sexta-feira, janeiro 25, 2013

... e Le Pen

Aquele meu conhecido, um homem encantador que vive numa "péniche" atracada a um cais do Sena, estava claramente hesitante quando me abordou. Queria ter-nos como convidados para um jantar no seu barco, onde vive rodeado de antiguidades, mas não sabia se eu aceitaria que na ocasião também estivesse o seu "ami Jean-Marie". À primeira não percebi, à segunda lá entendi que se tratava de Jean-Marie Le Pen, o líder da extrema-direita, à época ainda presidente do Front National, personalidade que, pelos seus propósitos negacionistas e outras tomadas de posição inaceitáveis, faz claramente parte das figuras "non fréquentables" para uma grande maioria dos franceses.

Le Pen é, a grande distância, dentre as personalidades do espetro político francês, a mais polémica. Confesso que tinha alguma curiosidade em conhecer, ao vivo, essa figura, com a qual, como já aqui recordei, eu próprio tivera uma "accrochage" no Parlamento Europeu, em 2000. E, ultrapassando algumas hesitações íntimas, aceitei o convite para jantar.

Há figuras que são exatamente aquilo que é a sua caricatura. Le Pen é uma delas. As suas reações em privado, a sua forma de estar e de interagir, reproduziam precisamente a imagem que eu tinha dele, recolhida das muitas aparições que lhe vira na televisão. Foi cordial para com o embaixador de um país que conhece bem e sobre cujos nacionais, sem ser entusiático, disse as coisas óbvias do "politicamente correto" francês. Contou-me das suas viagens ao Porto, como velejador, onde conheceu o "Duque" da Ribeira, de quem se teria tornado amigo. Elogiou as qualidades gastronómicas de um restaurante português da periferia de Paris, que ainda hoje é uma espécie de cantina informal do "Front National", por se situar ao lado da respetiva sede. Não me disse, mas isso eu sabia, que há uma presença de portugueses e luso-descendentes nos apoiantes do partido.

À mesa, fiquei à sua direita (tem alguma graça, ficar "à direita" de Le Pen). Dominou a conversa, com um discurso bastante crítico do então presidente Sarkozy, muito centrado na necessidade de reforço das políticas securitárias e no combate ao que considerou ser a "permissividade" na gestão dos fluxos migratórios. Os circunstantes, gente claramente conservadora, mostravam-se simpáticos perante o que ouviam. Um, dentre eles, chegou mesmo a afirmar que, pela primeira vez, encarava votar "Front National" nas próximas eleições. O ambiente não era desfavorável a Le Pen.  

Durante muito tempo, mantive-me bastante discreto na conversa, interessado que estava em olhar a  personagem. "Entre la poire et le fromage", decidi intervir. Disse que o fazia como observador estrangeiro, não comprometido com a vida política francesa. Mas que não resistia a expressar uma curiosidade. Como ele bem constatara, algumas das suas propostas políticas até eram relativamente aceites, porque, aparentemente, iam ao encontro das angústias, em matéria de segurança, uma certa França alimentava. Por essa razão - perguntei eu a Le Pen - por que razão persistia em manter, no seu discurso político, uma outra dimensão, assente em pressupostos como a desvalorização da barbárie nazi nos campos de concentração, temática com óbvias conotações antijudaicas que acabava por radicalizar a postura do "Front Nationale" e dele afastar potenciais simpatizantes?

Le Pen olhou-me, talvez surpreendido pela frontalidade da questão. Mas reagiu bem. Sem hesitações, perguntou-me: "Está a referir-se ao 'detalhe'?". Estava. Ficou famosa a frase em que Le Pen, a propósito da quantificação do número de assassinatos nazis nos campos de concentração, disse que isso não passava de um "detalhe" no contexto das mortes do segundo conflito mundial. E voltou a repetir isto. E acrescentou, por exemplo, que era muito estranho que nunca se falasse no facto das linhas de caminhos de ferro que levavam a esses campos alemães nunca tivessem sido bombardeadas pela aviação aliada (confesso que nunca ouvira isto!).

Tudo isto deu, por completo, em poucos minutos, a volta ao ambiente. As mostras de simpatia pelas políticas securitárias ou de controlo da imigração preconizadas por Le Pen dissolveram-se no ar, que se tornou pesado. O jantar terminou um tanto de forma apressada. À saída, o convidado que havia dado mostras de poder vir a votar "Front National" aproximou-se de nós e, em voz baixa, pediu desculpa por termos sido testemunhas de "algumas tomadas de posição que envergonham a França".

