No MNE, em matéria de embalagem dos nossos pertences, quando partimos de Lisboa ou mudamos de posto, há duas épocas distintas: o tempo do senhor Aguieira e o tempo que lhe sucedeu.
O senhor Aguieira pertencia a uma empresa de transportes que, por um daqueles mistérios que já não vale a pena tentar esclarecer, noutros tempos ganhava, com insistente regularidade, quase todos os concursos. Muitos meses antes da viagem, ainda antes dos decretos "saírem", quando a nova colocação era apenas um rumor consistente pelos claustros das Necessidades, os diplomatas eram aproximados, pessoalmente ou por carta, pela empresa a que pertencia o senhor Aguieira, com o objetivo de pôr à disposição os respetivos serviços.
O senhor Aguieira circulava pelos corredores do MNE, sempre de pasta na mão, como se fosse dos quadros da casa. Tinha o ar daquilo a que, em certa época, se qualificava como "um velho ministro de segunda" (sendo que "ministro" significa, no nosso jargão interno, "ministro plenipotenciário", bem entendido!). Sempre a caminho ou a sair do "quarto andar" (a área administrativa), o senhor Aguieira distribuía cumprimentos a muitos que ia encontrando, porque era estimado e apreciado genuinamente na casa. Em situações complicadas, o senhor Aguieira "desenrascava" as coisas, colocando-nos no estrangeiro, sem custo, bagagem de que só tarde nos tínhamos apercebido que necessitávamos. E, em Lisboa, guardava em armazem, por meses, pacotes que não tínhamos onde deixar. Entrar em contacto pessoal com o senhor Aguieira era uma experiência magnífica. Homem de grande cordialidade e muito educado, tinha toda a rede necessária para nos facilitar a vida.
Na minha primeira mudança para o estrangeiro, não tínhamos a noção da importância de contactar diretamente o senhor Aguieira. A minha mulher ligou um dia para a empresa, para tratar de uma qualquer questão relacionada com esse transporte. Por minutos, a chamada andou de um lado para o outro. Até que, esclarecidos que se tratava de um diplomata, a puseram em contacto com o senhor Aguieira. A reação deste foi extraordinária: "Ó minha senhora! Porque não falou logo comigo? Andou aqui pela casa a ser tratada como "louça de Sacavém" quando, afinal, se tratava de "porcelana da Vista Alegre"!". E logo resolveu tudo. De forma inexcedível.
Quando, nessa primeira saída, os meus livros chegaram a Oslo, embrulhados dois a dois, antes de serem colocados nos caixotes de cartão, recordo os olhos dos vikings encarregados da desembalagem, surpreendidos com o esmero do empacotamento do pessoal do senhor Aguieira.
Ontem, naquela que é a minha derradeira mudança, tive imensas saudades do pessoal do senhor Aguieira, ao observar o modo primário como por aqui se embalam os livros, sem cuidar da delicadeza de alguns. Tudo a esmo!
Não sei se o senhor Aguieira, o nosso senhor Aguieira, ainda é vivo. Espero bem que sim*. Se o for, deixo-lhe um forte abraço; se o não for, fica a expressão da minha saudade. E, conhecendo razoavelmente muitos dos meus colegas, tenho a certeza de não estar só nestes meus sentimentos. O MNE tem saudades do senhor Aguieira, podem crer.
*um comentador diz que não, infelizmente
*um comentador diz que não, infelizmente
26 comentários:
Parabéns Senhor Embaixador, é bom ter amigos que nos recordam assim
http://interesseseaccao.blogspot.fr/2013/01/francisco-seixas-da-costa.html
Gostei da metáfora das louças/loiças usada pelo Senhor Aguieira,imagino o alivio da sua Mulher, ainda mais sabendo o empenho que o Senhor tem nos livros e faz muito bem.
Apesar de todos os cuidados com os livros, e mesmo depois de se selecionar os que se abandonam, quantos não se perderão ainda com as mudanças?
Talvez a net tenha transformado este sentimento de perda...
José Barros
Bonita homenagem Senhor Embaixador. Tal como o Senhor, eu odeio que mãos estranhas mexam nos meus livros. São poucos mas são meus, não façam troça mas sinto cada livro como um membro da familia.
