terça-feira, novembro 24, 2009

Montecarlo

Ao ler hoje um texto sobre os tempos sombrios do Estado Novo, no interessante e muito recomendável blogue que é o Caminhos da Memória, recordei-me de um episódio passado nessa "catedral" da conversa que foi o Montecarlo, um café-restaurante perto do Saldanha, em Lisboa, hoje transformado, pela globalização ibérica, numa loja espanhola.

No Montecarlo, como escrevi um dia, "coabitavam mundos muito diversos, da tertúlia neo-realista à marginalidade sexual, do vário jornalismo a um certo "bas-fond", confinado este à área do dominó, protegida pelos bilhares. O Montecarlo era um curioso espaço plural, uma espécie de permanentes "estados gerais" de uma esquerda em definição de projectos que, quando abonada, assomava ao bife nas "toalhas" e, na rotina da crise, se resumia à imperial do fim da tarde ou à bica da noite"*.

A história passa-se no início dos anos 70. Nos cafés portugueses de então, havia uma velha prática, que os telemóveis entretanto tornaram sem sentido, de permitir aos clientes atenderem chamadas feitas para os telefones dos estabelecimentos. Assim, era muito vulgar ouvir: "Chamam ao telefone o sr. ....". No Montecarlo, com uma sala de considerável dimensão, distribuída por ambientes diversos muito ruidosos, havia mesmo um altifalante para tornar as mensagens mais audíveis.

Uma noite, com o café cheio, alguém se lembrou de utilizar a cabine telefónica que existia à entrada para os bilhares, ligou para o número do próprio café e solicitou: "Podia fazer o favor de chamar ao telefone o sr. general Humberto Delgado?". No balcão, estava um miúdo para quem esse era um nome como qualquer outro, pelo que logo anunciou: "Chamam ao telefone o sr. general Humberto Delgado". Grande parte da sala entrou em divertido alvoroço e comentários. Viu-se um empregado mais maduro ir repreender o rapazote, ensinando-lhe quem era o "general sem medo", talvez lembrando que os cavalos da repressão quase que haviam entrado pelo café dentro, em 1958, aquando da manifestação em favor do candidato presidencial oposicionista, em frente ao vizinho Liceu Camões.

Dias mais tarde, a cena repetiu-se com o nome de Álvaro Cunhal. A gestão do café percebeu o risco e uma figura mais madura passou a atender ao telefone, para que ninguém se aproveitasse da fragilidade em matéria de cultura política do rapazote do balcão. Mas essa "vigilância" não podia continuar sempre e, se bem me lembro (e tenho boas razões para isso...), ainda foram chamados ao telefone, nas semanas seguintes, Henrique Galvão, Palma Inácio e Norton de Matos, sempre com galhofa pública garantida. Aparentemente, nunca ninguém se lembrou de olhar para a cabine telefónica do café...

*Do texto "Vésperas de Abril", publicado na revista "Camões", nº 5, 1999

12 comentários:

Anónimo disse...

"...e se tivessem olhado...o que, ou quem teriam visto?" Saudosas recordações de tempos idos! E já agora, com a devida modéstia e de cariz mais popularucho, a inexistência dos telefones móveis também proporcionava a galhofa geral quando o petiz anunciava "Sr Manecas, a sua mulher está ao telefone. Diz para ir jantar! As batatas e o bacalhau já estão a arrefecer!"
Isto não seria obviamente no Montecarlo...mas em qualquer tasquinha beirã ou transmontana, em que antes do jantar e depois do trabalho os homens se reuniam e...petiscavam! Com o devido respeito pelos eloquentes discursos de Vossa Excelência, julgo que este "entrelúdio" não lhe será de todo estranho,como Transmontano que é!
Saudações cordiais e de apreço pelo que aqui nos ensina e maravilha, todos os dias.
Leitor assíduo de Pedras Salgadas

Anónimo disse...

Confesso que várias vezes recorro ao motor de busca/pesquisa de conceitos, para apreender os significados de alguma expressão "para mim ,e ressalvo para mim mais ambigua dos Seus posts,concretamente "bas-fond" mais um acrescento á minha cultura que lhe fico a dever da sua escrita rigorosa com paràgrafos de prosa poética.

Mas...a expressão "quando abonada, assomava ao bife nas toalhas" eventualmente oriunda do seu caminhar nas memórias, não consegui codificar,é uma espécie de expressão idiomática, regionalista?
Peço desculpa se é ignorância inadmissivel...

Gostei do post, obviamente...
Isabel Seixas

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Isabel Seixas: De facto, há algum código geracional e de grupo naquilo que escrevi. O Montecarlo dividia-se em várias áreas (restaurante, café, bilhares, etc). O restaurante era vulgarmente chamado "as toalhas", por óbvias razões. Aí se servia um dos mais famosos bifes de Lisboa, acompanhado de um pão de fabrico caseiro de grande popularidade. Por isso se diz que "quando abonada" alguma clientela conseguia chegar ao bife e, em tempos menos prósperos, a ida ao café ficava-se por uma cerveja ou... café.