Como já era previsto, Jean-Marie Le Pen veio a ser substituído na liderança do "Front National", meses depois, pela sua filha, Marine Le Pen. O discurso desta abandonou, em absoluto, as questões que faziam parte do temário "maldito" do seu pai. Marine Le Pen e o "Front National" recolheram, nas eleições de 2011, uma muito razoável quota de votos e, de certo modo, começaram o processo de "naturalização" do partido na vida política francesa. Jean-Marie Le Pen, que nunca mais vi, não deve ter mudado de ideias. Em França, uma questão que ainda se coloca é saber se o "Front National" verdadeiramente rejeita a agenda do pai Le Pen ou se a sua nova postura é meramente tática. 

16 comentários:

Helena Oneto disse...

"... E Le Pen" depois de "Comunistas"!
puro azar, Senhor Embaixador?

Anónimo disse...

O vosso conhecido devia mesmo ser "encantador" para levar o Embaixador de Portugal a um Jantar/"Convivio" assim tão anacrónico... Colocar-se numa posição à direita de Le Pen !
Francamente, é mesmo ter tempo para perder tempo. Porque tempo ara fazer mudar o Le Pen de ideias bem sei que sabia que não iria ter. O Le Pen foi sempre muito coerente nas suas ideias (dele) e nunca as econdeu. O que poderia um Embaixador de Portugal esperar aprender ?
José Barros

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro José Barros: eu não fui lá para que o senhor Le Pen me ensinasse nada. Fui pela curiosidade de conhecer pessoalmente uma das figuras mais marcantes - embora reconhecidamente pela negativa - da História contemporânea de França. E achei graça ao exercício, confesso.

patricio branco disse...

está certo o embaixador de portugal jantar, estar com o pen, observá lo, conhecê lo, como está bem ir cumprimentar o jerónimo de sousa ou outros.

acho que não temos por cá nenhuma figura equivalente no espectro politico e parlamentar, pelo menos com o peso dele e do front.
há um pormenor que me interessou na entrada mas que praticamente não é abordado: o sitio, o cenário. temos o quem, o quando mas sobre esse interessante cenário, uma peniche num cais do sena cheia de antiguidades onde foi o jantar,nada mais foi dito, nem que foi servido.
bom episódio para umas memórias com mais desenvolvimento e detalhes claro.

o bistro português frequentado por frontistas já apareceu nos tjs daqui.



Defreitas disse...

Não sei se o Senhor Embaixador tinha a possibilidade de recusar o convite. Mas cada vez que a sociedade democrática oferece a Le Pen uma oportunidade de se tornar mais apresentável, é a democracia que recua. Ao mesmo tempo , a filha do "tortionnaire" de Argel, convidada de honra ao "Baile dos Vampiros", bailava em Viena de Áustria com os dignitários nazis do FPO e jantava com Martin Graf.
Na discussão do "detalhe", o Pai, como a filha em Viena, demonstravam a verdadeira personalidade deles.

Fiquei impressionado com o que o Senhor Embaixador escreve sobre o facto que alguns Portugueses e luso descendentes votam no Front. Se é verdade, esta gente esquece que se Le Pen estava no comando da França nas décadas de 60 e 70, eles não estariam hoje em França.

O que prova bem que o que falta mais aos Portugueses, com mais urgência, não é tanto a cultura mas a educação. O défice é terrível. O que não quer dizer que não aplaudo o sucesso das gentes da minha terra, Guimarães, que souberam "tirer leur épingle du jeu"!

Anónimo disse...

Pois é... Le Pen é uma criação de Mitterand para se poder dizer que a França é uma democaracia pluralista. A filha dele ficou-lhe com o negócio. Enfim, eu sei pouco

Anónimo disse...

caro patricio branco

com o peso dele talvez o alberto joao ...

bh

Anónimo disse...

caro patricio branco

com o peso dele talvez o alberto joao ...

bh

Anónimo disse...

Dinastia que se propaga a duas geraçoes até Marion Marechal Le Pen...

Anónimo disse...

Fico intrigado, também, como a comentadora Helena Oneto.
Depois de um post intitulado "Comunistas" vem um outro com o título "...e Le Pen" !
Oração aditiva?

Defreitas disse...

