figura. Era esse o caso. Já não é a primeira vez que dou comigo a pensar que alguns desses atores secundários têm um talento que talvez justificasse uma oportunidade num papel principal. Derivará essa impossibilidade de ascensão da má qualidade do "script", do grau de menor credibilidade ganha em "performances" anteriores, do modo como, nesse passado, terão ou não contribuído para êxitos da companhia, da forma como influenciaram negócios de bilheteira? Obrigado a um esforço de afirmação num papel que não dava para grandes voos, sujeito à necessária lealdade formal face à figura que é cabeça de cartaz, a qual vigiava a menor tentativa de protagonismo, numa peça onde a óbvia hierarquia artística condicionava a expressividade das diversas prestações, notei que o ator secundário se via, muitas vezes, obrigado a seguir um caminho estreito, de fino equilíbrio. Toda a sua coreografia, toda a interação com o público, passava-se sob esse angustiante dilema, que lhe limitava as marcações, que lhe impunha indesejadas barreiras no acercar da ribalta. Frequentemente, o público apercebia-se que havia ali uma vocação travada, mesmo uma evidente frustração. Em certos momentos da cena, ficou claro que o ator secundário foi tentado a correr alguns riscos, a dar-se ares daquilo que não pode ser, sofrendo, lá no íntimo, o facto de não lhe ter cabido o lugar de estrela da companhia. Olhamos para ele e sentimos isso bem, chegamos mesmo a ter uma simpatia pelo seu esforço, esquecendo até a mediocridade da peça. Estando do lado de fora do palco, observamos, quase divertidos, o óbvio combate surdo que dentro dele se trava. Um duelo que, no entanto, se vai prolongando enquanto houver público e palmas, apenas porque a bilheteira vai rendendo, porque "the show must go on" a todo preço, porque o elenco precisa de emprego. É que a sustentação de uma peça, por mais banal que seja, é independente do apreço que os atores possam manter ou não entre si. Conservarem-se em cartaz, fazerem prosperar o negócio, só isso justifica que continuem a contracenar, quiçá de mau grado, com uma camaradagem que pode ser apenas formal. E só isso faz com que um ator talentoso se sujeite à secundarização a que é votado. No íntimo, é capaz de já estar a pensar no futuro, noutras peças, noutras companhias, que lhe permitam manter-se em cena, porque ele alimenta-se do aplauso do público. E, por isso, lá vai andando, falando e rindo. Esta minha ida ao teatro não foi, como puderam deduzir, uma grande experiência. Mas foi uma oportunidade para notar que o público começa a declinar, farto desta farsa. Um destes dias saem do palco sob uma merecida pateada.

Prós e Contras

                            
Hoje à noite, na RTP1, vou participar no programa "Prós e Contras". Com Carlos Fiolhais, Ferreira Machado, Miguel Real e Nuno Garoupa discutirei os principais desafios nacionais do ano em curso.

domingo, janeiro 12, 2014

Gastronomia

O excelente blogue de gastronomia "Mesa Marcada" anunciará, no próximo dia 20 de janeiro, os nomes dos "10 restaurantes e chefes preferidos de 2013". Tive o privilégio e o gosto de integrar o júri desses prémios mas, infelizmente, vou estar fora do país na data dessa cerimónia.

Nessa semana, estarei em Paris, onde, no dia 22, farei parte com José Bento dos Santos, uma figura sem par no nosso país no que à gastronomia diz respeito, da "representação" portuguesa numa "session de travail" da "Académie des Psychologues du Goût", uma renomada confraria gastronómica, criada em 1922, de que ambos somos membros há vários anos.

Um gesto

Eu sei que o gesto não é vulgar no futebol, razão pela qual deve ser sublinhado, para exemplo ético-desportivo das novas gerações. Na noite de ontem, o Sporting Clube de Portugal, ciente de que uma eventual vitória sobre o Estoril "arrumaria" com o campeonato, decidiu, numa atitude de grande dignidade, deixar que o jogo chegasse ao fim empatado. Viu-se claramente que o desperdício de alguns golos teve um intuito deliberado, o que revela bem o nível de controlo sobre os jogadores que Leonardo Jardim consegue manter. Desta forma, o Sporting permite que hoje, num espetáculo muito interessante que terá lugar num estádio perto do Colombo, na freguesia e bairro de Carnide, qualquer das duas equipas que denodadamente disputam o 2° lugar na Liga possa ter a possibilidade de, pelo menos por uma jornada, assumir a liderança formal da classificação. Está nas mãos de uma delas ter essa efémera glória. Se acaso empatarem, não se queixem! Fizemos o que estava ao nosso alcance para terem essa alegria breve. E, claro, não damos mais abébias. Acabaram-se as festas e o período em que isto era "a feijões".

sábado, janeiro 11, 2014

Ariel Sharon

Depois de um muito longo coma, foi anunciada a morte do antigo primeiro-ministro israelita Ariel Sharon.

O mundo quase se havia esquecido dessa figura intransigente da direita israelita, celebrada pela arrojada travessia militar do canal do Suez, na guerra do Yon Kippur, em 1973, e, mais tarde, por fortes responsabilidades no massacre de Saabra e Chatila, no Líbano, em 1982. Deve-se ainda a Sharon, no entender de muitos observadores, a deliberada "provocação" que deu origem à segunda Intifada, após a sua ostensiva visita à esplanada das mesquitas, em 2000.

Recordei os dias em que, em 1978, acompanhando o então ministro da Agricultura e Pescas português, Luis Saias, visitei o seu "bunker" na propriedade familiar que tinha no deserto do Negev. Sharon era, então, ministro da Agricultura do seu país. Guardo fotografias desse momento.

Sharon era uma figura rotunda, com um ar um tanto "patronizing" mas com alguma cordialidade, de onde transparecia uma autoridade natural que advinha, sem dúvida, dos seus tempos militares. Na lógica tradicional da composição dos governos israelitas, cujo sistema eleitoral "balcaniza" o executivo por uma imensidão de partidos, a Sharon calhara a Agricultura, como mais tarde iria caber a Habitação. A importante dimensão político-estratégica destes cargos ia, porém, muito para além da tecnicidade do lugar, pelo que as conversas com o seu homólogo português - cuja especialização era, aliás, também limitada - não passaram de vagas generalidades.

A visita correu bem, com demonstrações de simpatia pessoal de parte a parte, com alguns projetos de cooperação técnica assinados. No seu termo, Luis Saias informou-me que decidira convidar aquele seu homólogo a visitar Portugal. A seu ver, a amabilidade com que este o recebera tinha de ser recompensada. Expliquei então ao nosso ministro que, como diplomata e representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros na delegação, desaconselhava vivamente que convidasse Sharon a ir a Lisboa. A posição portuguesa no delicado equilíbrio da questão do Médio Oriente era muito cautelosa e o MNE nunca viria a aceitar dar "luz verde", naquela conjuntura, à concretização do convite.

(Antes da nossa partida para Israel, como já relatei aqui há tempos, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sá Machado, havia-me transmitido pessoalmente as linhas "limite" de enquadramento desta visita técnico-política. Um convite para uma visita de Sharon a Lisboa ia, claramente, muito para além dessas instruções).

Luis Saias não teve em conta as minhas objeções e, na conferência de imprensa final (em que eu tive de traduzir o que disse...), deixou expresso o convite para Ariel Sharon visitar Portugal. Saias deixaria de ser ministro tempos depois, com o fim do governo PS-CDS. Para a História, Sharon não veio a Portugal.

(Adaptação de um post aqui publicado há mais de três anos)

"Cherchez la femme!"...

