segunda-feira, junho 19, 2017

Os portugueses pelo mundo


A gravidade da situação que envolve os portugueses na Venezuela, as hipóteses de retorno da população qualificada que tem saído de Portugal nos últimos anos, a sustentabilidade da confiança que as remessas de emigrantes hoje traduzem - tudo isso são apenas alguns dos fatores que nos levam a refletir sobre a diáspora portuguesa no mundo. 

Para além das respostas conjunturais, no quadro de uma política de apoio aos portugueses expatriados, que tem vindo a ser construída por sucessivos governos, interessa pensar, a longo prazo, qual será a melhor estratégia externa para um país que tem parte importante da sua população no exterior.

É isso que vamos fazer amanhã, terça-feira, dia 20 de junho, às 18 horas, na Universidade Autónoma, na rua de Santa Marta, 56, em Lisboa. Será nosso convidado José Luis Carneiro, o atual Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas.

Esta conferência é a penúltima do ciclo "Os interesses de Portugal no mundo" onde já ouvimos, nomeadamente, António Vitorino, António Monteiro e Luis Amado.

Estão todos convidados.

Ainda os incêndios

Alguns dirão que é talvez cedo para falar nisto. Não concordo.

Desde há vários anos que, em todos os ciclos políticos, é feita uma imensidão de estudos, com debates de permeio, sobre a questão da prevenção dos incêndios. Não há Verão em que não ouçamos especialistas falar sobre o que se deve fazer, governos a legislar pelo Outono, um pesado silêncio no Inverno, e, depois, tudo a continuar na mesma (ou quase, a julgar pelos resultados) na Primavera e Verão seguintes.

Não esqueço, claro, a imprevisibilidade das condições climáticas bem como a dificuldade em tocar nas estruturas fundiárias, que limitam fortemente a capacidade de atuar com eficácia. 

Também não esqueço a bravura de quantos, todos os anos, arriscam (e às vezes perdem) a sua vida em horas seguidas de sacrifício, como é o caso dos bombeiros. 

É, contudo, tendo tudo isso presente que me permito fazer algumas perguntas: estaremos mesmo a fazer as coisas certas, a seguir o melhor caminho? Teremos, entre nós, nos nossos especialistas em prevenção e operacionais no combate aos fogos, toda a "massa crítica" suficiente para desenhar as melhores soluções para o futuro neste domínio? 

A questão que queria suscitar esta esta: não seria tempo, como ocorre noutras áreas, de recrutar especialistas estrangeiros credenciados para fazerem uma análise independente às nossas estratégias de prevenção e combate aos fogos, aconselhando-nos à luz de outras experiências com mais sucesso? Não seria de procurar aprender com quem faz melhor? A menos que alguém me garanta que ninguém faz melhor do que nós, o que eu não acredito.

Sei que pode parecer provocatório estar a suscitar isto, num tempo de trauma como o que vivemos, mas é precisamente "aproveitando-o" que o alerta se justifica. Não poderia ser esta ajuda externa uma via a explorar? O que perderíamos com isso? O orgulho dos nossos técnicos e especialistas? Com franqueza, acho muito barato para o preço que o país já está a pagar.

Esta não é uma questão política, de esquerda ou de direita, de governo ou de oposição, é apenas uma questão de bom-senso.

domingo, junho 18, 2017

Tudo é feito de mudança

Um país não é muito diferente de uma pessoa: num segundo, sai-se de dias em que tudo parecia correr bem para um tempo de fatalidade, perante a qual se revela a nossa impotência.

Palavras

Dizer que não há palavras para esta tragédia é uma banalidade. E é falso. Há palavras! De conforto e pesar para as famílias das vítimas, de louvor para o trabalho dos bombeiros, de compromisso de que se vai continuar a trabalhar para que, no futuro, seja possível evitar catástrofes desta dimensão. Mas há coisas que, infelizmente, temos de encarar com raivosa resignação: a natureza ultrapassa-nos. Podemos minimizar ou atrasar os seus efeitos, mas não a podemos controlar em absoluto. A natureza é quem tem sempre a última palavra.

sábado, junho 17, 2017

Manuel dos Santos


É muito triste a questão que agora envolve o deputado socialista europeu Manuel dos Santos, motivada por uma referência pessoal, com laivos fortemente discriminatórios, à candidata do PS à Câmara de Matosinhos.

Para quem não saiba, importa notar que este é mais um episódio na progressiva divergência que o deputado tem vindo a manifestar face à orientação da direção do seu partido.

Conheço Manuel dos Santos há muitos anos, tendo sido colegas de governo. Noutra rede social, já tinha discutido isto com ele. Não o convenci da minha posição de que as divergências se debatem no seio das estruturas dos partidos, não devem ser trazidas para a praça pública, num desforço conflitual que, nesse contexto, acaba inevitavelmente por ser aproveitado pelos adversários políticos (como já se está a ver).

Manuel dos Santos é de outra opinião e decidiu prosseguir a sua "guerra". E, agora, excedeu-se, não entendendo que certas graçolas que, há uns anos, talvez passassem impunes, hoje são sujeitas a um escrutínio condenatório muito forte.

Não é claro o que virá a seguir. Mas, seguramente, não será nada de simpático.

sexta-feira, junho 16, 2017

Helmut Kohl

Hesitei um pouco a escrever "ainda sou do tempo de Helmut Kohl". A expressão acarreta, consigo, uma ideia de coisa antiga. E, porventura, devo assumir que o é. 

Sou do tempo em que o recém-empossado primeiro ministro António Guterres, chegado a um dos seus primeiros Conselhos Europeus, levantou a mão e, perante um impasse criado entre Jacques Chirac e Kohl, propôs uma determinada solução de compromisso. Eu (e estava errado) assustei-me com a ousadia, Chirac sorriu, complacente, com o atrevimento do "Antoniô", Kohl ficou com um ar esfíngico e ambos, sob o olhar algo surpreendido dos restantes parceiros, acabaram por ter de reconhecer a sensatez do que tinha sido aventado pelo seu par português. O qual, a partir desse dia, não tendo a altura física dos seus colegas do eixo Paris-Bona (Berlim viria mais tarde), demonstrou ter uma estatura europeia que ninguém ainda por lá esqueceu.

Sou do tempo em que, numa pausa de outro Conselho Europeu (ou num momento transformado em tensa pausa, pelos factos ali produzidos), vi um irado Helmut Kohl encaminhar-se, a passos largos, pelo meio da sala, para um seu homólogo, cujo nome não cuido em lembrar, que assumira uma atitude que lhe tinha fortemente desagradado, naquilo que ficou à porta de ser um inédito confronto físico no seio do mais alto areópago europeu. (Anos mais tarde, numa madrugada tensa de Nice, vi um furibundo Jacques Chirac avançar para um ministro dos Negócios Estrangeiros de um país vizinho, em termos que imitavam, à perfeição, a anterior cena, com a diferença de que o interlocutor que Chirac invectivava em tom forte estava encafuado numa cadeira de braços, da qual não conseguia fugir ao gesticular ameaçador do homem da Corrèze.)

Helmut Kohl morreu hoje. Nunca falei com ele mas conheço muito bem o seu papel na História da Europa e do seu país. E também sei, porque o ouvi a alguns que com ele privaram ou acompanharam de perto a sua ação, que foi uma personalidade a quem nunca foram indiferentes os interesses de Portugal, que soube entender as nossas razões, que nos ajudou, com compreensão, em momentos delicados da nossa adesão e participação no processo europeu.

Só por isso, dá-me gosto dizer que ainda sou do tempo de Helmut Kohl.

Macron ou a esperança



O processo político que se vive em França merece ser acompanhado com atenção. É curioso ver um sistema que, por várias décadas, funcionou numa lógica tradicional de alternância esgotar-se, no espaço de alguns meses, redundando numa solução atípica, muito personalizada, uma espécie de bonapartismo feito mais de esperança do que de coisas concretas.