Para o anônimo de 17:11:

Antes de Le Pen, era Tixier-Vignancourt, Laval, Pétain, etc. Tem a certeza que Le Pen é uma criação de Mitterrand?

patricio branco disse...

alberto joão teve uma ou ou outra vez uma escapadela xenofoba, mas visando chineses e indianos, disse algo como que não eram benvindos para se instalarem na madeira. não recordo bem as palavras exactas mas era essa a ideia.
bem, o tiro saiu pela culatra, pois uma das mais antigass e tradicionais lojas do funchal, os armazens do povo, especie de grandella em ponto pequeno daqui, fecharam no ano passado por falta de clientes, ou faliu devido à crise. o negócio foi comprado por chineses que o reabriram, mas o governo regional teve o bom senso de não permitir a retirada do nome que lá continua, nem o aspecto exterior, e de negociar com os novos donos a continuação dos postos de trabalho dos empregados portugueses. história irónic, mas a loja histórica continua com nova vida devido aos comerciantes chineses, que há uns anos não eram benvindos!! e hoje é uma loja com movimento e util.

Anónimo disse...

Eu sei que a curiosidade é um excellente "motor". Mas ao ler o texto até me ia engasgando.
(...)
Será por uma exagerada deficiencia de confiança no ser humano e por não perceber como foi possivel ideologias segregacionistas e eugenistas em tempos tão recentes galvanizarem ao ponto de captarem a atenção de multidões e levá-los atrás de si que sou muito irreverente.
Será por não perceber como é possivel muitos portugueses emigrados juntarem-se às fileiras de Le Pen e afirmarem aquela veia "racista" com a mesma convição do "chefe".
Será até aquele meu receio do retrocesso das forças do progresso perante este abalar das esperanças e o mergulhar nas profundezas do sofrimento que leva tantos náufragos a se agarrarem a qualquer tábua mesmo ruida de podridão que me questiona...
Serei intransigente ou até exclusivista. Mas custa-me tanto admitir que compatriotas a quem as politicas de Salazar obrigaram a fugir da fome que hoje possam estar de acordo com aquelas ideias e integrarem mesmo as do Le Pen.
Não mais tarde que este fim de semana coube-me a sorte de ficar à esquerda de uma muito simpática senhora, num Jantar associativo, e cujo tema de conversa ela enveredou por elogios a Salazar. "Foi um dos maiores governantes que tivemos nestes últimos cem anos: honesto, puro, olhe que rezo muitas vezes por ele"... E continuou com aquela frase usada e gasta: "Sempre disse que da fome não nos poderia livrar mas da guerra sim. E livrou-nos da guerra..."
Para mim aquela conversa não era dos melhores "apéritifs" a que estou habituado mas aguentei enquanto a senhora não procurou a minha opinião, que ela esperava em harmonia.
Senti-me na obrigação de lhe responder calmo, franco e frontalmente:
Nem da fome nem da guerra minha senhora. Mas reze, reze por ele se quizer. E, no silencio das suas preces, pense nas razões profundas que nos obrigaram, a si e a mim, a emigrar...
P.S.
Não por comparação, mas a propósito. Em tempos idos, o nosso compatriota Luis Rego, provocador, introduziu-se numa festa que o movimento de Le Pen organizava, improvisando-se vendedor de Merguezes para a eventualidade de naquela festa haver muitos magrebinos... Claro que os membros do seviço de ordem foram obrigados a fazer uso da violencia, coisa a que não estavam habituados, para o expulsar "Manu-militari"...
P.S.2
A caricatura do innocent não é assim tanto "innocent" quanto isso. É uma caricatura "ao contrário" porque embeleza exageradamente o original!
José Barros

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro José Barros: Desculpe o "corte", mas é para não dar ideias a alguém...

Anónimo disse...

caro patricio branco

"acho que não temos por cá nenhuma figura equivalente no espectro politico e parlamentar, pelo menos com o peso dele,(...)"

por isto, e só por isto, mencionei ajjardim...


bh

Helena Araújo disse...

Sobre o bombardeamento das linhas de comboio, de modo a impedir os transportes: já ouvi falar disso, e até bastante.
No museu do Holocausto, em Washington DC, estão expostas duas cartas, com um comentário. Numa carta, os judeus pedem ao exército americano que ao menos bombardeie Auschwitz, para não haver mais transportes para lá. Na outra carta, um general americano diz que infelizmente não têm meios aéreos para chegar tão longe. No comentário, informa-se que, poucos dias depois desta carta ter sido escrita, foi bombardeada uma fábrica perto de Auschwitz.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...