"Parecia que não partia um prato..." foi o comentário mais suave que ontem ouvi, num jantar maioritariamente feminino, a propósito das aventuras românticas a que é associado o presidente François Hollande. A ser verdade o que a imprensa rosa publica, logo seguida com hipócrita indignação pela avidez da restante comunicação social, Hollande não foge muito à tradição da grande maioria dos seus antecessores, que a História acabou por provar que mantiveram "affaires" extraconjugais, que aparentemente lhes atenuavam o peso das responsabilidades do Eliseu. Há uns anos, uma amiga ofereceu-me um curioso livro intitulado "Sexus politicus", que inventaria muitos deste pecadilhos.

Praticamente à exceção do general De Gaulle, a quem se não conhecem desvios à fidelidade a dona Yvonne, há em França relatos ou rumores sobre a quase generalidade dos seus presidentes, desde um que morreu no próprio palácio durante um desses encontros afetivos até outro, já mais recente, cuja rapidez no ato era resumida na célebre frase "dix minutes, douche comprise". 

O chefe do Estado francês sobre o qual há mais dados conhecidos neste domínio, talvez porque foi o primeiro que teve a desagradável experiência de ver a comunicação social quebrar a tradição de encobrimento público que até aí vigorava, foi François Mitterrand, cuja aura passou das políticas socialistas às aventuras amorosas. Ora sendo François Hollande um confesso seguidor de Mitterrand...

Alguma França puritana não vai achar graça ao facto do seu presidente poder estar envolvido num "affaire" desta natureza. Mas essa França já não gostava de Hollande. Posso estar enganado, mas fico com a sensação de que, numas próximas sondagens, François Hollande pode vir a beneficiar desta historieta, em termos de apreciação pública. Essa é a "graça" de um país como a França onde, tal como nos romances policiais, a resposta para muitas questões se encerra na expressão "cherchez la femme!"

sexta-feira, janeiro 10, 2014

Ainda Eusébio

O debate sobre se os restos mortais de Eusébio devem ou não ir para o Panteão Nacional parece-me enfermar de alguma imprecisão. Vejo muito poucas pessoas preocupadas em olhar para o que diz a lei:
 
"As honras do Panteão destinam-se a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica ou artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade".
 
Uma coisa é clara: o debate sobre se Eusébio merece ou não ser escolhido para poder vir a estar em Santa Engrácia só deve ter lugar depois de se confirmar que ele configura um dos casos tipificados na lei.
 
Alguém quer apostar comigo em como, dentro de um ano, período antes do qual a decisão não pode ser tomada, vai surgir uma polémica sobre a vírgula que figura no texto entre "ao país" e "no exercício"? Alguns dirão, atendo-se ao texto antes da virgula, que ele permite distinguir quaisquer "serviços prestados ao país". Outros dirão que esses "serviços" são apenas os que, após a vírgula, são elencados. E vai ser a Assembleia da República, com a mesma "competência" jurídica que pode ter criado esta ambiguidade, que se vai pronunciar, fazendo a leitura "autêntica" do diploma que ela própria gerou. 

Boas notícias e uma incógnita

Nem tudo são más notícias, do lado da Europa.
 
As últimas previsões, no tocante ao futuro presidente da Comissão europeia, dão conta de que o nome do antigo primeiro-ministro luxemburguês, Jean-Claude Juncker, pode vir a ser o eleito do setor conservador. Do lado dos socialistas, o atual presidente do Parlamento europeu, Martin Shultz, está já definido como candidato.
 
Em ambos os casos, estamos perante figuras que têm uma leitura do projeto e do processo europeu que basicamente se coaduna com os interesses de um país como Portugal. Sabemos que isso não é uma condição suficiente para que as coisas venham a correr bem para as "nossas cores", mas já seria uma boa ajuda.
 
Uma incógnita permanece: o nome do presidente do Conselho europeu, que substituirá Van Rompuy. Esta nova figura institucional, em má hora "inventada" pelo Tratado de Lisboa, é uma espécie de administrador dos poderes que o Conselho recuperou da Comissão. É um lugar decisivo, devendo nós estar atentos ao que o nome a escolher puder significar. Uma coisa teremos de ter por certo: será um nome da total confiança da chanceler alemã.

Estatística

O governo informou que 95% dos pensionistas estarão isentos do pagamento do "complemento extraordinário de solidariedade", que abrangerá as pensões superiores a 1000 euros.

Fica-se assim a saber que, em Portugal, 95% dos pensionistas vivem com menos de 34 euros por dia.

quinta-feira, janeiro 09, 2014

Futurologias

Talvez porque as pessoas já andem muito "escaldadas", tenho a sensação de que são cada vez menos populares as "previsões" feitas no início de cada ano. Lembro-me que, não há muito tempo, éramos inundados por diversos "videntes" domésticos, que nos anunciavam coisas várias para os 12 meses seguintes. Isso parece ter-se atenuado. Confesso que não sou muito atento a estas temáticas, mas esse "pelouro" parece-me que surge quase cativo da esticada Maya, uma espécie de bruxa social de serviço, com ar cada vez mais "asiático", que me surge em "zappings" e capas de revista.

Mas o mercado não está fechado: ontem, nos Restauradores, um africano estendeu-me um papel publicitário de um tal "professor qualquer coisa", que, entre outros "poderes", se declarava vidente e capaz de prever o futuro. Só o meu crescente ceticismo, adubado por meses de previsões para o país que nunca (mas nunca!) acertaram, é que me levou a dar ao papel o destino que espero para todos os videntes deste jaez.
 
Há, contudo, outro modelo de antevisão que se pretende mais sério e credível. Estou, em especial, a lembrar-me da publicação de "The Economist", no início de cada ano, intitulada "O Mundo em ...". Há uns tempos, em férias, encontrei duas dessas publicações, referentes a anos idos, e, por uns minutos, entretive-me a fazer uma comparação entre o que nos havia sido antecipado como possível futuro e a realidade dos factos que vieram a acontecer. Nem imaginam a diferença! Mesmo uma das revistas mais bem informadas do mundo - e talvez a melhor publicação que conheço, independentemente da sua orientação político-ideológica - revela-se incapaz de prever o curso das coisas.
 
Isto não significa que a edição do "The Economist" tenha interesse. O modo inteligente como as principais questões são selecionadas e colocadas é já meio caminho andado para nos ajudar a pensar melhor o que aí virá. Porém, daí a acertar em matéria de previsões vai uma grande distância. A realidade é sempre muito mais imaginativa que os homens.

quarta-feira, janeiro 08, 2014

A identidade cultural europeia

Recomendo vivamente a leitura do livro "A identidade cultural europeia", de Vasco Graça Moura. Trata-se de um ensaio muito lúcido e informado sobre o processo europeu. É um texto realista, desencantado sem ser nostálgico, que coloca o sonho europeu no lugar que lhe deve competir, à luz da estratégia considerada adequada para um país como Portugal.
 
Vasco Graça Moura é uma personalidade maior da cultura portuguesa. Poeta, ensaísta e tradutor, é um intelectual com forte presença no espaço público. Não se esquiva a polémicas, não procura ser consensual, defende com desassombro ideias e pessoas, quando as entende dignas desse seu empenhamento. Nesta sua radiografia do projeto europeu, que não pretende subordinar-se ao "politicamente correto" do europeísmo oficioso, assume uma heterodoxia que nos ajuda a pensar fora dos quadros vulgares, chamando as coisas pelos nomes que entende próprios. Podemos não concordar com tudo o que escreve - a mim, isso aconteceu-me várias vezes, ao longo do texto - mas nunca nos deixa indiferentes. Essa é a qualidade que se exige a um intelectual.  

O flagrante


Os protagonistas são de língua espanhola. A historieta é muito antiga e é um clássico das atribulações afetivas da vida diplomática. Foi-me recordada ontem, durante um almoço com colegas.

Numa determinada capital, o embaixador mantinha uma relação sentimental com a mulher de um jovem colaborador. Um dia, por um desencontro de agendas, o diplomata entra na sua residência e encontra o chefe em "vias de facto" com a sua esposa.

Ao embaixador, assumindo a fragilidade em que a situação o colocava, preparado, quem sabe?, para um ajuste de contas, só lhe ocorre dizer:

- Estou à sua disposição!

