A Croácia disputa amanhã com a França a final do Mundial de futebol. Nos últimos dias tenho observado que muitos dos apoiantes da França acabam por sê-lo apenas como forma de se oporem politicamente à Croácia. A sua história durante a Segunda Guerra mundial, bem como o comportamento do novo país durante o conflito jugoslavo, criaram fortes anti-corpos à Croácia em vários setores “com memória”. E o futebol não escapa a estas polarizações.
Vou recordar uma historieta, que talvez venha a propósito.
O escritor Álvaro Guerra foi um dos escassos embaixadores oriundos do mundo fora da carreira diplomática por quem o Ministério dos Negócios Estrangeiros sempre manifestou genuíno respeito. A história que hoje relato passou-se em 1996, ao tempo em que ele era nosso representante junto do Conselho da Europa (CdE).
Numa tarde em Estrasburgo, senti o Álvaro um pouco embaraçado, durante a conversa que comigo teve, no caminho entre o aeroporto e hotel. Eu representaria Portugal, no dia seguinte, no Comité de Ministros do CdE, nesse que era o meu primeiro ano no governo. Notei que estava mais lacónico do que era costume e, uma hora depois, ao deixar-me à porta da residência do secretário-geral da organização, onde os membros dos governos tinham um ritual jantar, surpreendeu-me com a frase: "Logo à noite, espero-o no hotel. Precisava de falar consigo".
Fiquei intrigado. Eu tinha uma excelente relação pessoal com Álvaro Guerra, uma figura da intelectualidade portuguesa que conheci logo após o 25 de abril, cujo humor e simpatia, depois complementados pela vivacidade inteligente da Helena, sua mulher, transformavam as minhas idas a Estrasburgo em belos momentos de amena cavaqueira, onde a política portuguesa era sempre percorrida com apurada ironia. E grande cumplicidade. Que quereria o Álvaro? Um novo posto? Ele estava há pouco tempo no CdE, pelo que talvez me quisesse sensibilizar para algum problema de pessoal. Logo se veria.
Os jantares em casa do secretário-geral do CdE, que tinham lugar todos os seis meses, eram sempre precedidos de uma conversa "au coin du feu", com um convidado. Nessa noite, entrei na sala lado o lado com o ministro croata dos Negócios Estrangeiros, Mate Granic, e, por um acaso, sentámo-nos um em frente ao outro, nos dois melhores sofás individuais da sala.
(Nos cinco anos seguintes, eu e Granic, quase sem exceção, duas vezes por ano, tornar-nos-íamos "proprietários" desse lugares, que passaram a ser "cativos", na invariável coreografia com que o SG Daniel Tarschys e, mais tarde, Walter Schwimmer dispunham a sala. Caprichávamos em não perder esses "nossos" sofás, cujo conforto nos permitia resistir melhor às "secas" que alguns convidados nos pregavam. E gozávamos com isso.)
Eu conhecera Granic, meses antes, em Zagreb. No quadro de um discreto (diria mesmo, secreto) périplo que havia feito à volta da Europa, acordara com ele uma troca de apoios: a Croácia votaria favoravelmente a nossa candidatura a membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas e nós dar-lhe-íamos o nosso voto para a sua pretensão de entrar para o CdE.
Diga-se que esta última candidatura estava longe de ser consensual: o regime croata mantinha ainda falhas no tocante à observância de alguns princípios da ordem jurídica protegida pelo CdE e, por essa razão, alguns Estados membros mantinham reservas quanto a esta adesão. Por "realpolitik" e particular interesse nacional, mas igualmente pelo facto de considerarmos que uma integração da Croácia no CdE era a melhor forma de promover a observância de tais obrigações, o governo português havia optado por dar o seu apoio à pretensão croata, contrariando abertamente a posição que era defendida pela missão portuguesa em Estrasburgo, chefiada por Álvaro Guerra. No dia seguinte a esse jantar, a anteceder a reunião do Comité de Ministros, teria lugar a "foto de família", com os membros do governo e os embaixadores, que consagraria a entrada da Croácia na organização.
Regressei ao hotel e, no "hall", estava já o Álvaro Guerra. Sentámo-nos para uma bebida no bar e ele revelou-me a razão pela qual queria falar comigo: vinha pedir-me o favor de o dispensar de estar presente na cerimónia do dia seguinte. Álvaro Guerra fora embaixador em Belgrado e, tal como a esmagadora maioria dos colegas portugueses que haviam tido a experiência de servir na capital jugoslava (hoje da Sérvia), Belgrado, Álvaro "went native" e assumia uma posição fortemente pró-sérvia, com muito escassa simpatia (e isto é um "understatement"...) pela Croácia.
Era uma posição política, talvez pouco diplomática, mas as questões limites de consciência são respeitáveis, desde que assumidas de modo correto e não conflitual com os interesses do país. Não vi, assim, nenhum inconveniente em isentá-lo do exercício, que constatei que lhe seria muito penoso. No dia seguinte, ele assistiu, de longe, à fotografia comemorativa da adesão da Croácia, que há dias descobri na minha papelada (com muito menos cabelos brancos, diga-se).
Logo de seguida, sentámo-nos na sala do Conselho de Ministros e o Álvaro perguntou-me: "Quem foi a "alma danada" que, em Lisboa, teve a infeliz ideia de decidir o nosso voto em favor da Croácia?". Com um sorriso irónico, esclareci-o que fora precisamente eu o autor do "deal" com Granic, feito em segredo em Zagreb, escassos meses antes. Álvaro Guerra estava estarrecido! "Você?!". Expliquei-lhe a negociação e a racionalidade subjacente à decisão tomada, mas tenho a certeza que não o convenci. O Álvaro não se zangou comigo, como também o não fazia quando eu combatia, com ardor e ironia, a sua "aficción" tauromáquica.
O Álvaro morreu em 2002. Se fosse vivo, tenho a certeza de que amanhã estaria a gritar: “Allez les bleus!”.