Há dias, o jornal "Le Figaro" trazia a notícia de que o representante consular da França no Dubai enviara a Paris, precisamente na véspera do anúncio do estado de colapso da economia daquele emirado, uma comunicação altamente optimista sobre a "saúde" das finanças do território, em chocante contraste com a realidade que viria a emergir 24 horas depois. O diplomata terá sido "chamado à pedra".
Para um profissional do mesmo ramo, não é uma boa notícia ver uma informação diplomática, certa ou errada, expedida sob confidencialidade, aparecer na praça pública. Porquê? Porque uma generalização dessa transparência acabaria por nos inibir a todos de dizermos às nossas autoridades o que pensamos, com grande e exposta franqueza, por vezes apoiados em dados confidenciais, citando fontes que querem permanecer discretas e fazendo comentários apreciativos sobre personalidades que devem manter-se restritos a um escasso número de leitores especializados. Sei que pode parecer "corporativo" estar a dizer isto, mas a avaliação sobre se erramos ou acertamos deve competir apenas aos nossos ministérios. Caso contrário, a diplomacia desaparece...
Este episódio fez-me recordar um outro, ocorrido nos anos 90, com uma representação portuguesa num determinado país. Por razões que se prendiam com as funções que eu então ocupava, lia com alguma particular atenção a evolução da respectiva situação política, interessando-me pela relação interna das suas forças político-partidárias, porque da sua resultante futura em termos de governo dependeriam certas decisões que eram relevantes para nós.
Um dia chegou daquela Embaixada um bem argumentado "telegrama" (expressão que usamos para qualificar as nossas comunicações) de avaliação da situação política interna, que apontava para uma insofismável vitória da esquerda nas eleições que aí iriam ter lugar dentro de alguns tempos.
Passou mais de um mês e caiu à minha frente um novo telegrama onde, sem se fazer a mínima referência ao anterior, o subscritor afirmava precisamente o contrário do que antes havia dito. Alguns dos argumentos anteriormente utilizados para apontar a plausibilidade de uma vitória da esquerda apareciam agora "reciclados" em suporte da sua nova tese: a direita ia ganhar, por todo um conjunto de "sólidas" razões. A contradição com o telegrama anterior era óbvia e flagrante, mas o nosso homem nem sequer se preocupou em justificar a sua mudança de opinião, que, aliás, contrariava o que o "The Economist" e o "Le Monde" previam.
Fiquei à espera dessa coisa temível para a diplomacia que são os factos. Uma semana e pouco depois, a esquerda ganhou as eleições nesse país, por grande margem. Pedi para me trazerem o telegrama de comentário da nossa Embaixada. Lá estava o que eu já presumia: o nosso homem não resistiu e escreveu: "como tive ocasião de reportar a Vexa através do meu X (número do primeiro telegrama), a esquerda saiu vencedora...". Se acaso tivesse sido a direita a ganhar, o telegrama mencionado teria sido o Y (o segundo telegrama) e o nosso diplomata, que se havia "sangrado em saúde" com a emissão de duas comunicações de sentido contrário, continuaria confortável. Só que, por vezes, por um azar dos Távoras que ocorre a este género de vivaços, há quem leia tudo... O homem já se reformou, sosseguem os curiosos!