Anónimo disse...

Contaram-me isto. Não testemunhei. Mas acredito em quem conta.
Estava-se nas vésperas de Abril de 74, numa vilória do norte do distrito de Viseu.
Havia um fulano, que todos sabiam ser da PIDE, mas eu acredito que não fosse mais que um bufo, um dos muitos que havia.
Tinha por hábito este tipo, chegar ao café pelas manhãs de domingo e colocar o carro em frente, com o vidro semi-aberto, a tocar uma cassete de musiqueta popular, alto para que todos ouvissem. Como muito, era um bronco.
Um corajoso do sítio, trocou-lhe as voltas.
Mudou o autocolante da cassete(nunca soube como) e deixou-a no lugar do costume, arranjou uma estrangeirinha na porta do carro para que esta trancasse por dentro.
O bufo costumava sair, meter a cassete e fechar a porta com chave na ignição. Naqueles tempos até o dinheiro podia ficar no porta-luvas de porta aberta.
E foi assim que o homem saiu e fechou a porta.
De repente começa a tocar uma música revolucionária que nunca soube qual mas um Zeca ou um Adriano, talvez.
O bugo, esbaforido, corre para o carro, dezenas a ver, alguns perceberam o embaraço, para outros, creio que a maioria, era apenas música estranha.
O vidro não estava suficientemente aberto para meter a mão, a porta estava resistentemente trancada, o homem gostava tanto do seu carro...
Minutos passaram. Até que o tipo saca da pistola e pelo vidro entreaberto atira sobre o rádio...

Helena Sacadura Cabral disse...

Não sei se eram belos tempos para todos. Para mim foram. Não sou saudosista mas o post de hoje fez-me sorrir de saudade...daquele delicioso bife cheio de molho e das batatas aos palitos a boiar nele!
Já foi e não volta. Entretanto para matar saudades do bife vou ao Café de S. Bento.Pena ser tão perto da A.Repúlica!

Santiago Macias disse...

Se o senhor embaixador tem boas razões para se recordar, só me pergunto quem seria(m) o(s) autor(es) da inspirada partida.
Fico com a sensação que estas coisas são muito próprias da alma do sul. Nos anos 70, Umberto Eco, para matar o tédio na Feira do Livro de Frankfurt, enviava telegramas para um tal Marcel Proust, o que quase fazia enlouquecer os paquetes. Que davam voltas e mais voltas aos pavilhões à procura do destinatário.

oscar carvalho disse...

No Café Londres fazia-se a mesma brincadeira, mas mais correcta politicamente: chamavam-se os grandes navegadores portugueses. E então era ouvir pelo autofalante do café, o Sr Afonso - homem que tomava conta da sala de bilhares - chamar pelo Bartolomeu Dias ou Diogo Cão.

Anónimo disse...

Essa história do Anónimo sobre o bufo está excelente!
P.Rufino

Helena Oneto disse...

Adorei este texto porque me faz recordar o melhor dos meus 20 anos.
Apesar de não "parar" no Montecarlo (o bife -mas não só- fica-me atravessado...)vivi noutras "catedrais" da conspiração momentos inesquecíveis. Belos tempos que tiveram amanhãs que cantaram !
...
Como diz Rufino, a historia do bufo é realmente excelente. O tiro na radio é uma das melhores metáforas do fascismo.

Anónimo disse...

Ah! o nome atribuido ao restaurante era fundamental,obrigado por clarificar.

Por cá vivenciei na década de setenta uma morna e inconsciente percepção da véspera de Abril, pelos silêncios da ignorância...

Lembro-me bem que proliferavam "as casas de pasto"
onde se comia basicamente bife com batatas fritas e frango dourado na panela com colorau com o mesmo acompanhamento, ainda sopa, pão e um quartilho de vinho tudo a dezassete e quinhentos.Os clientes habituais e diários eram os "magalas",de quem as Mães ciosas afastavam as filhas atribuindo-lhes a conotação de namorados indesejáveis e suspeitos de abandonarem as referidas Meninas enganando-as...Colocando-lhes Má fama.
As meninas ávidas por expressar a sexualidade obviamente com pudor saíam acompanhadas,algumas com os cabelos passados a ferro e cortes peregrinos de execução estilistica duvidosa das mães, irmãs ou amigas com o aspecto final de pagem e franja á pedrada...
Enfim tempos...
Isabel Seixas

Anónimo disse...

O tiro na rádio, já era uma premonição de outros tiros da RR e do RCP na noite/madrugada do 24/25...
Uma síntese genial.

Acelino Pontes disse...

Saudades grandes desse tempo maravilhoso na minha vida. O texto retrata bem o ambiente.
O que mais me admirava era aquele 'mar' de papelotes de açucar no chão. Se respirava cultura e vida, a todo o tempo, até na boca da madrugada.
Pena que não se ilustrou o texto com mais fotos.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o sempre a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma extraor...