O jovem diplomata, com um sentido de avaliação da conjuntura e uma capacidade de reação que prenunciava já uma bela carreira, ter-lhe-á respondido:

- Quero um novo posto, com promoção.

terça-feira, janeiro 07, 2014

Estádio Eusébio

Gostava muito que a final da Taça de Portugal, a partir desta época, passasse a ser disputada no Estádio Eusébio.

O mistério

Governantes empolgados louvam a importância das exportações para a nossa economia. Em encontro com a diáspora de sucesso, o chefe do Estado sublinha a necessidade da promoção externa do país, com vista a cativar o investimento estrangeiro. Os empresários turísticos afadigam-se a explicar que Portugal deve promover a sua oferta em cada vez mais mercados. Todos entendem decisivo garantir a valorização do actual esforço financeiro português junto dos nossos parceiros e instituições.

As relações com antigas colónias degradam-se, sendo necessário sustentar persistentes esforços de diálogo, em várias dimensões, para as reconduzir à normalidade. Empresas portuguesas expandem a sua actividade em novos mercados, nos quais importa acompanhar com atenção a sua presença e a dos seus trabalhadores. A emigração portuguesa aumenta exponencialmente para vários países, em números que se equiparam aos dos anos 60 do século passado, requerendo esses novos migrantes e suas famílias apoio e aconselhamento consular.

Escritores, artistas e figuras da intelectualidade portuguesa são hoje admirados pelo mundo, sendo vital aproveitá-las como “soft power” de prestígio para recuperação da imagem do país. A CPLP, sendo a única instância multilateral onde Portugal tem uma posição nuclear, deve funcionar como alavanca para a promoção da língua portuguesa, que tem no ensino no exterior um dos veículos essenciais. Uma política para o mar, onde Portugal dispõe de vantagens comparativas à escala de uma potência, obriga a um esforço multilateral de grande envergadura.

Elenquei alguns dos muitos desafios que competem hoje à nossa diplomacia. A acção externa revela-se um dos terrenos essenciais onde Portugal pode encontrar soluções para a superação das suas debilidades, para ajudar à recuperação da sua soberania e imagem.

O “Seminário Diplomático” que ontem e hoje decorre, reunindo governo e diplomatas, vai, com toda a certeza, trazer respostas concludentes para o facto de um Ministério que já tinha uma das mais baixas dotações do Orçamento Geral do Estado (inferior a 1%), nele ter sofrido um dos maiores cortes de todos os departamentos oficiais (11,2%). Vai também, estou certo, explicar porque tem vindo a diminuir drasticamente o número de diplomatas, técnicos e funcionários administrativos do MNE, em Portugal e na nossa rede externa. Deve, seguramente, dar conta clara da racionalidade subjacente à redução e descapitalização funcional de postos consulares em tempo de maiores migrações, à diminuição dos professores junto dessas comunidades emigradas, à imensa quebra das verbas atribuídas ao Camões para a ação cultural. E permitirá, não tenho a menor dúvida, fazer entender o modo como a redução das quotizações e contribuições devidas às organizações internacionais se torna consequente com uma política externa capaz de estar à altura da defesa dos interesses do país. Estou certo que o “Seminário Diplomático” vai esclarecer tudo isso. Até lá, continuará o mistério dos Negócios Estrangeiros.

* Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, janeiro 06, 2014

Confissão tardia

Os brasileiros dizem "caiu a ficha" para designar o instante em que uma certa informação nos desencadeia um reflexo de memória. Foi o que me aconteceu, há dias, quando, ao selecionar os livros que ia doar à Biblioteca Municipal de Vila Real, deparei com "A Sociedade da Abundância", de John Kenneth Galbraith, uma edição de 1963, da "Sá da Costa".
 
O livro original é de 1958 (!) e, à época, foi considerada um obra fundamental daquele famoso economista (e também embaixador americano na Índia, período de que resultou uma memória muito interessante, o "Ambassador's Journal"). A tradução (verifico agora) é de Henrique de Barros, uma grande figura que viria a ser ministro e presidente da Assembleia da República.
 
Aí por 1967 ou 1968, eu costumava passar por aquela Biblioteca, em algumas tardes de férias. Era o tempo em que ela funcionava no rés-do-chão do município, com entrada junto ao liceu. Requisitava um livro ao sr. Agostinho e, lido que fosse, devolvia-o e pedia outro. "A Sociedade da Abundância" terá sido a única exceção a esta regra, talvez por ter sido o último livro que por lá pedi. Fui ficando com ele, julgo que a certa altura já tinha acanhamento de o devolver. Tenho mesmo a ideia de que, às vezes, me furtei ao olhar do sr. Agostinho, pelas ruas da cidade, quando com ele me cruzava.
 
Resolvi há dias esta questão, enviando definitivamente o livro, com muitos outros, para a Biblioteca, no âmbito da doação de que aqui falei. Mas será que ele deve integrar o meu espólio? O Vitor Nogueira que decida...   

História retocada

A fuga da sinistra prisão de Peniche, protagonizada em 1960 por Álvaro Cunhal e nove outros dirigentes do PCP, foi há dias recordada por esse partido.
 
Há poucas semanas, o PCP publicou também uma interessante fotobiografia de Álvaro Cunhal, comemorativa do centenário do seu nascimento.

Não posso deixar de sentir pena que, no primeiro dos casos, durante décadas, o PCP tenha escamoteado, em todos os seus textos, que Francisco Martins Rodrigues fazia parte do grupo que integrou a audaciosa fuga. Porquê? Porque, meses após esse importante momento, Martins Rodrigues viria a abandonar o PCP e protagonizou uma dissidência de esquerda.

E lamento muito que agora, numa clara manifestação de sectarismo, os autores da oficiosa fotobiografia tenham manipulado a imagem em que Cunhal aparece sobre um tanque, na sua chegada ao aeroporto de Lisboa, em 29 de abril de 1974, dela retirando a imagem de Mário Soares, que estava igualmente ao lado do líder do PCP, e que, com esse gesto, dera um magnífico exemplo de solidariedade democrática. Nem Mário Soares merece este ato censório, nem a memória de Álvaro Cunhal fica com ele melhor servida.

O PCP foi um partido que, como nenhum outro, lutou pelo fim do regime que os militares derrubaram em 1974. Muitos homens e mulheres comunistas sacrificaram anos das suas vidas ao seu ideal, sofreram prisões, torturas e perseguições. Por isso, os comunistas não têm necessidade de esconder a realidade para retocar a sua história.  

domingo, janeiro 05, 2014

O senhor Eusébio


Todos devemos reconhecimento a quem nos fez sentir felizes. Eusébio foi responsável por alguns momentos de alegria que tive. Agora, hora da sua morte, agradeço-lhe por isso.

Eusébio costumava contar que, quando chegou a Portugal, feito pé-de-obra colonial, tinha tanto respeito pelos seus colegas já consagrados que tratava o "capitão" Mário Coluna por "senhor Coluna". Pela consideração que a sua figura me merece, apetece-me hoje tratá-lo por senhor Eusébio.

ps - esta excelente foto de Nuno Ferrari, no momento em que Portugal começou a reduzir os três golos que a Coreia do Norte nos tinha imposto, durante o Mundial de 1966, passou a representar, para mim, a imagem da determinação e da garra que é necessário ter quando as coisas correm mal e é urgente "dar a volta" à vida. 

O meu amigo Eros

Salvo para alguns leitores brasileiros, o nome de Eros Grau pouco dirá. Um dia, na embaixada francesa em Brasília, fiquei sentado num jantar perto dessa figura imensa, de barba inesquecível, que eu já tinha visto na televisão. Mas nunca tinha encontrado pessoalmente o juíz do Supremo Tribunal Federal, um dos onze que compõem a instituição. Recordo-me de ter-lhe dito que, na madrugada anterior, estivera deliciado a ouvi-lo, num animado debate jurídico em que ele interviera. Citei mesmo uma frase curiosa, que ele pronunciara nessa circunstância. Eros Grau olhou para mim, surpreendido com a inesperada atenção que eu dava à vida do judiciário brasileiro: "Nem minha sogra viu! Você, embaixador, perde tempo com isso?". E deu uma imensa gargalhada. Foi o início de uma primeira longa conversa.