É fácil concluir que os partidos tradicionais esgotaram a sedução das suas mensagens ou não souberam recompô-las com receitas programáticas capazes de convencer um eleitorado cansado de décadas de promessas não cumpridas, tituladas pelas caras de sempre. É da sociologia política primária concluir que o surgimento de alguém com uma mensagem otimista, uma figura politicamente pouco marcada, com um discurso mais tecnocrático do que ideológico, pode ter abalado esse equilíbrio rotineiro. Mas, na ausência de uma crise histórica profunda ou de um abalo político muito sério, fica ainda muito por explicar no fenómeno Macron. Ele não foi, como De Gaulle em 1958, resultado de uma “vaga de fundo”. Se François Fillon não se tivesse envolvido em algumas inesperadas trapalhadas, não o estaríamos hoje a analisar aqui.

A França é o país das ideologias, mas a nova situação política em que vive é precisamente marcada por uma aparente onda de “desideologização”, pelo retorno ao mito idílico do “nem esquerda nem direita”, um tropismo que, como é sabido, surge de quando em vez nos ciclos políticos, empurrado pela ideia de que o que é preciso é fazer as coisas certas, venham elas marcadas pelo ferrete de serem de esquerda ou de direita. Sem uma única exceção, a História provou que todas essas experiências redundaram em soluções conservadoras, e esta não será, com certeza, uma exceção à regra.

O tempo, porém, lá por França, está do lado de alguma esperança. Uma esperança que deu a Emmanuel Macron a vitória sólida sobre a candidata presidencial da extrema-direita, mas que não parece ter sido suficiente para mobilizar o voto, de forma muito empenhada, nas eleições legislativas subsequentes. Esta espécie gaulesa de “PRD” (os leitores com memória dos anos 80 portugueses devem lembrar-se) traz consigo a excitação da virgindade política mas também a imprevisibilidade de quadros ainda não testados na fogueira do quotidiano.

Macron é uma figura que não descura a coreografia, que traz estudada ao milímetro. Surge com uma vitalidade pausada e de um rictus de firmeza - uma “espécie de Sarkozy decente”, como dizia alguém –, parecendo ter algumas ideias bem claras, nomeadamente no terreno europeu, onde a afirmação da França é mais do essencial para o projeto coletivo. Com o tempo se verá melhor se o “macronisme” veio para ficar ou se ficará na história francesa como um epifenómeno passageiro.

Lisbon (2)

Ontem escrevi aqui um post sobre o mau serviço prestado no setor comercial, em especial na área da restauração, por empresas que empregam trabalhadores estrangeiros que não sabem expressar-se em português.

O post dirigia-se, obviamente, à responsabilidade dos empregadores, a quem pagamos os serviços e nunca, como é evidente, aos próprio trabalhadores, que são o elo mais fraco do problema e que se limitam a aceitar o trabalho que lhes é proposto.

O texto foi algumas vezes treslido, por iliteracia, má fé e outras intenções cujo inventário se poderia fazer. Chegou-se a afirmar que ele era xenófobo e racista, não obstante nele se dizer o seguinte: "Faço parte de quantos gostam muito de ver Portugal um país de acolhimento para trabalhadores estrangeiros. Tenho orgulho quando os ouço dizer que gostam de viver por cá, que se sentem aqui bem. E espero sinceramente que fiquem, porque o nosso destino de porto de chegada sempre ajudou a abrirmo-nos ao mundo. O mesmo mundo que também continua acolher-nos, não o esqueçamos."

Ora isto é tudo muito simples e claro: quem trabalha na área dos serviços em Portugal, lidando com público, deve saber falar o português necessário para o exercício capaz dessas funções. É ao empregador, que é o nosso interlocutor na relação comercial desse serviço, que compete a responsabilidade de seleccionar as pessoas com essas habilitações mínimas. Quem as não tem pode e deve efetuar outro tipo de tarefas para as quais essas habilitações ou qualificações não sejam necessárias.

É assim tão difícil perceber isto?

quinta-feira, junho 15, 2017

O tempo e a diplomacia


"Vais conseguir tempo para ler esse livro?" A pergunta tinha algum sentido e até era bem benévola, à vista dos quase vinte volumes que eu acabara de comprar, ontem à noite, na Feira do Livro. E, de facto, não tive resposta para ela. "Sei lá!", era o que me apetecia responder, apanhado no embaraço habitual que sinto quando entro em casa ajoujado de livros. É claro que podia dizer, como o outro, que só há uma coisa melhor do que ler um livro, que é comprá-lo! Mas essa resposta já está "gasta" cá em casa...

A monumental biografia do Barão de Rio Branco, a grande figura tutelar da diplomacia brasileira, de Álvaro Lins, é um clássico que eu já devia ter adquirido há muito. Encontrar esta 2a edição (a edição original é de 1945), de 1965, em estado novo, por pouco mais de cinco euros, foi um "achado" a que não resisti. Claro!

Álvaro Lins é uma figura intelectual brasileira muito interessante. O seu "Missão em Portugal" (que era proibidíssimo entre nós e que me recordo ter consultado, pela primeira vez, na Biblioteca Pública de Nova Iorque, em dezembro de 1972) é um relato do extraordinário período em que foi embaixador em Portugal, tendo Humberto Delgado refugiado na sua embaixada, com toda a negociação posterior com as autoridades portuguesas. Mas a biografia de Rio Branco é tida como a sua obra maior, para além dos estudos sobre Luís de Camões.

Quando cheguei ao Brasil, em 2005, corria o boato de que o secretário-geral do ministério das Relações Exteriores, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, obrigava os funcionários com pretensões na carreira a lerem esta biografia.

Não sei se isto é verdade, mas eu não me importaria que, entre nós, a hierarquia diplomática obrigasse alguns funcionários diplomáticos a certas leituras que os ajudassem a perceber que o que fazem, por aqueles claustros das Necessidades e pelo mundo, se insere numa história muito longa que deve servir de ensinamento de fundo a toda a sua ação de representação do país. E que tem sempre de haver tempo para bem aprender esses tempos.

quarta-feira, junho 14, 2017

Lisbon


Há uns tempos, deu-me para ir jantar a um clássico restaurante de bacalhau, na Baixa lisboeta (esse mesmo!). Quando quis saber um pormenor sobre um certo prato, o empregado, muito sorridente, hesitou, atrapalhado, por não perceber a minha pergunta. Quis saber de onde era: do Nepal. O seu inglês não era famoso e, visivelmente, só estava fadado para servir aquele tipo de turistas que apontam para uma fotografia com preço à frente, no menu plastificado. 

Porque o impasse continuava, porque eu (já em inglês) continuava a querer saber algo que ele não compreendia, chamou um colega para falar comigo: esse era do Sri Lanka. O inglês era melhor, mas, tendo-me já entendido, não tinha a informação que eu queria. Ainda pensei que pudesse vir por ali alguém do Butão...

E lá chegou um português (ficou satisfeito quando lhe disse que era parecido com o Ricardo Araújo Pereira, mas logo esclareceu que tinha um irmão lá em casa, esse sim!, quase sósia do ator). E tudo se resolveu, mais ou menos. (Para o que aqui não importa, comemos "bem malzinho", como a minha mãe piedosamente dizia, quando se saía de uma péssima refeição num restaurante).

Há dias, na noite de Santo António, já depois da meia-noite, abancámos numa esplanada da Rua Augusta. Os empregados eram maioritariamente do Sri Lanka. Simpáticos, sorridentes, disponíveis, não falavam peva de português. Entendemo-nos naquele "inglês de aeroporto" em que é difícil discutir se uma água é das Pedras, do Vidago (quem é de lá perto diz "do Vidago", quem não é diz "de Vidago"), de Campilho ou de Cavalhelhos. Pronto, a noite era de festa!

Lisboa está transformada numa cidade para turistas, para gente "de fora". Tudo bem, mas não exagerem! Não me apetece sentir estrangeiro na Baixa, como, por outras razões, me sentia em Albufeira, no século passado! 

Faço parte de quantos gostam muito de ver Portugal um país de acolhimento para trabalhadores estrangeiros. Tenho orgułho quando os ouço dizer que gostam de viver por cá, que se sentem aqui bem. E espero sinceramente que fiquem, porque o nosso destino de porto de chegada sempre ajudou a abrirmo-nos ao mundo. O mesmo mundo que também continua acolher-nos, não o esqueçamos.