Permettez, Monsieur l'Ambassadeur, de vous racconter une histoire: Celle de ma rencontre avec vous , à travers votre "blog". Je tenais à vous le dire, avant votre départ. C'est par pur hasard que je suis "tombé" dans vos écrits, au gré d'un "surf" sur le Web, un jour de mauvais temps, dans ma ville des Alpes Françaises où je réside depuis 50 ans. Je fais partie de ceux des années 60 , parti de mon Minho natal, comme beaucoup d'autres, à la recherche d'air pur !
Je me suis arrêté sur votre "blog", un jour, à cause de la qualité de votre Portugais , que j'essaye moi même de conserver le mieux possible, malgré le fait que c'est en Français, Anglais et Allemand que j'ai exercé ma profession commerciale, qui m'a mené à la présidence de la société qui m'a employé.
Oui, j'apprécie vos histoires, l'humanisme qui s'en dégage, la simplicité et la modestie de votre personne. Même sur des thèmes simples, mais toujours empreints de cette qualité de la langue écrite que je vous envie. J'essaye d'apprendre, en somme, avec vous.
C'est pour cela que je regrette votre départ. A moins que vous ayez l'intention de continuer à écrire sur votre "blog"," duas ou três coisas", de temps en temps. Je vais continuer à "surfer" autour , pour voir si vous restez encore avec nous.
Je voudrais vous souhaiter beaucoup de bonheur pour la suite. Avec tous les vôtres.
J. de Freitas
"Il y a quelque chose de plus haut que l'orgueil, et de plus noble que la vanité, c'est la modestie ; et quelque chose de plus rare que la modestie, c'est la simplicité."
- Antoine de Rivarol
Não foi há muito, um dos textos aqui publicados era negado pelo autor o conhecimento ou o sentimento de saudade (não vale a pena ir ao rigor das palavras, mas foi isso que me transmitiu).
Eu que sou do tipo pinga-amor, fiquei ainda mais chocado com o comentário da Dra Helena SC, dizendo que também não tinha saudades, nem sequer do Miguel, seu filho, o que nem as mais inteligentes explicações me farão entender. Eu tenho saudades do Miguel. Nunca o conheci pessoalmente, nem sequer partilhei ideologias ou ideais, mas sinto a sua falta. Não só da política, com um discurso de esquerda sereno, sem ódios nem violência... Era único
Interessante é texto do post de hoje, que expressa duas vezes a saudade. Do Sr Aguieira, que seja.
Pois é, meu caro, saudade no peito dos outros... é refresco.
Um abraço
Ah, mudanças...
Nas primeiras que fiz (forçadas, diga-se), resolvi oferecer, a um rapazito que nos ajudava, um pacote.
"Vê lá se queres isto..."
O rapaz abriu o embrulho, arregalou os olhos, fez um movimento afirmativo com a cabeça - quase tão rápido quando o som gutural que emitiu -, e partiu com o pacote debaixo do braço e um sorriso apalermado.
Era a minha pequena - mas valiosa - coleção da Playboy, onde pontificava o "Especial 15 anos" da edição brasileira.
Os livros não são tudo, senhores. :)
Também temos saudades do Sr. Aguieira. Éramos jovens e começávamos a carreira. Saudades todos sentimos... de sermos jovens!
ainda há profissionais atentos, cavalheiros, alem de oferecerem serviços de alta qualidade.
"Há algo maior do que o orgulho, e mais nobre do que a vaidade, é a modéstia, e algo mais raro do que a modéstia é a simplicidade."
Citação do Sr. Antoine de Rivarol
Bela homenagem ao Sr. Embaixador, sobretudo merecida.
Do Brasil.
O Sr. Aguieira já partiu, mas deixou saudades. Uma excelente pessoa. A quem, igualmente, fiquei a dever a minha primeira mudança, no caso, para Posto.
Enfim, o tempo passa e com ele nós!
Rilvas
O Sr. J. de Freitas ressaltou bem a forma de escrita do Sr. Embaixador um dos melhores exemplos podemos ler no texto:
"Este Natal"
Postado em domingo, 23 de dezembro de 2012.
O Sr. Embaixador versa de todos os assuntos com clareza e estilo às vezes até poéticos,
Com imagens sugestivas e por vezes enigmáticas.
Blog gostoso de seguir.
Caro Guilherme Sanches
Não se tem saudades de quem está sempre connosco. Nem um só dia, dos meses que já passaram, o Miguel deixou de estar comigo.
Mas isso só compreende quem possa ter passado pelo mesmo. Por isso é que lhe respondo!