Eros Grau é um distinto jurista e intelectual brasileiro, professor universitário, autor de dezenas de obras, especialmente na área do Direito económico. Tem em Tiradentes uma fantástica biblioteca de mais de 30 mil volumes. Gosta da vida e gosta dela com a Tânia, com a família, com os amigos, alguns criados ao tempo da luta contra a ditadura brasileira, período em que esteve preso. Entusiasma-se por causas, é um furioso defensor da ética na política, o que lhe tem valido, nos últimos anos, remoques de antigos amigos. É uma das pessoas mais divertidas que conheço, culto "à bessa" (como dizem os brasileiros), com limite curto de paciência para os "chatos de galocha" que o mundo às vezes nos coloca à frente.

Desde essa noite de Brasília, passou entre nós uma corrente de simpatia, que viria a ser cimentada por visões comuns da vida. Com os anos, Eros passou de um conhecido a ser um grande amigo meu. Hoje é um amigo íntimo, como tenho muito poucos, daqueles quecse contam pelos dedos de uma mão. Longas noites passámos na charla, acompanhada de álcoois, histórias e gargalhadas, primeiro no Brasil, depois muito em Paris, onde Eros Grau, hoje aposentado do judiciário, mas bem ativo, tem uma residência e também trabalha. Viajámos juntos pela Europa. Comungamos paixões por muitas coisas, somos cúmplices de outras, trocamos alguns segredos.

Eros escreveu um livro de que já aqui falei um dia e que faz furor junto dos muitos brasileiros que amam Paris: "Paris - Quartier Saint-Germain-des-Prés". Uma noite de domingo, na brasserie Lipp, uma brasileira aproximou-se da nossa mesa, volume em punho, para lhe pedir um autógrafo. Enquanto o Eros laborava na dedicatória, a senhora voltou-se para mim e perguntou: "Você deve ser o Francisco, não?". É que o Eros começa um dos seus capítulos do livro dizendo que, aos domingos, ele e a Tânia juntavam invariavelmente conosco na Lipp...

Hoje à noite, domingo, nessa mesma Lipp, o Jean-Louis "arrumará" uma mesa para a Tânia e para o Eros, naturalmente do lado direito da sala. Aposto que o Eros começará por pedir o arenque Bismark (que não sai da lista desde dos anos 20), seguir-se-á a "leve" choucroute, para tudo acabar num "mille feuilles au kirsch", a partilhar com a Tânia. Ah! tudo regado com um Chablis. Atravessado o boulevard, o café será servido no "Flore" (na mesa à esquerda da porta que, para si, leitor, terá um inultrapassável "reservée" metálico), com o Francis a ordenar a saída do "médicament", nome com que o Eros crismou para sempre uma "poire william" que o meu fígado já não ousa há décadas.

Porque falo nisto hoje? Porque acabo de me dar conta que, no dia 20, segunda-feira, chegamos nós a Paris, vamos jantar à Lipp e nela não estarão a Tânia e o Eros, já então de abalada para o Brasil. Caro Eros, contrariamente ao que dizia o teu querido sósia de Trier, nem sempre a História se repete. Ou melhor, sem ti, como ele também afirmava, é tudo uma farsa.

Em tempo: o Eros e a Tânia acabaram pir alterar a sua partida para o Brasil para jantar conosco, um dia na Lipp (o Eros diz "o Lipp", eu digo "a Lipp", por respeito ao género da "brasserie") e outra na Closerie de Lilas. Noites bem divertidas, que invariavelmente acabaram no Flore, com o Francis a mostrar-nos retratos da sua neta "moitié portugaise".

sábado, janeiro 04, 2014

A realidade nos matraquilhos

("Um verdadeiro sportinguista não deveria contar esse episódio no blogue", disse-me o meu leonino interlocutor, com ar pré-censório, quando ontem lhe relatei que ia escrever o que se segue. É isso: eu não devo ser um "verdadeiro" sportinguista, sou, muito simplesmente, um sportinguista sincero, que não teme os factos. Por isso, aqui vai a historieta.)

Foi num dia da primeira metade dos anos 80, perto de S. Bento da Porta Aberta. Aquele meu amigo, então com casa no Gerês, onde passávamos belos dias de férias, era - e é - um leixonense dos quatro costados. Nessa qualidade, detesta tudo o que lhe "cheire" a Futebol Clube do Porto. Assisti a episódios homéricos, decorrentes desta inultrapassável fobia.

Por esses dias, o seu objetivo era adquirir uma mesa de matraquilhos, se possível em segunda mão, para apoio lúdico à moradia no Gerês. Nessa tarde de verão, tínhamos parado para beber uma cerveja, num café de estrada. À entrada, notámos um letreiro: "Vende-se mesa de matraquilhos". Vinha mesmo a calhar!

Enquanto eu me deliciava com um "fino" atremoçado, o meu amigo partiu para a cave, com o dono do café, para ver a mesa à venda. Não eram decorridos mais do que uns breves instantes quando ouvi uma troca de argumentos e vi o meu amigo emergir da escada, arfando e exclamando: "Era o que faltava! O gajo é 'andrade'!". E, passando por mim, a caminho do carro, anunciou: "Já não bebo nada! Aqui nunca mais venho". E saiu, disparado. Fiquei curioso: seria apenas pelo facto de ter constatado que homem era portista que o meu amigo se recusara a fazer o negócio? Mesmo para um leixonense radical, era demais!

Quando, acabado o "fino", regressei ao automóvel, decifrei o mistério. Não, não fora a circunstância do proprietário do café ser adepto do FCP que provocara a cena. A reação devera-se ao facto de uma das "equipas" dos matraquilhos ter o azul do equipamento portista. Para o meu amigo, a saída do verde-vermelho tradicional era lamentável. E então ter "o Porto" em casa, isso seria impensável!

Para mim, esse acabaria por ser um momento significativo. Nunca vira, em Portugal, uma mesa de matraquilhos cujos bonecos não tivessem as cores do Sporting e do Benfica. Mas o mundo tinha mudado. O Porto entrava, por legítimo direito, nesse "campeonato" do imaginário. Não era uma constatação que deixasse feliz um sportinguista. Mas era o que era.

sexta-feira, janeiro 03, 2014

Interesses estratégicos

Notícia que acabo de ler no "Diário Económico":

"Passados mais de dois anos de ter sido incumbido de criar um regime extraordinário para acautelar privatizações que coloquem em causa a segurança e os interesses estratégicos nacionais, o governo apresentou finalmente a proposta de lei no parlamento. O documento, a que o DE teve acesso, deu entrada na Assembleia da República a 9 de dezembro e especifica que o governo passa a poder vetar negócios que "afetem a disponibilidade das principais infraestruturas ou ativos estatégicos afetos â defesa e segurança nacional ou à prestação de serviços essenciais nas áreas da energia, transportes e comunicações".

É muito curioso que esta iniciativa legislativa surja depois das principais privatizações nestes setores estarem já concluídas. 

Criação de emprego

Alguns comentadores com mau feitio não se cansaram de criticar os números sobre os novos empregos gerados graças às políticas deste governo, que há dias foram jubilosamente anunciados pelo primeiro ministro. 

Cá por mim, até acho que os números apresentados foram modestos! 

É da mais elementar justiça colocar a crédito das políticas públicas deste executivo as centenas de milhares de empregos de que os portugueses têm vindo a beneficiar - em Angola, Moçambique, Reino Unido, França, Brasil, etc.

Já é vontade de dizer mal...