No entanto, é importante que quem, no setor turístico, deve andar nos dias de hoje nas suas "sete quintas", com as enxurradas de "camones" (recupero aqui a expressão elegante dos taxistas), perceba que há um país de gente que vive por cá e que tem o direito a ser servida na sua língua (original ou aprendida).

O papel da rainha


A rainha de Inglaterra não tem como não aceitar um governo que o parlamento lhe proponha. Assim, a rainha vai ler, dentro de dias, um discurso elencando as medidas do futuro governo, sem que possa recusar uma só palavra que seja desse texto que o executivo lhe colocará nas mãos. A rainha de Inglaterra, com os anos que o sistema leva, converteu-se naquilo que vulgarmente se designa como "uma rainha de Inglaterra"...

As poucas monarquias que subsistem na Europa - quando foi instaurada a nossa República, só a França e a Suíça não tinham regimes monárquicos - decorrem da descendência de soberanos que, num determinado momento histórico, assumiram gestos que foram lidos como fatores de reforço da respetiva identidade nacional. A partir daí, as eventuais pulsões para a instauração da democracia republicana foram travadas por um acordo implícito: os soberanos e seus descendentes mantêm-se como símbolos da unidade nacional mas, em contrapartida, prescindem de terem a menor interferência na vida política, em alguns casos funcionando exclusivamente como meros "notários" do processo democrático que, à sua margem, gere o país. Enquanto eles e os seus sucessores não se constituírem como um problema, a sua sustentabilidade nos palácios dourados não será posta em causa.

No caso britânico, assim é e, desde que assim continue a ser, nenhuma pressão significativa parece existir para a reimplantação da República (já houve um regime republicano por lá, note-se).

Daqui a dias, a rainha de Inglaterra vai ler o programa do governo que Theresa May lhe colocará em frente. Parece que essa sessão, no entanto, foi atrasada, face ao calendário previsto. Porquê? Porque a rainha não lê esse texto num papel qualquer: o longo discurso é manuscrito, a tinta, numa espécie de pergaminho. Ora a tinta leva quase uma semana a secar no pergaminho e o próprio texto do discurso ainda não está finalizado. Só estabilizado este é que os calígrafos apurarão as penas e a seca do pergaminho se iniciará, por mais de cinco dias.

As liturgias têm um preço. A rainha e o pergaminho fazem parte dessas liturgias, com Brexit ou sem ele. Essa é a "graça" das monarquias, para quem gosta do género. Por mim, dispenso-o e vivo muito bem com este regime republicano semi-presidencialista que, na ciclotimia do humor dos eleitores (quase sempre exaustos da experiência anterior), nos leva a eleger ora figuras patibulares ora "charmeurs", com intectuais ou militares éticos à mistura.

Com todo o respeito que tenho por aquilo que tem sido a escolha implícita dos britânicos, viva a nossa República!

terça-feira, junho 13, 2017

Ao Rui "Manuel"

É um dos mais reconhecidos e prestigiados diplomatas portugueses, em cuja carreira ascendeu até ao topo. Inteligente e culto, tem um humor rápido e uma ironia subtil. É o Rui Quartin Santos, um embaixador que, nos dias de hoje, goza uma merecida jubilação.

Conheci-o em Nova Iorque, nos anos 70 do século passado, quando um dia por ali passei como "correio de gabinete", uma função de transporte de documentos de elevada confidencialidade, que, ao tempo, era executada casuisticamente pelos diplomatas mais jovens. Voltando uma tarde a esquina da 5a Avenida com a rua 58, tendo-me eu queixado do "wind chill factor" naquele gélido inverno, ele retorquiu-me, seriíssimo: "É verdade, mas nada que se compare com a esquina da Loja das Meias com a rua Augusta, lá por Lisboa, que está cotada, sem contestação, no topo dos registos meteorológicos mundiais de ventanias..." (Na altura, a Loja das Meias era ali). Por esses tempos, o Rui divertia-se também a relatar as míticas expressões de "inglês mais-ou-menos" atribuídas a um colega nosso, que falava aos nova-iorquinos da sua mulher-a-dias designando-a por "my wife-a-days"...

Mas é sobre um dos mais conhecidos "vícios" do Rui que eu quero aqui falar, porque o assunto veio hoje à baila num almoço de amigos, neste dia de Santo António.

Vou dar um exemplo concreto, para mais facilmente se entender o assunto. Imaginemos que o Rui analisava um debate recente na Assembleia da República. O seu comentário poderia ser uma coisa como esta: "Faz muita falta por ali o Francisco Anacleto. A vida seria muito mais difícil para o António Luís se o tivesse como opositor." Perante a nossa eventual estupefação, face à menção daqueles nomes, o Rui esclareceria que se estava "naturalmente" a referir ao Francisco (Anacleto) Louçã e ao António (Luís da) Costa. É que o Rui especializou-se, desde há décadas, em saber os segundos nomes de imensa gente, criando um glossário onomástico que ficou clássico nas conversas dos claustros do ministério. "Ó Francisco Manuel! Que achaste do discurso de ontem do Jaime José? O António Vitor disse-me que gostou imenso!". Foi sempre assim, durante anos, sendo que, neste caso, o "Jaime José" seria Gama e o "António Vítor" seria Monteiro.

Já não vejo o Rui há bastante tempo, mas, conhecendo-o, tenho a certeza de que não deixou de manter aquele seu curioso "vício", que aliás ecoa uma prática antiga que nos habituámos a detatar nos romances clássicos russos. Quando o encontrar de novo e ele me tratar, como sempre faz, por Francisco Manuel, não deixarei de lhe chamar "Rui Manuel" ou "Rui Bernardo" ou "Rui Valentim", porque o Rui, useiro e vezeiro em chamar à colação o segundo nome dos outros, não tem, ele mesmo, nenhum segundo nome próprio, o que abre um espaço quase infinito à nossa imaginação.

Um abraço para ti, caríssimo Rui, para o caso de alguém te mostrar este escrito que inspiraste.

segunda-feira, junho 12, 2017

"Olhar o Mundo"

Chama-se António Mateus, é jornalista profissional há muitos anos e trabalha na RTP. A sua especialidade é a política internacional, terreno onde se mexe como peixe na água, fruto da sua inigualável experiência como correspondente na África Austral. Tem vários livros publicados e, desde 2014, dirige na RTP o programa semanal de informação internacional "Olhar o Mundo", onde coordena um grupo de colaboradores "pro bono", de que faço parte.

O António lançou agora um livro, com o título do seu programa, onde insere entrevistas que conduziu com diversas personalidades, a que juntou textos da autoria de alguns dos colaboradores do programa (entre os quais um texto meu, sobre o futuro da diplomacia), numa edição da Marcador.

O livro foi lançado na passada quinta-feira na FNAC do Colombo e teve uma sessão de apresentação ontem na Feira do Livro. Compromissos e andanças fora de Lisboa impediram-me de estar presente mas não impedem que o recomende a quem nos lê.

Parabéns, António! 

Os filhos de Ronaldo

Cristiano Ronaldo é um homem simples e que parece bem formado. Um dia, numa sua entrevista a Judite de Sousa, deparei, com surpresa, com uma personalidade que estava a conseguir lidar, com notável maturidade, com toda a pressão que a adulação e o dinheiro inevitavelmente acarretavam para o jovem que era. 

Quero com isto dizer que estou convicto de que Cristiano Ronaldo, independentemente de alguma arrogância que há que desculpar-lhe, atento o impacto público das "performances" notáveis que faz, como excelente profissional que demonstra ser, é - passe a expressão - um "gajo porreiro".

