sábado, setembro 06, 2025

Historieta a preto e branco


O título de um texto que ontem aqui publiquei, "A branca", trouxe-me à memória sonora um episódio ocorrido comigo em Luanda, em 1982, quando aí acabara de colocado na nossa embaixada. 

A vida na Luanda dessa época era muito difícil. Com a prioridade orçamental assente na guerra civil, o abastecimento era muito precário e episódico, as lojas comerciais em funcionamento eram escassas, havia falta de quase tudo. Claro que alguns, como era o caso dos diplomatas, conseguiam, por recurso ao exterior, garantir o essencial para o seu dia-a-dia. Mas a população, em geral, cada vez mais engrossada pelos muitos milhares que se refugiavam na capital, para fugir à insegurança nas províncias, vivia uma existência muito complexa.

Dias depois da minha chegada, necessitei de fazer fotografias, a-preto-e-branco, tipo passe, para alguma documentação. Onde é que haveria um fotógrafo na cidade? Alguém na embaixada me indicou uma pequena loja na velha Avenida dos Combatentes - a toponímia tivera o bom senso de manter o nome antigo da artéria, dado o tempo de guerra. 

Meti-me no Volkswagen "carocha" de serviço, a cair da tripeça, com buracos no fundo, por onde entravam baratas, que me havia sido distribuído e fui à procura do fotógrafo. Quando cheguei, constatei que tinha uma fila imensa à porta. O sol era muito mas, estoicamente, coloquei-me na fila e fiquei por ali, creio que uma boa meia hora, à espera da minha vez para ser atendido. Todos os olhares convergiam sobre mim. Era o único branco entre toda a gente que por ali estava. 

Quando finalmente entrei no espaço, olhei as paredes, onde havia bastantes fotografias, e reparei que todas as pessoas nelas retratadas eram negras ou mulatas. Nem um único branco. Aquela não era, visivelmente, uma loja que a população branca de Luanda utilizasse. Eu estava divertido e a achar aquilo curioso. Os outros clientes da loja, pelo modo como olhavam a "raridade" que eu ali era, também. O ambiente era simpático e o atendimento cordial, com o uso do "camarada" a ser a regra do tempo.

"Quantas fotografias quer, camarada?" Devo ter exagerado no pedido, recebendo de volta um grande sorriso e um prolongado "Iiih! Tantas?!" do meu interlocutor. E lá fui retratado, num estúdio improvisado num canto da sala. No dia seguinte, estariam prontas, fui informado.

No outro dia, passei pela loja, para levantar as fotografias. Como tudo estava já pago, atrevi-me a passar à frente da continuada fila, não escapando a alguns comentários de quantos pensariam que aquele branco estava a querer ter alguma prioridade. Mas logo expliquei e tudo foi fácil. 

Vislumbrando-me ao longe, o meu interlocutor da véspera acenou-me, voltou a sorrir e foi direito a uma caixa cheia de envelopes. Eu ainda disse o meu nome, mas ele pareceu dispensar essa indicação e, sem hesitações, retirou o envelope com as minhas fotografias. 

Comentei: "Caramba, tem boa memória!". Com os dentes muito brancos, naquela cara muito negra, radiante de simpatia, ele retorquiu-me: "Eu já tinha aqui posto um B". E apontou-me para um imenso B maiúsculo, a lápis, na face do envelope. "É um B de branco!". 

E riu, e rimos então todos, eu e os clientes à volta, todos negros ou mulatos, enquanto o raro cliente branco que eu ali tinha sido se dirigia para o decrépito Volkswagen do Exército português que usava. E que era de cor preta, claro, para esta historieta a-preto-e-branco ficar mais completa.

Sem comentários:

Fora dos carris

O presidente da Carris colocou o lugar à disposição e o presidente da Câmara não aceitou. Fez mal o edil e fez mal o homem da Carris, que de...