Observar e dar valor às pequenas coisas, se é que embalar em mudanças, são pequenas coisas... não é para todos. É necessário ter sensibilidade e "descer" até lá. Acredito que o Senhor Aguieira nem sempre tenha encontrado quem lhe apreciasse a sua qualidade de trabalho. Os meus cumprimentos, Senhor Embaixador.
Senhor Embaixador,
Espero que leve consigo tantas e tão boas memórias como as que cá deixa.
Vou ter muitas saudades suas.
O sr. Aguieira faz parte dos tempos idos da Secretaria de Estado mas caberá sempre nas boas recordações dos nossos primeiros passos nas Necessidades. Assim como outras figuras como a do "embaixador Matos" que atenciosamente nos acolhia, jovens adidos, embora sem a vénia que reservava aos verdadeiros embaixadores. Hoje é tudo mais asséptico, sem o calor das relações humanas. Ainda bem que há quem recorde e deixe testemunho. Boa sorte para as futuras navegações Norte-Sul.
Abraço sempre amigo do JMG
Esperando que tenha conseguido arranjar solução para arrumar a avalanche guttenberguiana que vai chegar dentro de alguns dias a sua casa desejo-lhe um bom regresso a Portugal.
E, subscrevo, em tudo, o comentário da Helena Oneto !
Caro Alcipe nao diga isso ! Saudades é palavra que nao existe aqui nesta casa...
PS Antes de fechar a porta da rue de Noisiel : achei muito bonito durante o seu discurso, na passada sexta feira, as delicadas palavras que teve para com a sua esposa.
Pois é... As mudanças dos diplomatas.
Um dia contaram-me que um diplomata em primeiro posto, que era longínquo, tinha mandado quase que toda a sua mobília de barco para mobilar a sua nova casa. O barco afundou-se no caminho e com ele tudo o que tinha dentro. O seguro pagou mas os objectos pessoais nada os pagou. São os riscos da Carreira.
A empresa do sr. Aguieira tinha conseguido, na prática, o monopólio das mudanças no MNE, sobretudo porque este não conseguia pagar o estapafúrdio montante das dívidas acumuladas, pelo que estava condenado a continuar a confiar-lhe aqueles transportes.
Assinale-se que isso redundava em vantagem para os funcionários, dada a excelência dos serviços da empresa.
E isso devia-se, sem dúvida, em grande medida ao sr. Agueira que, além de ser um "gentleman", era um homem de brio.
Mas no tríplice trabalho da empresa - embalagem, transporte, entrega - destacava-se a embalagem, a que eram prestados um cuidado e uma eficiência notáveis. Uma vez, um profissional francês que desempacotava uma série de objectos embalados em Lisboa, comentou que a empresa não podia ter lucro, gastando aquela quantidade de papel para cada objecto.
O único perigo era, precisamente, a eficiência: era preciso estar atento e acompanhar meticulosamente a equipa de embaladores para evitar que empacotasse TUDO, como tocos de vela, caixas de fósforos cheias de fósforos já queimados ou louça suja.
Grande sr. Agueira!
O Senhor Aguieira atè anunciiava aos diplomatas para que posto iam! Dois então jovens adidos souberam por ele há uns vinte anos que iam para Tóquio...Imaginem o choque!
Ó Seixas! Só tu te lembravas do Aguieira. Grande figura!
A fazer os caixotes, Embaixador? Nunca mais voltou lá ao Carlton... Olhe, quando estiver em Lisboa, chame-nos quando quiser! O nosso staff faz Norte e Sul e, com um ligeiro bónus, também Leste e Oeste!
Dôdô Salmoura
Na empresa tentam por-nos todos a trabalhar desse modo!
portanto o Senhor Aguieira estava à frente do seu tempo
Seria indiscrição, Sr. Embaixador, perguntar-lhe qual dos postos que ocupou vai deixar-lhes mais saudades?
O Sr. Aguieira, a D. Maria Garcia..já lá vão e deixaram muitas saudades, por que o Ministério não nos defende.. Terá sorte se a empresa de mudanças não arranjar um pretexto para lhe "extorquir" algum dinheiro.Nas duas últimas mudanças foi o que me aconteceu. Eles guardam as nossas coisas e depois fazem chantagem - "afinal tinha mais bagagem do que previsto...se não nos pagar esse excedente as coisas ñão partirão do Posto" (foram só....sete mil dolares) ou "o contentor esteve no porto de Lisboa mais dias do que o previsto. A empresa que fez os orçamentos e embalou as coisas não paga..." (mais seiscentos euros...). Imagino que as suas coisas irão por terra, mas mesmo asim tenha cuidado.
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