Daí que me pareça menos conforme com essa imagem a circunstância de, por um frio e comodista calculismo, ter optado por um sistema de "produção" de filhos que vai privar essas crianças de crescerem ao lado de uma mãe. O pai pode vir a dar-lhes tudo, da atenção a um imenso conforto material de vida, mas amputar friamente o seu ambiente familiar, condenando essas crianças à vida com uma (ou mais do que uma) madrasta, é uma opção que, na minha opinião, releva de um inaceitável egoísmo.

domingo, junho 11, 2017

Fausto


Tinha então o ar típico de um menino acabado de aterrar em Lisboa, vindo da Angola onde nascera para a música e concluíra o liceu. Projetava uma imensa simpatia, um sorriso sereno que, com naturalidade, construía amizades.

Naquele ambiente universitário atípico, de há quase 50 anos, que era o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina - leram bem, "ultramarina" -, uma escola de formação de quadros para a administração colonial que Adriano Moreira procurava transformar numa incipiente escola de ciências sociais, recordo-me dele se ter integrado muito bem, fazendo mesmo a "ponte" entre os filhos, mais ou menos rebeldes, de uma Lisboa "social" que por ali andavam e a turbamulta associativa que então se divertia a subverter a ordem salazarenta que ainda se respirava em certos setores da casa. Pelos muitos poisos de conversas no Palácio Burnay, à Junqueira, bem como em noitadas da Rua da Paz, uma nova e improvável versão meio anarca da "Casa dos Estudantes do Império", onde imperavam a política, os copos e grandes tainas, construí com ele uma amizade para a vida.

A pessoa que motiva este texto chama-se Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias. Todos o conhecem: é o Fausto, do "Por este rio acima".

Em 1968/69, ambos fizemos parte da mais radical lista associativa que aquela veneranda casa vira algum vez nascer. E ganhámos, numas eleições divertidas, bem coloridas, com gente muito diversa, mulheres lindas, sob uma bandeira programática que fora beber o essencial ao maio parisiense, escassos meses antes. Quem, por esse tempo, leu o (proibidíssimo!) n° 1 da revista "Ibis" sabe do que estou a falar.

A nossa vitória viria a ser, contudo, algo pírrica: semanas depois, o Ministério da Educação Nacional informou que toda a lista eleita fora "não homologada", porque, como era a regra da época, a democracia parava à porta da vontade arbitrária da ditadura. E o ditador, precisamente por esses dias, até mudara: chamava-se agora Marcelo Caetano (esse mesmo, cuja biblioteca esteve ontem no centro do 10 de junho carioca, celebrado pelas autoridades que "abril abriu"). A Associação viria mesmo a ser saqueada, à nossa frente, pelos esbirros do capitão Maltez e o sonho lindo foi adiado, com a raiva a subir.

O Fausto, já por essa altura, compunha coisas musicais bem interessantes, embora ele talvez se reconheça menos numa canção em que se falava de "meninos com olhos de cratera", com letra do João Bettencourt da Câmara, que então gravou num (hoje raríssimo!) 45 rotações. O mesmo Fausto que cantava nos "convívios" da Junqueira, em tardes em que o Tossán e o José Carlos de Vasconcelos declamavam o neo-realismo empolgado das poesias das "notícias do bloqueio". O Fausto que então namorou a Rita Vinhas, a mais bonita colega das nossas tardes do magnífico jardim e da "sala verde".

Dois anos mais tarde (1970/71), o Fausto e eu voltámos a ganhar as eleições para a Associação. E, dessa vez, para alguma surpresa nossa, o ministério não ofereceu quaisquer objeções à lista. Eu era presidente da Assembleia Geral e o Fausto tinha uma posição muito importante, creio que na direção. O ano académico fora muito turbulento. No meu caso, tinha mesmo sido objeto de um processo disciplinar, que me impedia de assistir às aulas (!) e de entrar nas instalações da escola, exceto para fazer os exames das "frequências".

Mas, no ano seguinte (1971/72), voltámos a apresentar uma nova candidatura. E voltámos a ganhar. Só que, dessa vez, o presidente da Assembleia Geral cessante (isto é, eu) recebeu uma carta do Secretário-Geral do ministério, num tom muito formal, informando "V. Exa. de que a lista vencedora nas eleições para os corpos gerentes da Associação Académica do ISCSPU foi homologada por despacho de S. Exa. o Ministro da Educação Nacional". Tudo igual ao ano anterior? Não. O texto não acabava aí e acrescentava "... , com exceção dos senhores Francisco Manuel Seixas da Costa e Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias, que estão superiormente impedidos de tomar posse".

A "medalha" de termos sido "não homologados" pelos dois ministros da Educação da ditadura já na sua versão marcelista, Hermano Saraiva e Veiga Simão (este último que o destino me levaria a cruzar à mesa do mesmo governo, um quarto de século mais tarde), ninguém nos tira, ao Fausto e a mim.

O Fausto, além de se dedicar ao ensino, teve a carreira musical brilhante que o país conhece. Construíu alguns dos álbuns mais notáveis da música portuguesa contemporânea e, amizades à parte, faz hoje parte desse (julgo) indiscutível "top five" que integra com Sérgio Godinho, José Afonso, José Mário Branco e Jorge Palma.

Lembro-o hoje aqui porquê? Porque o Fausto tocou ontem na minha terra, em Vila Real, nas comemorações do 10 de junho. E eu, que um dia vim de Paris a Lisboa expressamente para ver e ouvir uma sua apresentação, estava ocasionalmente em Vila Real, a 400 metros do espetáculo... e não fui, porque não sabia!

Um destes dias, quando me apresentar ao serviço no "almoço das quartas", no Lumiar, com o Fausto, o João Paulo Guerra, o "naval" Paiva de Andrade e outras gentes, lá vou eu ter de fazer a minha "mea culpa", selada com o "maltesiano" líquido escocês que, além da amizade, de há muito nos une os gostos.

sábado, junho 10, 2017

O jornalismo e o resto

José Gomes Ferreira escreveu um texto em que responde a algumas críticas sobre o modo como entrevistou, há dias, o primeiro-ministro. Nesse texto, procurou revelar a sua "independência", alinhando um conjunto de críticas que dirigiu ao anterior governo. O seu exercício saiu frustrado, como não podia deixar de ser. 

O país tem boa memória e não esquece que, ao longo de muitos anos, JGF se tem deixado resvalar para uma postura analítica (aliás, bem expressa no género de convidados que privilegia) em que se cola a soluções que agradam, esmagadoramente, a um único setor do espetro político. E que desagradam ao outro. Devo dizer que, contrariamente a muitos dos meus amigos, não me custa aceitar que JGF vá por esse caminho. Não admito, contudo, é que JGF e a SIC apresentem isso como "jornalismo". O que ele faz, à sua maneira, é apenas "crítica económica", legítima mas enviezada, como é sempre qualquer crítica (como, por exemplo, é este texto que estão a ler).

Para o jornalismo económico, que praticamente desapareceu dos "media" em Portugal, é indiferente o que o profissional pensa sobre o tema que aborda. O que ele "acha" é, em absoluto, irrelevante para o seu trabalho. O uso do "eu" é a marca que diferencia o analista do jornalista. A função deste último é explicar-nos o que está em causa, é apresentar, de forma equilibrada e neutra, a racionalidade dos argumentos que estruturam cada uma das várias perspetivas com que os agentes políticos e económicos (patronais ou sindicais) olham para o problema. Nesse inventário de leituras até pode apresentar a visão dos analistas mais relevantes, mas não lhe compete opinar, não está ali para isso. A sua missão é ajudar-nos a entender o problema, dando-nos utensílios para depois formarmos a nossa própria opinião. Só isso.

Normalmente, irrito-me ao ver os comentários de JGF e, às vezes, faço um imenso esforço para assistir, até ao fim, aos seus programas. Porém, gosto muito do contraditório e tenho sempre interesse em conhecer as opiniões da direita. Um dia, num dos seus programas, JGF descaiu-se e disse mais ou menos isto: para resolver os problemas da economia só funcionam as políticas de direita. Ouvi, tomei nota e percebi que o jornalista José Gomes Ferreira tinha acabado ali. Ele, porém, ainda não tomou conhecimento desse óbito.

sexta-feira, junho 09, 2017

Os limites de Trump

Ontem, a democracia americana revelou a sua pujança: ver o antigo director do FBI testemunhar, em sessão pública, sobre as práticas de gestão de dossiês politicos altamente sensíveis por parte do presidente do país, ouvindo da sua boca que teve receio de que ele “mentisse”, não pode senão reforçar a confiança em que os famosos “checks and balances” ainda são, nos Estados Unidos, uma coisa séria.

