A convite do Observatório da Língua Portuguesa, falei hoje, na Academia das Ciências, em Lisboa, sobre o estatuto da língua portuguesa nas organizações internacionais.
Na avaliação que fiz não fui muito entusiasta quanto ao modo como o português tem vindo a consagrar-se, na prática, no âmbito das instâncias multilaterais, nomeadamente de natureza regional. O que eu disse surpreendeu algumas pessoas, nomeadamente pela constatação de que, no seio da
União Europeia, e não obstante a letra dos tratados, o recurso cada vez mais frequente a um número limitado de línguas de trabalho configura, no plano objetivo, um recuo do português nesse contexto. Expliquei também que, em outras organizações regionais, a presença do português é hoje pouco mais do que simbólica, dado que, na prática, é uma língua muito pouco utilizada. Para concluir que, na minha opinião pessoal, mesmo que tendo de contrariar o otimismo de certos discursos oficiais, o português não está hoje num curso de progressão positiva nas instâncias multilaterais. E disse mesmo isto: "porque não é uma língua de suporte efetivo de poderes à escala global", o português, "não sendo institucionalmente uma língua menor no quadro multilateral (é língua oficial ou de trabalho em 20 organizações internacionais) é, contudo, uma língua com um estatuto inferiorizado face a outras com valor simbólico idêntico".
No decurso da minha apresentação, contei uma história comigo ocorrida em 1995, no "grupo de reflexão" criado para a revisão do tratado de Maastricht. A regra era os debates terem lugar em francês e inglês. Por essa altura, a Alemanha vivia um período de afirmação da sua importância institucional e impunha a interpretação do alemão nos trabalhos, o que era dificil de recusar, por se tratar da mais falada primeira língua dentro da UE. Contudo, aproveitando a "boleia", a Espanha, que tinha a presidência do "grupo de reflexão", e a Itália, que era a nova presidência semestral da UE, colocaram discretamente as respetivas línguas entre as que poderiam ser utilizadas na reunião seguinte do "grupo", na qual, por coincidência, eu iria substituir o titular português, o professor André Gonçalves Pereira.
Mandei dizer a Bruxelas que, no que me tocava, se os representantes italiano e o espanhol tivessem interpretação, eu não dispensaria interpretação a partir do português. A resposta foi que, de momento, não havia "disponibilidade" para colocar intérpretes de português Era, naturalmente, uma falsidade. Recordo-me que telefonei aos colegas holandês e grego para tentar que se juntassem a mim no protesto, mas dei-me conta de uma estranha complacência com a "golpada" espanhola e italiana. Não desisti: informei então que, a persistir a teimosia desses dois países, quer houvesse ou não interpretação, eu falaria em português. E, para aqueles que não me compreendêssem, eu faria depois uma tradução de toda a minha intervenção (seis ou sete minutos) em francês ou inglês. Avisava, assim, que contassem com um quarto de hora de intervenção portuguesa...
O ambiente que me acolheu em Bruxelas não foi o mais simpático. O presidente espanhol do "grupo de reflexão", Carlos Westendorp, pediu para me ver e explicou que a ausência da interpretação para português era meramente "conjuntural" e que, numa próxima reunião, o assunto "se resolveria". Segundo ele, a nova presidência italiana da UE havia imposto o italiano e eu deveria compreender que a Espanha, "até porque tinha a presidência dos trabalhos", não poderia ficar numa "posição de inferioridade". Por isso, além do inglês, francês e alemão, os trabalhos teriam a possibilidade de interpretação em espanhol e em italiano. Pedia, "encarecidamente", que eu não criasse dificuldades. Recusei. E avisei: se ele ou o italiano falassem nas suas línguas, eu falaria português, traduzindo depois. Westendorp não gostou do que ouviu. E o encontro não acabou de forma muito agradável.
Recordo-me bem que me sentia numa posição de alguma dificuldade, tanto mais que estava ali como substituto do titular da representação portuguesa, a agir sem instruções (embora os meus colegas em Bruxelas o não soubessem). Mas decidi não ceder. Fomos para os trabalhos e, com agrado, notei que Westendorp os abriu em francês. Não pedi logo para falar, esperando a atitude do representante italiano, Silvio Faggiolo. Notei que este estava muito nervoso e que, quando nos cruzámos, praticamente não me falou. A certo passo, inscreveu-se para usar da palavra. Eu fi-lo de imediato, também. Quando chegou a vez da Itália, Faggiolo falou... em inglês, dispensando assim a interpretação de que dispunha. Eu fiz o mesmo, logo de seguida, falando francês ou inglês (já não me recordo bem), não recorrendo à anunciada intervenção em português, seguida de tradução. A "crise" acabara.
Diga-se, para a história - e quem, à época, estava a trabalhar em Bruxelas recordar-se-á disto -, que foi "remédio santo": nunca mais houve interpretação em espanhol ou italiano do "grupo de reflexão", nem na "conferência intergovernamental" que se lhe seguiu, por quase um ano, e que deu origem ao tratado de Amesterdão. O mesmo viria a suceder, anos mais tarde, com o tratado de Nice. Bater o pé, quando se tem razão, compensa. E não perder posição para outros é, pelo menos, uma possibilidade de ir "empatando" o jogo. E, quando se empata, não se perde...