"Ilustração Portuguesa"

São 37 volumes. Encadernados em belo couro. É a "jóia da coroa" da minha biblioteca. É a coleção completa da "Ilustração Portuguesa", esse retrato ímpar da vida portuguesa, de 1903 a 1924. São 947 números recheados de fotografias. Está lá tudo - a decadência (escondida) dos últimos Braganças, o regicídio, os números empolgantes sobre o 5 de outubro, toda a saga da Primeira República, com a Grande Guerra pelo meio. Os últimos números denotam já um certo cansaço. Era o regime a esvair-se, a caminho da ditadura.

A "Ilustração" figurava em destaque em casa da minha avó, em Viana do Castelo. Fora colecionada, durante mais de 20 anos, por uma figura que só conhecíamos pelo retrato fardado na parede e pelas medalhas pendentes num caixilho envidraçado: o Tio Túlio. O meu pai falava sempre desse cunhado, desaparecido ainda antes de eu nascer, como uma figura de pendor intelectual, dado a conhecimentos bizarros, do esperanto ao espiritismo, das técnicas policiais a estudos sobre tipos tipográficos. Já um dia por aqui falei desses armários recheados de belas encadernações, situados no apelativo escritório, uma sala onde, a partir de meados dos anos 50, durante os meses de verão, era armada a minha cama. Cresci com esse cenário das três paredes de livros que me rodeavam nas férias. Só muitos anos mais tarde essas vitrines me foram acessíveis, embora com decrescentes limitações. Foi a partir de então que pude começar a folhear a "Ilustração", mas também a coleção do ABC, uma revista iniciada nos anos 20 e que iria desaparecer nos primeiros tempos do Estado Novo, com um toque gráfico modernista, mas já sem a qualidade de conteúdo da "Ilustração Portuguesa".

Por um daqueles percursos das coisas que ocorrem na vida das famílias, aquela coleção da "Ilustração" surgiu um dia à venda, em meados dos anos 60, num alfarrabista do Porto. O meu pai soube do facto e pediu a um amigo, que se deslocava regularmente àquela cidade, para se informar sobre o preço que era pedido. O custo pedido ainda era significativo e os tempos não eram fáceis. Para minha surpresa, o meu pai, que não era muito dado a consultar-me para coisas da vida, perguntou-me se eu estaria interessado em ter a "Ilustração" para mim. Disse logo que sim, a "Ilustração" era um sonho que nem sequer ousara ter. O amigo viajante encarregou-se da compra e, um dia, lá chegou um pesado volume. A "Ilustração Portuguesa" passou, desde então, a ser "minha".

quinta-feira, janeiro 02, 2014

Viena

Durante anos, dava-me algum trabalho conseguir assistir em direto, na televisão, ao concerto de Ano novo que, em cada dia 1 de janeiro, a orquestra filarmónica de Viena executa no Musikverein, a mítica sala da capital austríaca. Às vezes não estava em casa, noutras tinha por lá gente, outras ainda andava em viagem. Os sistemas de gravação automática dos canais de cabo permitem-nos agora ver o espetáculo quando nos apetece, o que nos deixa sem desculpa para não assistir a um dos grandes momentos do ano musical à escala global. Foi o que fiz ontem à noite.

Quando vivi em Viena, nunca por lá passei os períodos de fim-de-ano, pelo que também nunca me vi obrigado a lutar para obter entradas para este concerto. Fui ao Musikverein diversas vezes, a mais curiosa das quais terá sido num dos meses iniciais de 2003, para o "Ball Der Industrie und Technik", um dos grandes bailes anuais da capital austríaca. Apesar de ser um "pé-de-chumbo", lá engalanei a labita de grã-cruzes para o evento, como é de regra. O Musikverein é uma das salas de espetáculo mais fascinantes que conheço, pelo que, confesso, tive pena de nunca ter estado, ao vivo, num seu concerto de Ano novo. Participar no tradicional acompanhamento, pelos espetadores, da marcha Radetzky, de Johann Strass, a tradicional última peça do concerto, foi algo que (ainda?) me ficou por fazer.

Viena foi um posto diplomático que me deixou "mixed feelings". Em 2002, fui para lá viver contra a minha vontade, interrompendo inopinadamente o trabalho que estava a fazer noutras funções. Coube-me então a responsabilidade de dirigir uma imensa representação nacional (só entre diplomatas, militares e técnicos vários, éramos, creio, 18 pessoas, além do pessoal administrativo), num período complexo, durante a presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa). Saído dessa tarefa intensa, passei, de um dia para o outro, e contrariamente ao que estava acordado, a um período que costumo qualificar como a minha "osceosidade". Porque estar sem praticamente nada para fazer se coaduna muito pouco com o meu feitio, optei por me dedicar a palestrar sobre um tema bem especioso, as chamadas CSBM ("Confidence and security building measures"). Em representação e a expensas da OSCE, andei então por sítios tão diversos como Trieste, Astana, Tóquio, Amman, Varsóvia, Tbilisi, Seoul ou Charm-el-Sheik, entre outros. Se Portugal me dava uma indesejada sabática, aproveitei para viajar e trabalhar. E, nas folgas, ouvir música.

Lembrei-me ontem disto e de muito mais ao ver e ouvir o magnífico concerto vienense de Ano novo, sob a direção de Daniel Barenboim.   

quarta-feira, janeiro 01, 2014

O novo ano

Deixei, há muito, de acreditar na ritual ideia de ter o início do ano civil como ponto de partida para um novo tempo na vida pessoal. Se, ao longo do ano anterior, não fomos capazes de mudar atitudes e práticas, dificilmente será a simples entrada de janeiro a dar-nos a força e, em particular, a  persistência que até aí não tínhamos tido - seja o arrumar daquela estante ou arrecadação, sejam os contactos pessoais em atraso, seja recomeçar a escrever um texto há muito adiado ou qualquer outro ato que seguramente nos ajudaria a melhorar e organizar a vida. Mas percebo muito bem que alguns persistam em tentar utilizar essa marca temporal como o momento para o abrir da ilusória cortina que nos separa de um futuro de maior racionalidade.

Pesando bem as circunstâncias, contudo, iniciar uma dieta hoje não seria uma má ideia...

terça-feira, dezembro 31, 2013

Governo

José Leite Martins é o novo secretário de Estado da Administração Pública. Conheço-o bem, em especial ao tempo em que dirigia os serviços jurídicos do MNE. É uma pessoa que me merece simpatia. Recordo o dia em que me deu conta da sua vontade de não continuar no lugar que ocupava, não obstante o governo a que eu então pertencia não ter intenção de vir a substituí-lo. Foi ele quem insistiu em sair, por opção de carreira. Tempos depois, seria testemunha privilegiada de que outros tempos trazem outras formas de fazer política.

António Costa Moura, o novo secretário de Estado no Ministério da Justiça, foi o meu mais direto colaborador em Paris, em 2009, tendo depois ido ocupar a chefia do consulado-geral em São Francisco. Ficámos amigos. Também ele antes tivera oportunidade, bem de perto, de testemunhar o sectarismo político a comandar a administração pública. Noutro ciclo político, claro. Falámos muito sobre isso.

Todas as felicidades que a ambos desejo são, naturalmente, pessoais. Como eles compreenderão.

A Misericórdia dos Mercados

Neste último dia do ano, deixo-os, por ora, com o magnífico poema - "A Misericórdia dos Mercados" -  que fui buscar ao sempre imprescindível Tim Tim no Tibete:

Nós vivemos da misericórdia dos mercados
Nào fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a
própria criação.
Nós é que não fazemos falta.

segunda-feira, dezembro 30, 2013

Blogue

Diálogo, hoje à tarde:

- Não percebo como é que tens temas para escrever todos os dias o teu blogue...

- Nem sempre tenho, é verdade.

- Então como fazes?

- Arranjo...