Desde há uns meses, o mundo vive traumatizado com a figura que os americanos elegeram para chefiar o país, sendo poucas as dúvidas de que essa pessoa está muito longe de ter as qualificações exigíveis para o exercício das funções. O sistema americano deu mostras de ter “falhado” no escrutínio seletivo que as máquinas partidárias costumam empreender, a montante do voto popular. É claro que a América já tinha produzido figuras do jaez de um George W. Bush, ou, nas vice-presidências, Spiro Agnew ou Dan Quayle, mas Donald Trump parece oferecer a perspetiva de, por contraponto, os vir arvorar em “estadistas” na memória história futura.

O que ontem se passou não deverá ter consequências de maior, para além de acentuar o aumento do desgaste politico do presidente. Quem conhece a máquina política americana sabe que é imensa a legitimidade de quem consegue o acesso à Casa Branca, particularmente se tiver em relativa consonância um Congresso apressado em fazer passar uma agenda política de reversões. A menos que Trump venha a cruzar uma gravosa “red line”, as hipóteses de vir a ser afastado no meio do mandato continuam muito remotas.

Ficou ontem muito claro que o “dossiê Rússia” está em cima da mesa da política americana, embora por razões bem diferentes daquelas que existiam há escassos meses. Por essa altura, Trump havia dado estranhos sinais do seu interesse em trabalhar num apaziguamento com Moscovo, indiciando mesmo um conluio de contornos pouco claros com Putin. As versões mais benévolas inclinavam-se para isso fazer parte de uma estratégia de isolamento da China (vista como o inimigo comercial, face a uma Rússia economicamente sufocada). Moscovo poderia ser também um possível parceiro numa acomodação no Médio Oriente, de onde os Estados Unidos (desde George W. Bush e Obama, note-se) davam sinais de estar a recuar.

Ontem, olhando o tom dos congressistas sobre as interferências cibernéticas russas, fica clara a razão pela qual Donald Trump mudou já de agulha perante Moscovo: a acrimónia pré Guerra Fria continua bem enraizada nos EUA e desvalorizá-la foi um erro crasso (entre outros) do novo presidente. E o Congresso, por mais enviezado politicamente que esteja, como está, tem sempre uma dimensão de sentinela crítica que convém não desvalorizar. Ontem fui dormir mais descansado, confesso.

quinta-feira, junho 08, 2017

António Costa

Foi muito interessante ver a conversa de António Costa com José Gomes Ferreira, na SIC. O primeiro-ministro demonstrou uma imensa serenidade, transmitindo domínio dos dossiês e confiança, dando mostras de viver bem com as tensões nas áreas políticas que apoiam o governo, mesmo no tocante às greves. Ao seu interlocutor, coitado!, não tendo como contestar os resultados obtidos, restou a postura de tentar querer ser "mais papista do que o papa" nas reivindicações daqueles setores com que visivelmente não se identifica mas cuja agenda maximalista procura utilizar para tentar atrapalhar o governo. E tendo ele sido um arauto da bondade da austeridade, procura colar o atual governo a ela, como absolvição póstuma da governação passos-coelheira, da qual tem uma inapagável saudade. Vê-se que Costa está mais à vontade do que nunca e que se divertiu com a atrapalhação de um comentador que alimenta um tropismo de Cassandra, num tempo que há uma escassez de más notícias. Confesso que tenho alguma pena de José Gomes Ferreira, a quem cabe o destino dos cangalheiros: é no mal dos outros que reside o sucesso do seu negócio. Mesmo que "os outros" sejam o próprio país - com cujos sucessos Costa o obrigou, a espaços, a afivelar um esgar de esforçado "contentamento".

quarta-feira, junho 07, 2017

O adversário ideal

Há dias, num ambiente empresarial, discutia-se a questão de saber com quem seria mais fácil discutir um contrato: se com alguém fragilizado por um débil apoio entre aqueles que representa ou se com uma pessoa que tem, atrás de si, o conforto de uma posição sólida. 

A questão coloca-se à Europa, a propósito do Brexit. Seria melhor discutir as condições de separação com um governo de Theresa May com fraco poder, debilitado por uma eleição que não correu à altura do esperado ou com uma primeira-ministra forte, após uma grande vitória, com uma voz poderosa e tendo um país unido atrás de si?

O problema não parece pôr-se: o governo britânico não parece ter condições para poder vir a obter, nas eleições legislativas de amanhã, um resultado à altura das expectativas que tinha, quando decidiu convocar o sufrágio. Será assim uma Theresa May mais enfraquecida que os restantes líderes europeus, nos próximos anos, irão ter do outro lado da mesa. Ora a História prova que um interlocutor forte, não obstante poder ser um adversário muito exigente, é também aquele que tem autoridade para poder "vender" mais facilmente recuos ou concessões a que uma negociação sempre obriga. Por isso, e ironicamente, um expectável resultado menos bom para os conservadores pode acabar por não ser uma boa notícia para a Europa.

terça-feira, junho 06, 2017

Diplomacia - os próximos 100 anos


(Texto incluído na antologia "Olhar o Mundo", organizada por António Mateus, ed. Marcador, Lisboa, 2017)

Como Twain disse um dia a propósito de um anúncio prematuro sobre a sua morte, parecem muito exageradas as notícias sobre a iminente desaparição da diplomacia.

Deixando embora os créditos da mais velha profissão do mundo para outras artes, essa vetusta gestão dos “rituais de entendimento” à escala internacional, como lhe chamou Paulouro das Neves, tem-se constituído, ao longo dos séculos, como um eficaz instrumento na prevenção e resolução de conflitos, sendo que, quando em absoluto os não consegue evitar, é da sua natureza e missão conseguir manter abertos, por cima de todas as dificuldades, os canais possíveis de contacto e diálogo.

Nunca se saberá quantas guerras a diplomacia evitou, mas é uma evidência que ajudou a pôr termo a muitas e, de um modo ainda hoje bem visível, ajudou a que algumas fortes tensões internacionais se mantivessem a níveis de intensidade capazes de poupar muitas vidas.

O século XX testemunhou, não apenas a exponencial multiplicação da rede diplomática bilateral à escala global, pela quase dupla centena de países que, em especial, o processo descolonizador fez emergir, mas igualmente consagrou o surgimento de uma diplomacia multilateral permanente, terreno de afirmação e representação, política e negocial por excelência, onde os pequenos e médios Estados ganharam um estatuto de equidade relativa que não deixa de ter consequências no equilíbrio da ordem internacional.

Marcada por um “template” com clara origem europeia, a prática diplomática (e consular) internacional conseguiu aculturar, num modelo basicamente similar, todo o resto do mundo, graças, em especial, à adoção generalizada desse valioso referencial normativo que foram as Convenções de Viena – sobre relações diplomáticas e consulares.

Não vale a pena inventariar as mudanças cumulativas que a prática diplomática foi sofrendo ao longo dos tempos, a começar pela diluição da exclusividade de representação da vontade do “soberano”, que os agentes diplomáticos contemporâneos praticamente deixaram de ter. A crescente facilidade nas comunicações, das pessoas e das mensagens, o progressivo estabelecimento de uma “comunidade” mediática e de análise dos fenómenos políticos, com projeção quase instantânea à escala global, a prática generalizada das relações diretas entre os setores especializados, públicos ou privados, dos vários países, que muitas vezes deixaram de passar pela coordenação da rede diplomática, tudo isso, e muito mais, contribuiu para desenhar um novo perfil para a atividade diplomática contemporânea – e, por maioria de razão, para os tempos que aí virão.

O trabalho dos diplomatas profissionais é hoje escrutinado com muito maior rigor e exigência, porquanto estes estão, cada vez mais, sujeitos a modelos de “accountability”, na aplicação dos quais se joga a própria legitimidade da sua existência como classe professional autónoma. A diplomacia é hoje chamada a mostrar, de forma cada vez mais transparente, o valor acrescentado que a sua ação pode trazer à proteção dos interesses que lhe cabe proteger e promover.

