"Tu não te atrevas a escrever sobre esse assunto!" Não foi uma nem duas vezes que ouvi esta advertência, a membros da minha família, quando ameaçava referir-me à morte do meu avô paterno. Desta vez, vou mesmo arriscar tocar nesse tabu familiar. E por que razão o faço? Porque, no dia de hoje ou de amanhã, passam exatamente cem anos sobre a data em que faleceu António Emílio da Costa, esse meu avô. E um século é qualquer coisa que merece ser assinalado.
O meu avô paterno morreu com 52 anos, em Viana do Castelo, no termo do mês de abril de 1925. Tinha casado com a minha avó, Filomena, em 19 de dezembro de 1891, em Ponte de Lima, no lugar de Arcozelo, do outro lado da bela vila, a que os limianos, ensinou-me o meu pai, ele próprio orgulhoso limiano, chamavam "além da ponte".
Em 1912, a família mudou-se para Viana do Castelo, imagino que para melhorar a situação profissional do meu avô. A viagem, de Ponte de Lima até Viana, foi feita de barco. Com ele e com a mulher iam os seis filhos do casal, duas raparigas e quatro rapazes, um dos quais o meu pai, o benjamim da família, então com apenas dois anos. Para trás, em Ponte de Lima, o casal deixava enterrados dois filhos: um rapaz que morrera com quatro anos e uma rapariga, que só viveu 16 anos, e que era, ao que reza a nossa memória familiar, o "ai-jesus" do meu avô.
O meu avô era de uma família modesta, da Correlhã, uma aldeia às portas de Ponte de Lima. Foi ajudado nos estudos por uma pessoa local de posses, que apreciava as suas qualidades. Em Viana, chegou a Escrivão de Direito e montou escritório como Solicitador Encartado. Com a minha avô e os seis filhos, viveu numa bela casa brasonada, que veio a adquirir, em frente à doca de Viana, onde hoje está instalada a Fundação Maestro José Pedro.
A história quase poderia terminar aqui, com alguma brevidade narrativa. Bastaria dizer que, depois de 13 anos de vida em Viana, com a família, António Emílio morreu, súbita e prematuramente, no mês de abril de 1925.
Podia mesmo acrescentar que o seu desaparecimento criou um imenso problema económico à família, de quem era o único sustento. A minha avó Filomena ficou numa situação complicada, sem grandes meios de vida, embora tivesse herdado a grande casa onde todos viviam. À morte do chefe da família, só o filho mais velho trabalhava. Os restantes, com uma exceção, ainda estudavam. Perante o súbito infortúnio, a família uniu-se em torno da minha avô, de uma forma exemplar, numa atitude que se prolongaria, pelas suas quatro décadas de vida seguintes. Os filhos mais velhos foram-se empregando e ajudavam a minha avó no custeio da educação dos mais novos. As condições nunca permitiram, contudo, que qualquer deles tivesse chegado à universidade. Mas todos souberam dar a volta à vida e construir um futuro estável.
Chegado a este ponto, o leitor perguntará: mas, então, esta era a história proibida? Não, caro leitor, não era. Ela já aí vem.
Antes disso, deixem-me dizer que o meu avô António Emílio era um republicano dos quatro costados, membro da Maçonaria e ligado ao grupo político de Álvaro de Castro, um destacado dirigente anti-sidonista, que chegou à chefia do governo. Em Viana do Castelo, o meu avô António Emílio representava essa linha política e tinha forte atividade no distrito. Aquando da sublevação anti-republicana conhecida como "monarquia do Norte", António Emílio andou de armas na mão a combater, com êxito, os "talassas" que sonhavam com o regresso do antigo regime. Ao que se dizia lá por casa, não sendo politicamente um radical, alimentava uma atitude anti-clerical e distante da religião, a qual, muito provavelmente, terá tido uma influência duradoura nas ideias dos filhos, onde também nunca vi frutificar nenhuma réstea de reacionarismo. Em geral, os netos herdaram esses cromossomas políticos...
António Emílio seria, a acreditar na imagem que dele ficou na memória da família, uma figura de atitude bastante austera. O meu pai, que tinha já 15 anos aquando da sua morte, dizia que, ao contrário da eterna suavidade da minha avó, ele impunha um ambiente de disciplina familiar muito severo: "Não me recordo de nos ter dado alguma vez um beijo. Quando entrava em casa, criava-se à sua volta um ambiente de extremo respeito e até de algum temor. A tua avó recordava que ele tinha graça e era divertido. Mas não foi essa a imagem que deixou nos filhos".
Seria António Emílio assim mesmo, fora de casa? É que aqui começa outra história, uma história de vida diferente. Nesses 12 anos de existência em Viana, antes da sua morte - e já iremos ao modo como ele morreu -, o meu avô tinha criado uma existência paralela: a uma outra senhora, de quem, nesse período, veio a ter cinco filhos (uma das versões fala mesmo de sete), o meu avô montou uma casa em frente à Igreja Matriz de Viana. A distância entre as residências das duas famílias era de umas escassas centenas de metros, passível de ser percorrida em menos de dez minutos.
A memória divertida da nossa família regista um episódio em que a minha avó, a quem um dia teria chegado a informação dessa persistente aventura desviante do marido, o terá confrontado e pedido satisfações, em face da evidência da traição. Para o nosso património de tiradas "históricas" caseiras ficou a resposta dada por António Emílio, que não terá negado a evidência, à sua mulher Filomena: "Meninha, o teu lugar ninguém to tira!". Com esta frase "sossegante", o assunto terá ficado resolvido? Nunca saberemos.
Deixo para o fim o derradeiro episódio, o da morte do meu avô. Desde muito cedo que o meu pai me falava daquele momento traumático, que havia privado a família da pessoa que era seu sustentáculo fundamental: "O teu avô morreu com um súbito ataque cardíaco, no escritório onde estava a trabalhar, no piso térreo da casa. Era, provavelmente, algo congénito e quem sabe se nós não herdámos dele essa deficiência cardíaca". Como sou um incorrigível hipocondríaco, andei por muito tempo preocupado com essa possível doença familiar. Até um dia.
Um dia, falando com o meu primo direito, Carlos Eurico da Costa, uns bons anos mais velho do que eu, sobre a morte do nosso avô, referi-lhe o modo como o meu pai falava do assunto. O Carlos deu uma imensa gargalhada! E explicou-me que o meu pai, sendo o filho mais novo à hora da morte do pai, foi sempre deliberadamente poupado de parte da verdade, quanto às condições da morte do pai. Toda a família, incluindo todos os sobrinhos do meu pai, sabiam, há muito, que as coisas não se tinham passado "bem assim". E eu, por tabela, tinha sido mantido fora dessa parte da verdade. "Não vás agora contar ao teu pai, que, desde 1925, alimenta a versão diferente do facto que os irmãos lhe "venderam", mas o nosso avô morreu no decurso de um ato sexual com uma senhora com quem se encontrava no escritório. Foi do coração? Talvez! Ele tinha um largo coração, como os factos vieram a provar..." O meu pai, até ao final dos seus 97 anos de vida, acabou por nunca saber das condições que envolveram a morte do meu avô.
Foi há cem anos, por estes dias, em Viana, que perdi o avô que nunca cheguei a conhecer e cuja vida, como se vê, foi bem agitada e, quero imaginar, bem divertida.