Paulo Ferreira

Paulo Ferreira é um excelente jornalista económico. Conheci-o ao tempo em que ele trabalhava no "Diário Económico". Era diretor-adjunto, com Sérgio Figueiredo como diretor. Recordo-me de termos tido uma curta mas divertida polémica, já não sei a propósito de quê. Ficámos amigos. Nos anos seguintes, vi-o comentar economia na televisão, sempre de uma forma discreta, acessível, bem fundamentada, sem o "rei na barriga" de algumas vedetas do setor.

Paulo Ferreira sai agora de diretor de informação da RTP. Vai assim ser mais fácil marcarmos o almoço que, há semanas, havíamos combinado.

Em tempo: Paulo Ferreira vai passar a ter uma coluna semanal no "Diário Económico". Ficaremos "colegas"...

domingo, dezembro 29, 2013

El Porto

Nos restaurantes e nas lojas, os empregados já arriscam o "portuñol" sem se rirem. Eles e elas, com a decibélica sonoridade pública ibérica, comentam montras e chamam pelo "cariño" no passeio das Cardosas ou à porta dos bares da Galeria de Paris. Os espanhóis "invadem" - e fazem muito bem, só podemos felicitar-nos por isso! - o Porto nos dias de hoje, chamados pelos preços de um país em saldos de si mesmo, por uma cidade sobriamente acolhedora, com a pedra das casas e o esconso das vielas a lembrar-lhes, confortavelmente, a sua terra, em especial a Galiza, que é também uma parte de nós mesmos.

Mas a Espanha já por cá estava antes dos espanhóis chegarem. No novo e excelente Vinium, fui recebido por um espanhol e muito do menu deve bastante a "nuestros hermanos". No Hotel da Música, a loiça era Porcelanosa. Saída a porta, dou de caras com uma Zara. Entrado no Península ("por supuesto"), a primeira loja era Purificación Garcia, ao fundo o Adolfo Dominguez e a Bimba & Lola, com a Carolina Herrera, do outro lado, a reforçar a marca da "hispanidad". Atravessando a rua para o renovado mercado do Bom Sucesso, por lá temos a "tienda" do "jamón" Joselito, com o Cinco Jotas disponível e, um destes dias, aportará por ali o imbatível Maldonado.

Para mim, que gosto e admiro a Espanha, isto são só boas notícias. Espero, contudo, que as nossas empresas sejam também capazes de se colocar na primeira linha do mercado espanhol, logo que se confirmem os sinais de recuperação económica. E que os governos portugueses estejam mais atentos à necessidade de lutar contra o tropismo protecionista que os nossos únicos vizinhos terrestres não deixam regularmente de assumir, seja em obstáculos não pautais ao comércio, seja em dificuldades administrativas que por vezes inviabilizam a presença portuguesa em setores económicos espanhóis. É que, antes da crise, o mercado português representava para a Espanha mais do que a totalidade do seu comércio com todas as suas antigas colónias nas Américas. Sabiam? Os empresários portugueses sabem bem do que falo.

Guiné-Bissau

O embarque forçado de dezenas de cidadãos sírios num avião da TAP, sob pressão das autoridades guineenses, constituiu um ato da maior gravidade e representou um gesto de clara hostilidade para com Portugal. A questão, contudo, tendo uma indiscutível dimensão bilateral, não pode deixar de ser tratada, em prioridade, no quadro internacional, perante o qual deve ficar bem claro que a administração de facto que domina Bissau age à margem das normas mínimas que um qualquer Estado deve respeitar na ordem externa. A acrescer às acusações de cumplicidade no narcotráfico, o governo saído do golpe militar anti-constitucional projeta agora esta nova imagem delinquente e isto não pode passar impune perante a comunidade internacional. Nenhum argumento de realpolitik deve sobrepor-se à necessidade de Portugal dever estar, neste caso, na primeira linha de mobilização de vontades para promover a condenação de um Estado pária que é como a Guiné-Bissau de hoje se apresenta ao mundo.

Portugal pode e deve também retirar todas as consequências, no plano bilateral, das inaceitáveis, por desrespeitosas, declarações de responsáveis guineenses face à legítima expressão de indignação formulada pelas suas autoridades (e era importante que se soubesse que decisões o nosso governo tomou já nesta matéria), mas só se fragilizará se se continuar a deixar envolver numa "guerra" de argumentos através da qual a parte guineense procurará criar fórmulas sucessivas de diversão, iniciadas com o caricato "relatório" sobre o incidente e prolongadas agora com "questão" as dívidas da TAP. 

A condenação essencial que é importante garantir para este ato de pirataria - e é como ato de pirataria que o assunto deveria ter sido tratado por Lisboa desde o primeiro momento - é, naturalmente, no campo multilateral. Com firmeza e sem tibiezas, nomeadamente sem se deixar impressionar pelos apelos apaziguadores da comunidade dos interesses, que não podem nunca sobrepor-se aos princípios que sempre compete a Portugal defender na ordem externa, o nosso país deveria ter ido muito mais longe do que até agora se sabe ter ido no processo de denúncia e isolamento das autoridades guineenses, quer no plano multilateral europeu (mas não só), quer no âmbito da mobilização da solidariedade por parte da CPLP, que curiosamente não se viu nem ouviu. Mas, de facto, não tendo hoje Portugal, na prática, um representante diplomático junto da organização - inacreditável situação a que a nossa comunicação social não presta a menor atenção - como poderia o nosso país utilizar o quadro lusófono como uma das frentes para tratar devidamente este assunto?

Com pena, temo que nos deixemos enredar num processo que, com o passar dos dias, e com a prestimosa ajuda das agências portuguesas de comunicação - que, nos últimos dias, ajudam Bissau a "plantar" entrevistas, declarações e até "notícias" na nossa imprensa - , acabará por "beneficiar o infrator" ou, pelo menos, deixar passar impune esta falta. Espero bem estar enganado...

sábado, dezembro 28, 2013

Décadas

Faz hoje precisamente 40 anos. Encontrámo-nos com os padrinhos num café na praça de Londres. Descemos a Guerra Junqueiro, subimos a um cartório e assinámos o que havia para assinar. O padrinho estava tão bem aperaltado que o conservador lhe perguntou se era ele o noivo! Acabada a cena, fixada para a posteridade por uma máquina a que o dono se tinha esquecido de tirar o filtro amarelado que à época se usava muito para atenuar o sol (o que fez com que o nosso genuíno sorriso, registado na ocasião, tivesse ficado, para sempre, amarelo), lá seguimos todos (o "todos" eram os noivos e os dois padrinhos) para uma jantarada que, não sei bem porquê, foi em Sesimbra. Foi assim que esta história começou. Ou melhor, ela verdadeiramente começou antes, pelo que hoje vamos comemorá-la, também com pouca mas muito boa gente, isto é, com dois amigos (e respetivos pares) que, vai para cinco décadas, testemunharam o início de tudo.

sexta-feira, dezembro 27, 2013

A outra cidade

Vi-o ontem, a dar comida aos pombos. Deve ter cerca de 80 anos. Na Vila Real da minha adolescência, um tempo em que a homofobia tresandava na sociedade portuguesa, era objeto regular de sorrisos irónicos, quando não de "bocas" soezes, ao cruzar, com passos curtinhos e andar bamboleante, os nossos grupos de adolescentes, "armados" em machistas. Viamo-lo passear sozinho ou com outro amigo de perfil público similar. Às vezes, perdia-se com soldados "do 13", pelos caminhos do Circuito. Fazia então parte de um grupo de figuras que viviam num outro mundo, nessa sociedade de província que, nos anos 50 e 60, deve ter sido um espaço asfixiante e trágico para quem era forçado a desafiar a "normalidade" instalada. Esta é também uma imagem, bem menos gloriosa mas seguramente inevitável para a época, da cidade da minha juventude.

quinta-feira, dezembro 26, 2013

"Cavaleiro Andante"

                                     
O "Cavaleiro Andante" moldou para sempre o meu imaginário. Algumas memórias fortes que marcaram a minha infância e juventude foram fixadas a partir dessa incomparável revista de banda desenhada (na altura, dizia-se "de quadradinhos"), que acolhia preferentemente os autores tributários da "escola belga" de BD, e que abriu caminho aos primeiros desenhos portugueses. Mas a revista tinha muito mais: falava-nos de história, de desporto, de literatura, trazia jogos e promovia a interação com os seus jovens leitores. O "Cavaleiro Andante" nasceu em 1952, tinha eu quatro anos, e durou dez anos. Observando alguns números mais antigos e o facto de várias histórias neles inseridas permanecerem na minha memória, concluo que, muito provavelmente, eu tenha então lido restrospetivamente toda a coleção. Durante anos, pela casa dos meus pais, havia números dispersos dessa revista semanal que tão importante fora para a minha formação. Fui assim matutando na possibilidade de vir a reconstituir a coleção completa da revista.