Essa evolução da prática diplomática, como se tornou flagrante nas últimas décadas, acabou por simplificar muita da “coreografia” que, historicamente, envolvia a ação dos seus profissionais e marcava a imagem de “glamour” (mas também, por vezes, de alguma superficialidade generalista) que a diplomacia tinha aos olhos exteriores. Alguma dessa “liturgia” da profissão é ainda preservada, dado que isso constitui um relativo suporte para o mútuo respeito por procedimentos que, no fundo, padronizam e regulam o exercício da mesma atividade por cidadãos oriundos de culturas muito diversas. No entanto, a vida diplomática dos nossos dias tende a simplificar certos rituais protocolares, a dar mostras de alguma contenção na exibição dos faustos que fizeram a sua glória de outras eras, isto é, procura assumir-se, cada vez mais, como um terreno para a execução adequada e sóbria da dimensão externa das políticas públicas dos Estados.

É neste contexto que uma nova visibilidade da ação diplomática, através da chamada diplomacia pública, se procura hoje crescentemente estabelecer, através de uma utilização das novas tecnologias e ferramentas mediáticas (blogs, Twitter, Facebook, etc), procurando tornar mais eficaz a mensagem política que intervem nos vários segmentos (especializados, etários, esferas culturais, etc) do espaço público externo.

A nível pessoal, confrontado com uma observação mais atenta do seu trabalho e movimentação profissional, quer pela comunicação social quer pelos cidadãos e instituições, o diplomata contemporâneo tende, em especial nas sociedades com serviços públicos mais eficientes, a ser crescente avaliado em função de uma “performance” por objetivos, na sua tarefa de execução da política externa que lhe compete pôr em prática. Em particular, o seu papel de coadjuvação dos operadores económicos, bem como de um conjunto cada vez mais diversificado de interesses estatais e não-estatais com projeção na área externa (ONG, expressões diversas da sociedade civil, academia), obriga-o a uma constante atualização e a uma diversificada capacitação informativa que, muito frequentemente, parece poder conflituar com os ciclos da sua rotatividade entre postos e entre estes e a sua capital – modelo que a experiência consagrou até hoje como relevante, como forma de ser mantida a alguma “frescura” no olhar profissional sobre as realidades externas em que o diplomata opera.

O caso da integração continental, em que um país como o nosso está inserido, merece aqui uma palavra especial. O estabelecimento daquilo que é hoje a União Europeia veio criar uma realidade radicalmente nova, com que os seus Estados membros se vêm confrontados. Por um lado, as instituições comunitárias funcionam como uma estrutura multilateral de natureza regional, onde se processa a concertação de posições nacionais que define a linha coletiva, por consenso ou maioria. Porém, a própria União exerce hoje uma ação externa autónoma, em representação das suas instituições coletivas, em paralelo com as diplomacias nacionais dos Estados que a compõem, que naturalmente prosseguem os interesses próprios de cada um. A coerência entre todas estas dimensões é um desafio da maior importância.

O modelo funcional da União, por seu turno, acaba por ter efeitos na natureza do tecido das representações diplomáticas que esses Estados mantêm entre si, conduzindo a um crescente “downsizing” dessas estruturas. Isso é potenciado pela intensidade dos encontros e comunicações dos responsáveis políticos e técnicos de todos esses países, numa movimentação que passa frequentemente à margem das estruturas diplomáticas bilaterais, bem como pela circunstância do tecido legislativo e os procedimentos administrativos serem cada vez mais similares e transparentes em todos os Estados, dispensando a “leitura” especializada das embaixadas.

Duas outras dimensões da diplomacia tradicional podem ser referidas como afetadas pela existência da União Europeia. No plano da sua proteção, o facto de um cidadão da União poder hoje recorrer aos serviços consulares de outros Estados membros desestimula, de certo modo, a multiplicação das redes consulares nacionais (muitas vezes integradas nas unidades diplomáticas), em especial no caso de Estados de menor dimensão. Também a tendência para posições conjuntas dos Estados da União em algumas estruturas multilaterais, cuja adoção é decidida na coordenação comunitária em Bruxelas, tende a desvalorizar o trabalho das missões nacionais nessas instâncias, com eventuais impactos na sua densidade em matéria de pessoal e estruturas.

Em conclusão, a continuar a ser aprofundada, ou mesmo apenas que preservada no seu modelo atual, a União Europeia vai apresentar um desafio interessante à criatividade transformadora das máquinas diplomáticas dos seus Estados membros.

Se me é permitida uma reflexão prospetiva, diria que tudo parece indicar para que as representações externas bilaterais venham, em geral, a perder algum sentido naquilo que era parte da sua vocação tradicional.

Nas décadas passadas, já se tinha verificado a desaparição da sua função negociadora, avocado por missões ad hoc. Agora, e cada vez mais, parece evidente que as tarefas de observação e informação, em especial na área política, surgem grandemente afetadas na sua valia pela qualidade analítica da informação aberta disponível, ou mesmo pelos serviços de entidades privadas com canais de recolha de dados muito mais eficientes que muitas embaixadas (embora, a disponibilidade de serviços oficiais de “intelligence”, por parte de certos países, continue a ser muito valiosa).

Restam três dimensões onde a função dos diplomatas parece dificilmente substituível.

Por um lado, a proteção e promoção de interesses, humanos ou patrimoniais, do Estado, dos cidadãos ou de entidades privadas. O aumento exponencial das viagens internacionais coloca desafios sérios em matéria de segurança e proteção dos cidadãos e, cada vez mais, a promoção dos interesses económicos (investimentos, comércio, turismo) e da imagem e prestígio dos Estados (cultura, diplomacia pública) se torna importante e, muitas vezes, só pode ser assumida a nível nacional.

Por outro, a função de representação ou presença política do seu Estado perante aquele em que está acreditado. A grande maioria dos países não está integrada nos circuitos de contactos regulares (pessoais ou por comunicações) entre os respetivos dirigentes politicos, pelo que o papel de representante pessoal do chefe do Estado ou da vontade do governo é, muitas vezes, indispensável para o tratamento de certo tipo de questões. A dimensão humana da atividade diplomática permanece um valor acrescentado insubstituível.

Finalmente, alguma mudança se pressente na diplomacia multilateral, onde, ao que tudo parece indicar, residirá muita da decisão futura com impacto na vida corrente dos Estados – e, por maioria de razão, no plano da prevenção e resolução dos conflitos entre eles. Neste domínio, a tendência poderá não favorecer o modelo tradicional do diplomata generalista e, cada vez mais, a função poderá vir a ser exercida por quadros técnicos cada vez mais especializados, em novas “carreiras” diplomáticas a funcionarem em paralelo com a clássica “carreira”. Essa “nova” diplomacia já hoje tem grande expressão e caberá aos Estados saberem compatibilizar a sua existência com o modelo tradicional.

A diplomacia, nas suas variadas formas evolutivas, está aí para ficar. Durará 100 anos? Ninguém sabe, mas a História provou a resiliência dessa “espécie” vocacionada para a simpática tarefa de harmonizar a vida dos Estados e dos povos.

Desafios Estratégicos e de Segurança


Pelas 18.00 horas desta terça-feira, dia 6 de junho, na Universidade Autónoma de Lisboa, na rua de Santa Marta, 56, em Lisboa, terá lugar a 4ª Conferência sobre os Interesses de Portugal no Mundo.

Em anteriores sessões, tratámos dos Eixos da Política Externa Portuguesa, da Europa e da Lusofonia. Hoje, apresentarei Luís Amado, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, que vai falar-nos sobre os Desafios estratégicos e de Segurança com que Portugal se depara, perante uma Europa em crise de projeto, uma relação transatlântica a atravessar um tempo complexo, uma NATO sob tensão em matéria de confiança.

A entrada é livre e é muito bem vindo quem quiser ser nosso convidado, nesta iniciativa do jornal "Público" e da UAL.

