Há uns anos, entrei num restaurante nepalês em Lisboa e deparei com o João Cravinho a jantar com um amigo. Já não nos víamos há uns tempos e fui dar-lhe um abraço, passando depois à minha mesa. Ele saiu do restaurante antes de mim. No final do jantar, pedi o meu sobretudo, que tinha mandado para o vestiário. Quando mo trouxeram, qualquer coisa me fez sentir que aquele sobretudo não era o meu. Os empregados tinham-se enganado e haviam entregado o meu ao João. Isso criava um "pequeno" problema: eu tinha deixado no bolso do sobretudo as chaves do meu carro, que estava parqueado num estacionamento próximo, bem como as chaves de casa (embora, neste caso, houvesse outras).
Tentei ligar ao João, mas ele, que ia a guiar para casa, não atendia. Liguei ao filho, também João, na altura ministro da Defesa, procurando a sua ajuda. Pedi desculpa pelo "abuso" de estar a incomodar um membro do governo. O João filho, com bonomia, respondeu-me: "São estas situações que colocam à prova a utilidade da Defesa...". No final da noite, tudo se combinou e, no dia seguinte, desfez-se a confusão, connosco a encontrarmo-nos junto à Assembleia. Pergunto-me hoje se não foi essa a última vez que estive com o João Cravinho.
A morte do João Cravinho traz-me muitas memórias com ele. Desde logo, uma chamada telefónica que um dia me fez: "Meu caro Francisco. Já viu o cartaz em que nós contracenamos no Trindade?" Eu não tinha visto e, devo dizer com sinceridade, era para mim um privilégio "subir ao palco" com o João Cravinho, embora separados pela distância temporal de uma semana, para proferir conferências naquele teatro.
Deixo, como última recordação, o texto que, há oito anos, redigi para o livro comemorativo dos seus 80 anos.
Um rapaz do meu tempo
Esta ideia de que o João Cravinho é 12 anos mais velho do que eu é apenas uma insuportável sujeição ao calendário, sem a menor aderência a realidade objetiva das coisas. Sempre vi o João como « um rapaz do meu tempo », mesmo que a expressão seja já de outro tempo. Por isso, os seus ditos 80 anos impressionam-me muito pouco.
Lembro-me – ele não se lembra, claro – de me ter cruzado com o João nos idos de 74, naqueles corredores, entre fardas e guedelhas, onde se construía uma confusa esperança, com alegria, ingenuidade e, vá lá !, confessemos, alguma irresponsabilidade. Ele já era quase ministro, eu andava por ali a exercitar a política que tinha lido, absolvido nos erros pela boa intenção de ajudar a desenhar uma alternativa feliz à ditadura. Um dia, a vida levou-me para fora e, por muito tempo, perdi o João de vista, de quem ia ouvindo falar – sempre bem, com respeito e admiração. Só mais tarde, a « mesa dois » do bar Procópio, sob o humor ímpar do Nuno Brederode, nos voltaria a juntar, em largas e divertidas charlas. Finalmente, numa tarde quente de outubro de 1995, assobiando o Vangelis, entrámos ambos para essa aventura simpática que foi o governo de António Guterres. Já amigos, passámos a conhecer-nos melhor, com ele a tratar-me por um eterno « meu caro Francisco ».
Foi então que « aprendi » o João Cravinho. Podem crer que foi « um espetáculo » poder observar um ministro criativo, ousado, muitas vezes polémico, sempre teimoso, coerente, sólido como uma rocha, olhando dossiês técnicos com a vivacidade de um adolescente brilhante, mostrando-nos a modernidade de um olhar singular sobre a política. Posso confessar um segredo ? Foi ao ter o privilégio de assistir a algumas « performances » do João em Conselho de ministros que eu verdadeiramente entendi o que podia significar, em certas áreas especializadas, uma política « de esquerda » – sem chavões ideológicos, mas com um pragmatismo de onde nunca estava distante a solidariedade e a discriminação positiva para quem dela necessitava.
O que sempre me impressionou no João Cravinho foi a sua abertura ao contraditório, atitude de onde me pareceu, aliás, que retirava imenso gozo, porque isso lhe permitia exercitar a dialética, onde a firmeza dos seus argumentos melhor brilhava. Vi-o em confrontos complexos, em que aquele seu eterno sorriso, às vezes gargalhante, irritava, não raras vezes, o interlocutor. Mas pude apreciar e beneficiar da sua abertura a ideias diferentes, que sempre explorava com benevolência e simpatia. É talvez por isso que nunca o vi com uma « idade » diferente da minha.
Uma tarde, fui confrontado com um João Cravinho inesperado, de cuja cara desaparecera o sorriso para dar espaço quase às lágrimas. Foi numa evocação do embaixador Ruy Teixeira Guerra, nas Necessidades. O João não tinha esquecido, e lembrava isso com emoção, a mão amiga que lhe tinha sido por ele estendida, creio que num momento difícil de vida. Marcou-me muito esse momento e « esse » João Cravinho.
Acabo com as palavras que ontem deixei na RTP sobre o meu amigo João Cravinho. Junto um abraço de muito pesar ao filho João e um beijo à Isabel.
4 comentários:
Um restaurante nepalês com vestiário?! Coisa fina. O Francisco há de nos dizer onde é. Restaurantes com vestiário não são usuais, muito menos nepaleses...
"Casa Nepalesa", avenida Elias Garcia, Lisboa
O Luís Lavoura merece o Oscar da Picuinhice.
Obrigado pela resposta, Francisco.
Talvez um dia visite.
Notei com gosto a abundância de pratos de cabrito ou borrego. Uma nepalesa já me tinha dito que os nepaleses apreciam especialmente cabrito.
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