Um dia, em 1986, decidi colocar um pequeno anúncio em "A Capital", onde dizia estar interessado em adquirir a coleção completa do "Cavaleiro Andante". Surgiu uma única resposta. Numa noite, fui a uma cave na avenida Dom Carlos, em Lisboa, onde vivia o vendedor. Era um homem bastante mais velho do que eu. Tinha à venda uma excecional coleção, a que faltavam apenas meia dúzia de números, o que me satisfazia por completo. A conversa nunca a esquecerei. O homem mantinha as revistas embrulhadas em jornais e deixou claro que desfazer-se delas lhe custava bastante. Os olhos brilhavam-lhe enquanto me contava que, ao longo dos anos, tinha conservado cuidadosamente essa publicação que, também para ele, fora da maior importância. A partir de certa altura, a sua ideia fora completar a coleção para a oferecer ao filho. Porém, para sua grande desilusão, o filho não manifestara o menor interesse e, agora, ele tinha escasso espaço para a manter. Por isso, ao ver o meu anúncio, decidira-se a vendê-la. Não tive coragem para regatear o preço que me pedia: "quinze contos".

É assim que hoje sou um feliz proprietário da coleção do "Cavaleiro Andante". Encadernei-a, conservo-a com cuidado e abro-a com alguma frequência, com um prazer que só aqueles que foram leitores fiéis da revista têm condições de perceber.

quarta-feira, dezembro 25, 2013

O fuso de Caracas


Há uns dias, na madrugada da internet, "cruzei-me" com um amigo, que vive numa cidade da Europa. Nada de especial, não fora o caso de eu estar "ainda" acordado e ele estar "já" a pé. Trocámos algumas graçolas e fui-me deitar.

Falava depois disto a um outro amigo, deste meu vício, que tem décadas, de entrar pelas madrugadas sempre que estou em férias em Vila Real, aproveitando para ler (jornais, livros ou papeladas), ver filmes ou, simplesmente, escrevinhar qualquer coisa. Descobri então que ele também é dessa mesma "raça". Na conversa, ambos coincidimos na constatação da dificuldade de, nestas circunstâncias, indicar a terceiros uma hora da parte da manhã a partir da qual possamos ser contactados, dentro do nosso assumido estatuto de "late risers", quando em férias. Porém, ele já encontrou uma fórmula para isso: a quem lhe faz a pergunta, diz que está "pelo fuso de Caracas", o que significa que se deita e levanta quatro horas e meia mais tarde do que seria expectável. 

Ele há cada "Maduro"!

terça-feira, dezembro 24, 2013

Os meus livros

Há uns anos, dei por mim a olhar para umas estantes onde tinha grande parte dos meus livros e a interrogar-me sobre o que fazer-lhes. Nunca fui um bibliófilo no sentido clássico. Não tenho raridades bibliográficas, embora possa ser proprietário de alguns livros que, não sendo caros, é difícil encontrar, mesmo nos alfarrabistas. Não tenho uma "biblioteca" no sentido tradicional, organizada por secções. Fui comprando livros ao sabor dos tempos, às vezes ao ritmo de algumas modas intelectuais, outras por via de escolhas políticas, muitas mais porque a atualização profissional ou os gostos do momento me levaram a adquiri-los. Comprei livros que não li de todo, alguns completamente desnecessários, outros que só folheei, outros ainda porque achava que um dia ia ter tempo para os ler e não tive, para além dos que eram tão baratos tão baratos, numa feira do livro ou num saldo, que achei pena não ficar com eles. Com escassas exceções, sei onde e por que razão comprei cada livro. Gosto muito de oferecer livros, mas nunca dei um único livro dos meus. A minha biblioteca é hoje, assim, uma mescla imensa, onde se pode encontrar um pouco de tudo, desde ficção avulsa a muitas biografias e memórias, bastante história contemporânea, uma imensidão de dicionários, enciclopédias e obras de referência, muita coisa sobre a Europa e relações internacionais, montanhas de "current issues" e o que restou de tempos "esquerdalhos" - Marx & companhia. Mas há também publicações periódicas encadernadas, folhetos vários, literatura clandestina, etc. O único setor com alguma coerência e bastante completo são centenas de volumes relativos às lutas contra o Estado Novo e à política portuguesa contemporânea (onde me deve faltar muito pouco do essencial).

Quando saí para o meu primeiro posto diplomático, no final dos anos 70, levei comigo quase todos os meus livros de então, umas largas centenas. (Curiosamente, eram, de forma esmagadora, em língua portuguesa e francesa; o inglês viria mais tarde). A partir daí, fui circulando pelo mundo acompanhado de apenas alguns desses livros, mandando os restantes para Portugal, espalhados entre a casa em Lisboa e a dos meus pais, em Vila Real. E comprando outros, claro. Passei, a partir de então e para sempre, a ter livros espalhados por vários locais. Às vezes, chegou a acontecer-me comprar o mesmo livro duas vezes. Depois dos últimos doze anos passados ininterruptamente no estrangeiro, a situação tornou-se fisicamente insustentável. Assim, no início deste ano, cheguei a Portugal com mais alguns milhares de livros "às costas". Nas estantes que tinha por cá já não cabia mais nenhum! Havia deixado em Paris quase quatro centenas, mas alguns milhares que me acompanhavam (e que cresceram dia a dia, em Paris) tiveram de ir diretamente para Vila Real. Para estantes? Não, em muitas dezenas de caixotes que jazem na maior divisão de uma casa vazia. Se somar os que tenho por Lisboa, juntos com algumas centenas que o meu pai me deixou, estaremos a falar de cerca de dez mil livros.

Que fazer? Decidi começar a doar esse espólio bibliográfico à moderna Biblioteca Municipal de Vila Real. Não foi uma decisão fácil de tomar. Tive a sorte de encontrar na pessoa do diretor da biblioteca, Vitor Nogueira, uma figura pouco comum na cultura de Vila Real, o interlocutor que me sossegou. Com ele combinei o "modus faciendi" desta operação progressiva. A biblioteca apõe em cada livro o carimbo que a imagem mostra, é feita uma recensão de cada volume, que segue depois para a secção respetiva. Por via informática, posso ir seguindo (tal como qualquer outro utente) o curso deste trabalho de integração dos livros na Biblioteca, inseridos num "fundo" próprio. E vou ficando com a certeza de que há quem trata os meus livros com o cuidado que (eu acho que) eles merecem. Tenho vindo a enviar para a Biblioteca tudo aquilo que entendo já não me fazer falta, o que naturalmente significa que as coisas que considero mais interessantes vão manter-se, por ora, em minha posse. Estão já por lá cerca de oito centenas de livros. Outros se seguirão no início de janeiro. Esta é uma "operação" necessariamente lenta, porque acarreta o desligar psicológico de objetos com que fomos habituados a viver. E isso, como se sabe, está longe de ser uma coisa fácil. Só ficaria preocupado, e as pessoas próximas de mim o deveriam ficar também, se um dia eu decidisse, de repente, dar todos os meus livros. Isso significaria que havia desistido de uma parte da vida. Porque os livros foram e são uma das partes mais importantes dessa vida.