Militares


Uma vez por ano, por vários dias e por várias horas, cabe-me dar "instrução" a quadros superiores das Forças Armadas portuguesas. Com a maior sinceridade, essa é uma tarefa que faço com imenso gosto, porquanto é sempre muito gratificante trabalhar com "alunos" que levam o seu curso muito a sério, que têm uma formação de base onde "encaixa" à perfeição aquilo que tenho para lhes transmitir, no tocante às questões da diplomacia e das relações externas. Inicio a minha colaboração nesse novo curso daqui a horas.

segunda-feira, junho 05, 2017

Consultoria


Achei graça ao exercício em que estive envolvido ao final da tarde ontem: falar aos quadros superiores portugueses de uma das maiores empresas do mundo de consultoria e auditoria. É uma experiência interessante ser, por umas horas, "consultor" de quem o é no dia a dia para as maiores empresas portuguesas ou para empresas estrangeiras que operam entre nós. Foi muito curioso procurar dissecar algumas realidades em moldes que pudessem ser úteis ao trabalho muito rigoroso desses profissionais, sobre cujos ombros - e das qualificadíssimas equipas que dirigem - pesa uma imensa responsabilidade na avaliação das "performances" de quantos operam, a nível elevado, nos escalões superiores do nosso tecido económico. Foram algumas horas bem interessantes de apresentação e debate sobre temáticas da vida económico-financeira internacional. (E, para mim, foi também uma novidade estar, desta vez "do lado de cá", a falar a entidades que, no dia a dia das várias empresas com as quais colaboro, encontro frequentemente em, nem sempre fáceis mas sempre inquisitivas, reuniões de exigente auditoria sobre as nossas contas...)

domingo, junho 04, 2017

Em Lisboa, pare, escute e olhe o ruído


Andava muito cansado e, enquanto esperava, na sala ao lado de uma oficina, que me arranjassem o carro, sentei-me numa cadeira e, por instantes, fechei os olhos. Foi então que o som, ao fundo, de uma chapa a ser batida, bem como impactos secos, provavelmente oriundos de um martelo de borrracha no realinhamento de uma direção, despertaram em mim uma súbita onda de prazer auditivo. Não tinha o ritmado do mimimalismo de Philip Glass que um dia me embalara no Barbican (levando-me a sair no intervalo, por queixas de ressonar), mas havia por ali algo que evocava no meu ouvido (talvez mesmo em melhor) uma sessão de música concreta polaca, no S. Luís, a que, só por vergonha, cerca de uma semana antes, resistira até ao fim. Terá sido nesse instante que, embora meio adormecido, acordei pela primeira vez para a fantástica identidade dos ruídos de Lisboa.

Os estímulos auditivos que não resultem de melopeias ou de sonoridades pré-cozinhadas são, de há muito, uma das mais inspiradoras fontes da minha reatividade. E Lisboa, com o alarido mediterrânico – que os nórdicos confundem, insensivelmente, com javardice e falta de respeito pelo sossego dos outros – é um raro oásis (longe ainda de Nápoles, claro) em matéria de impactos dessa natureza. O som “oficial” de Lisboa é, como todos sabemos, o fado, mas, mesmo num registo turístico clássico, o chiar dos elétricos na descida do Ferragial ou a buzina dos cacilheiros sob neblina, bem poderiam equivaler-se-lhe nessa dignidade identitária de cartaz. Antes, no tempo do SNI e do Ferro, era também o gritar esganiçado das varinas, tão incensado na fadunchada primária, que integrava esse património decibélico. Mas ele foi-se com o tempo e com o Pingo Doce.

Verdade seja que os ruídos humanos lisboetas são reportados desde as calendas. Fernão Lopes registou-os na sonoridade literária da sua Crónica, a Rattazzi tomava-os à conta de falhas na educação e nos costumes (preconceitos!), Eça ouviu-os pelos bilhares do Montanha. Até o canto de Fausto, no “Europa, Querida Europa”, fala dessa “algazarra nas ruas”, com um “suave cheiro a sardinhas”. O chavascal é parte da nossa matriz e Lisboa é o palco orgulhoso dessa peça de chinfrim.

Um amigo brasileiro, há dias, deixou-me sem palavras, num ambiente de infernal basqueiro e guinchos de máquinas, no longo concerto de barulheira operária concreta que o maestro Fernando Medina orquestrou, por meses, pela cidade, ao dizer-me: “Você sabe, Francisco, é adorável este vosso Chiado”. Como ele disse isso nas Avenidas Novas, em frente à Versailles, fiquei sem saber se havia de escrever Chiado com maiúscula ou não.

Mas tudo isto, meus amigos, será sempre apenas uma singela gota de água numa realidade hoje com uma riqueza quase inesgotável.

Todas as cidades, como sabemos, têm os seus sons. Questão diferente é selecionar aquelas raras urbes às quais uma forte presença auditiva confere um estatuto identitário próprio. À lembrança vem-me, de imediato, Nova Iorque, com aquela obsessiva e permanente confusão de sirenes de ambulâncias e carros de bombeiros, que alguém um dia chegou a pensar que eram pagos pelo serviço de Turismo da cidade, para lhe sustentarem, no imaginário dos viajantes e cinéfilos, essa típica marca sonora. Mas Lisboa, passe a imodéstia, não fica nada atrás de Manhattan.

O meu interesse por este tema, embora por muito tempo de forma pouco consciente, vem já de muito longe. O ruído lisboeta é, em mim, um eterno fator mobilizador, que me induz a certas atitudes, embora algumas, se acaso levadas até às últimas consequências, eu não garanta que evoluíssem sempre num registo de serena urbanidade.

Recordo-me de, quando vivia perto do Campo Pequeno, em noites de fim-de-semana, ter sido o roncar dos escapes dos motards que, por exemplo, suscitou em mim uma inesperada vocação cinegética. Só não comprei a caçadeira por falta de espaço lá em casa para a guardar.

Nos dias de hoje, na rua da Lapa onde vivo, a desportiva tendência dos carros para aí testarem os limites urbanos de velocidade, traz-me, por vezes, o impulso de complementar a minha reforma com uma atividade de bricolage, onde o uso de pregos e taxas é, como é sabido, imperativo.

E, não raramente, a saborosa diversidade dos claxons, saídos dos SUV a fingir que por aí abundam, guiados por graves metrossexuais de barba, travados no caminho para as start-ups, desperta em mim, nesse tráfico congestionado (e Lisboa tem evoluído para grandes confusões de trânsito, garantindo-se assim já ao nível das grandes cidades) saborosas memórias da sétima arte: mais precisamente uma nostalgia pelos gadgets que Q colocava no Aston Martin de James Bond, capazes de disparar rajadas em várias direções.

Mas aprendi que o ruído lisboeta, paradoxalmente, também convida à reflexão. Recordo-me de jantares em casa de um amigo que vivia no topo de um prédio sobre o qual passavam, na aproximação à aterragem, os aviões. Havia pausas de largos segundos nesses momentos de convívio, tipo “un ange qui passe”, que permitiam instantes valiosos de meditação ou, em alternativa, de concentração em mais umas garfadas.

É, contudo, o ruído humano lisboeta, em todo o esplendor da sua criatividade, que estimula em mim os mais inesperados sentimentos, mesmo que, por vezes, ele tenda a atenuar os efeitos dos hipertensores que tomo.

Quase sem igual no mundo, são os berros das adoráveis criancinhas nos restaurantes onde escolhemos ir ter uma conversa serena. Lisboa tem, nesse domínio, uma magnífica cultura liberal – e ainda há quem se queixe de sermos uma sociedade iliberal! – permitindo, desde a tenra idade, a vocalização do protesto ou da alegria. É uma espécie de aplicação do 25 de abril às creches, socializando a criança ao usufruto do seu inalienável direito à indignação ou à berraria em voz bem alta. Mas, entre nós, o que é mais notável é que os pais cuidam em não guardar essa expressão sonora dos rebentos para o recato egoísta da família, antes a partilham, com imensa generosidade, com a vizinhança, que assim pode apreciar a encantadora espontaneidade infantil. O facto de alguns circunstantes se sentirem tentados a (e cito o que, infelizmente, já ouvi) a “dar um par de bofardos no puto”, também deve ser levado à conta do inestimável efeito de impulso interventivo que é desejável poder suscitar na em nosso redor. A sociedade ou é interativa ou ficamos todos silenciosos de olhos nos iPads e iPhones. Não é disso de que todos se queixam?