Bom, e agora só espero que ninguém me ofereça livros logo à noite... 

segunda-feira, dezembro 23, 2013

MacShane ou McShade?

Fiquei preocupado ao ler, há minutos, que havia sido condenado a pena de prisão Denis MacShane, antigo secretário de Estado britânico dos Negócios estrangeiros (a nossa imprensa cai na esparrela de traduzir "minister" por "ministro" e "secretary of State" por "secretário de Estado", como pareceria lógico, sendo que significam exatamente o contrário), acusado de falsificação de despesas de viagens. A preocupação deveu-se ao facto da notícia (talvez por um subliminar deslize cultural do autor) começar por chamar-lhe "MacShade" (com D). Só depois passa a designá-lo por "MacShane" (com N). O que me sossegou mais. 

Mas que importância tem isso, perguntará o leitor? Essa agora! Tem toda a importância! É que "Dennis McShade" é, acreditem ou não, um nome bem português e as trapalhadas em que ao longo da sua existência esteve envolvido tiveram sempre outra dignidade criminal. Trata-se do nome do autor de livros policiais tão importantes como "Mão direita do diabo" ou "Mulher e arma com guitarra espanhola".

Mas então, perguntarão os céticos e menos iniciados nestas artes, é português e chama-se "Dennis McShade"? Bom, na realidade, assinava às vezes assim (como Roussado Pinto subscrevia como "Ross Pynn"), mas o seu verdadeiro nome era Dinis Machado - um excelente, embora pouco prolífico, escritor em língua portuguesa, que, entre outros textos, deixou essa obra maior que é "O que diz Molero".

Nada de confusões! Ofereçam um verdadeiro Dennis Mcshade neste Natal!

Fortunato da Câmara

Não posso deixar de estar feliz: o livro "Os Mistérios do Abade de Priscos", de Fortunato da Câmara, que tive o gosto de prefaciar e apresentar nos seus lançamentos em Lisboa e no Porto, acaba de ser galardoado com o "Gourmand World Cookbooks Award 2013", na respetiva categoria.

Quem (ainda) quiser dar uma bela prenda de Natal ainda vai a tempo de oferecer este magnífico livro, de leitura muito agradável e muito bem documentado. Quem o ler passará a apreciar muito melhor aquilo que, de futuro, lhe for apresentado à mesa.

domingo, dezembro 22, 2013

O rapto

Creio que foi em 1983. Era um casal muito jovem. Ainda estou a vê-los a entrar, pela primeira vez, no meu gabinete, na embaixada em Luanda, onde tinha a meu cargo as questões relativas aos professores cooperantes.

(Como um dia já aqui expliquei, Portugal assegurou, por muito tempo, o envio de cooperantes para as antigas colónias, em especial professores, pagando-lhes uma parte do salário e preservando-lhes o lugar de base. Coube-me, no início da carreira, pré-selecionar os primeiros professores para S. Tomé e Príncipe e a segunda "leva" para a Guiné-Bissau. Em Angola, voltaria a ter os professores cooperantes sob a minha responsabilidade. À distância, acho curioso constatar que, sendo esse tempo um dos mais complicados nas relações bilaterais entre Lisboa e Luanda, a cooperação no ensino se mantivesse intocada).
 
A Dora e o seu companheiro haviam chegado há pouco de Lisboa. Estavam cansados, algo aturdidos com Luanda, uma cidade difícil, incómoda para deslocações, com imensas limitações em matéria de abastecimentos. A proposta das entidades angolanas era que fossem para Sumbe, antiga Novo Redondo, cidade marítima situada umas centenas de quilómetros a sul de Luanda. Recordo-me que se passaram alguns dias antes que isso acontecesse. Havia uma certa preocupação com essa deslocação. Ao que julgo, seriam os únicos professores cooperantes nessa zona que a guerrilha da Unita de há muito rondava.

Os meses passaram. Um dia, fomos informados que a Dora e o companheiro, bem como cooperantes de outras nacionalidades, haviam sido raptados pela UNITA. Durante semanas, foram conduzidos a pé através de Angola, numa viagem de muitos e muitos quilómetros, da costa até à Jamba, no extremo sudeste do país. Lembro-me da nossa constante preocupação com a possibilidade da coluna poder ser atacada, nesse percurso, pelas forças governamentais angolanas, nomeadamente por via aérea, colocando em risco a vida dos cooperantes. Em especial, tenho presente - e um "antigo vizinho" leitor deste blogue recordará bem isto - um jantar em minha casa, com a presença de um oficial das FAPLA, em que esta questão foi discutida em termos que chegaram a ser muito tensos.

Tudo acabaria em bem. A Dora Fonte e o seu companheiro viriam a ser entregues pela UNITA a instituições internacionais. Depois do seu regresso a Portugal, trocámos mensagens e, como é da lei da vida, acabámos por nunca mais nos ver. Há dias, a Dora contactou-me (vantagens do Facebook). Lançou um livro sobre essa sua fantástica aventura de juventude em Angola. Tenho uma grande curiosidade em lê-lo.

Gisela João

Há já alguns anos, creio que em 2005, ao tempo em que dirigia a TSF, António José Teixeira moderou um debate onde se fez um balanço do ano que terminava. Os convidados eram David Fonseca, Inês Pedrosa, Ana Lourenço e eu próprio. Foi um exercício divertido, dadas as perspetivas diferenciadas que se projetaram na discussão. No final, perguntado quem era, para mim, a figura portuguesa do ano, lembro-me que escolhi Ricardo Araújo Pereira.

Assisti, há pouco, a um exercício idêntico, moderado pelo mesmo jornalista, agora na SIC Notícias. Para o que aqui interessa, quero notar a genuinidade das intervenções de Gisela João, a fadista de Barcelos que é a mais recente lufada de ar fresco na canção nacional. Com uma linguagem simples, transpirando sinceridade, comentou a vida difícil de pessoas que tinha encontrado ao longo do último ano, emocionando-se com os casos de crianças que dão entrada nos hospitais apenas para matar a fome e com famílias que não protestam com a vida de carência que sofrem, porque a acham tragicamente natural. No final, ao ser interrogada sobre quem era, para ela, a figura portuguesa do ano, não hesitou e respondeu: a maioria dos portugueses. Grande Gisela João.

Para quem a não conhecer, aqui fica uma faixa do seu único CD, que vai ser a minha prenda de Natal para algumas pessoas.

sábado, dezembro 21, 2013

Boas Festas!

Para todos quantos por aqui passam, regular ou episodicamente, desde os mais críticos aos mais concordantes, dos meros leitores aos mais participantes, ficam os meus sinceros votos de muito Boas Festas. 2014 está aí à porta e de uma coisa podemos ter a certeza: vai ser um ano diferente. 

sexta-feira, dezembro 20, 2013

IRC

Tenho a firme sensação de que a maioria dos observadores, entretidos com a "abada" dada pelo Tribunal Constitucional ao projeto de confisco retroativo que o executivo se preparava para fazer aos reformados da Função Pública, não se deram conta do que, verdadeiramente, representa o acordo transpartidário garantido no tocante ao IRC.

Basta responder a duas questões para se perceber isto.

Se a proposta original do governo tivesse sido imposta, o que iria acontecer ao novo modelo de tributação do IRC no dia em que o PS chegasse ao poder? Ia ser mudado, como é evidente.

Qual é uma das queixas mais vulgares, por parte dos potenciais investidores, face ao sistema fiscal português? A sua imprevisibilidade.

Graças a este acordo, a estabilidade fiscal, em termos empresariais, está garantida por muitos e bons anos.

Há também uma terceira questão cuja resposta, a mim, me parece óbvia: a quem é que as PME's portuguesas ficam a dever um considerável benefício fiscal?

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...