A contemporaneidade, contudo, tem sabido trazer, neste domínio, uma generosa oferta sonora, mais high-tech. O telemóvel é hoje um imprescindível instrumento da nossa transparência urbana. O lisboeta típico, como os estrangeiros estasiados se fartam de constatar, dá-nos regularmente o gosto de partilhar connosco, em lugares públicos, diálogos da sua vida pessoal, como informações muito francas, por exemplo, sobre os seus padecimentos de saúde ou as crises existenciais dos conhecidos. Esperimente o leitor ir ler para um lugar público e, ao final de uns minutos, concluirá que lhe são oferecidas pausas divertidas que, tirando-lhe embora o fio à meada àquilo em que estava concentrado, o fará entrar num mundo novo de revelações alheias – excelentes para quem gosta de exercitar sociologia de pacotilha no Facebook.

Outros ainda capricham, nos cruzamentos ou nas filas, em nos fazer ouvir os ritmos “metal” que saem do altifalantes dos seus carros, num volume tão elevado que, às vezes, os incapacita de tomar nota de alguns alguns adjetivos qualificativos com que, muitas vezes sem uma explícita simpatia no nosso rosto, lhes retorquimos essa não solicitada partilha.

Mas os estrangeiros visitantes, ao que me chega, já também cuidam, cada vez mais, de participar no cuidado desse património de sonoridades atípicas. Ao que parece, pelas noites animadas dos hostels, ou em partilhas de Airbnb, surgem cada vez mais interações sonoras entre andares, as quais, com o tempo, acabarão pela certa nas páginas do Correio da Manhã ou nos apanhados noticiosos das urgências.

Esta Bica, que nasceu com uma explícita vocação de servir de guia a uma nova leitura de Lisboa, rompendo com estereótipos e tentando descortinar espaços inéditos de interesse para visitantes em busca de novos nichos de curiosidade, tem aqui um papel indispensável. Dar a conhecer a riqueza dos ruídos da cidade, chamar a atenção para essa Lisboa dos sons pretensamente não harmónicos, indicar mesmo oportunidades de criatividade ativa nessa área para quem nos visita, é levar à prática um imenso dever cívico.

Não deixemos silenciar esse inestimável património decibélico (por onde anda a Unesco, que não viu ainda isto?) que é o ruído urbano lisboeta, não façamos orelhas moucas à necessidade de cultivar essa riqueza e, acima de tudo, não calemos a nossa voz perante a óbvia conspiração que se está a fazer contra o chavascal popular, contra a (tão típica) conversa aos berros em voz alta pela rua, contra a espontaneidade das mães chamando crianças à distância, nos lugares públicos e outras amenidades correlativas. Cuidemos do que é nosso, povo de Lisboa!

Há alguma coisa melhor que isto? Pode haver, mas por cá ainda não se sabe.

(Artigo publicado no nº 1 da revista "Bica")

sábado, junho 03, 2017

Ronaldo

Há algum oportunismo no nosso gozo com os êxitos de Ronaldo. Estava num restaurante com vários ecrans durante os 4-1 dado pelo Real Madrid à Juventus. Todos exultámos com os golos de Ronaldo e com a vitória "merengue". "Nós" tínhamos ganho! E se fosse o contrário? Se o Real Madrid tivesse perdido? Ficaríamos tão tristes como ficámos agora contentes? Claro que não! Se o Real tivesse perdido, a derrota era deles, ser-nos-ia relativamte indiferente. Mas como ganharam, com Ronaldo, a vitória também é nossa.

sexta-feira, junho 02, 2017

Todos os anos, pela Primavera


Todos os anos, pela Primavera - como dizia a peça de teatro Sttau Monteiro - reúne o clube de Bilderberg. E, todos os anos, algum mundo mediático agita-se em torno desse misterioso grupo, a quem são atribuídos poderes à escala global. Sem Bilderberg, o laborioso setor das "teorias da conspiração" (que tem na imagem uma ilustração perfeita) perderia uma adubagem poderosa.

Para alguns, com a legitimidade que cada um tem de pensar o que muito bem entende, Bilderberg representa uma espécie de clube de interesses, à escala global, que procura garantir, por discreta cooptação, que aqueles que revelaram a adesão a um conjunto básico de princípios, podem ser ajudados a assumir funções e, eventualmente, a atuarem em consonância com os objetivos que o grupo se propõe defender. A triagem desses eleitos é feita, em cada país, por alguém em quem o grupo delega a responsabilidade da seleção, na certeza que tem de que os seus critérios essenciais são sempre preservados.

No nosso caso, Francisco Pinto Balsemão representou o papel de « pivot » português de Bilderberg e, nessa função, ao longo dos anos, foi convidando a estarem presentes nas reuniões anuais figuras que tinham já algum passado que parecia indiciar um futuro promissor.

Escrevi, há meses, um texto para a apresentação de um livro de Frederico Duarte de Carvalho sobre este assunto. Dado que o tema, como é da inescapável sua natureza sazonal, voltou "à baila", respigo algo que então escrevi e que, claro, reitero:

"Quase cinco décadas a observar o mundo e as suas instituições levaram-me a alimentar algum ceticismo sobre a capacidade de certos interesses conseguirem mobilizar, como se de uma religião se tratasse, prosélitos que, no nosso caso, vão da ala esquerda dos socialistas a conservadores radicais. Bilderberg, como a Trilateral e outras estruturas desta natureza (porque há algumas outras), o que é que são, na minha visão pessoal?

São foruns onde vigora uma espécie de «template» comum : defesa acérrima da economia de mercado, recusa de receitas económicas estatizantes, sob o cultivo de um pensamento semore muito liberal - na leitura europeia de liberal, não na americana, claro. Durante a Guerra Fria, a profunda rejeição do comunismo e de tudo quanto o pudesse favorecer levou, muitas vezes, à transigência cínica com alguns autoritarismos conservadores. Bilderberg para mim foi e é isso – e não muito mais.

Nas suas reuniões, são ouvidas opiniões informadas, gente intelectualmente quase sempre muito bem preparada, às vezes algumas vozes fora do «mainstream» do clube. Isso permite uma oportunidade única de ter uma imersão total, em escassas horas, num manancial de ideias que, nem por serem direcionadas, deixam de ter grande interesse.

E há um outro aspeto em que Bilderberg tem importância: no «networking», nas redes de contactos e conhecimentos que se estabelecem e promovem nesses encontros. Um bom contacto leva a uma outra conversa futura, às vezes a um negócio, seguramente a uma atualização da agenda telefónica ou de emails."

Nesse texto, expliquei também que divergia do autor referido, quanto à ideia de que Bilderberg promove pessoas para chegarem a certos postos. E acrescentava:

"Eu acho, bem ao contrário, que essas pessoas são escolhidas para irem a Bilderberg porque, na perspetiva de quem as selecionou, eram gente com futuro.

No caso português acho que Pinto Balsemão fez o óbvio : escolheu aqueles que via como «high flyers», enganou-se algumas vezes mas, no essencial, acertou. Porquê ? Porque o nosso «baralho» é pequeno e, por cá, quem tem um olho é rei..."

Escrevo este texto apenas com uma mágoa. É que, ao fazê-lo, sei que estou a alimentar a discussão sobre o assunto, a suscitar novos comentários na escola do "não é por acaso que..." e nada disso tem o menor sentido.

Uma nota final: Francisco Pinto Balsemão deixou de ser o "selecionador" português e escolheu Durão Barroso para lhe suceder.

O Sporting, o Porto e o Benfica

Hoje, fui simpaticamente convidado para ir, com um grupo, ver jogar o Sporting com o Arsenal, em Alvalade, no dia 26 de novembro.  O Sportin...