domingo, junho 11, 2017

Fausto


Tinha então o ar típico de um menino acabado de aterrar em Lisboa, vindo da Angola onde nascera para a música e concluíra o liceu. Projetava uma imensa simpatia, um sorriso sereno que, com naturalidade, construía amizades.

Naquele ambiente universitário atípico, de há quase 50 anos, que era o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina - leram bem, "ultramarina" -, uma escola de formação de quadros para a administração colonial que Adriano Moreira procurava transformar numa incipiente escola de ciências sociais, recordo-me dele se ter integrado muito bem, fazendo mesmo a "ponte" entre os filhos, mais ou menos rebeldes, de uma Lisboa "social" que por ali andavam e a turbamulta associativa que então se divertia a subverter a ordem salazarenta que ainda se respirava em certos setores da casa. Pelos muitos poisos de conversas no Palácio Burnay, à Junqueira, bem como em noitadas da Rua da Paz, uma nova e improvável versão meio anarca da "Casa dos Estudantes do Império", onde imperavam a política, os copos e grandes tainas, construí com ele uma amizade para a vida.

A pessoa que motiva este texto chama-se Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias. Todos o conhecem: é o Fausto, do "Por este rio acima".

Em 1968/69, ambos fizemos parte da mais radical lista associativa que aquela veneranda casa vira algum vez nascer. E ganhámos, numas eleições divertidas, bem coloridas, com gente muito diversa, mulheres lindas, sob uma bandeira programática que fora beber o essencial ao maio parisiense, escassos meses antes. Quem, por esse tempo, leu o (proibidíssimo!) n° 1 da revista "Ibis" sabe do que estou a falar.

A nossa vitória viria a ser, contudo, algo pírrica: semanas depois, o Ministério da Educação Nacional informou que toda a lista eleita fora "não homologada", porque, como era a regra da época, a democracia parava à porta da vontade arbitrária da ditadura. E o ditador, precisamente por esses dias, até mudara: chamava-se agora Marcelo Caetano (esse mesmo, cuja biblioteca esteve ontem no centro do 10 de junho carioca, celebrado pelas autoridades que "abril abriu"). A Associação viria mesmo a ser saqueada, à nossa frente, pelos esbirros do capitão Maltez e o sonho lindo foi adiado, com a raiva a subir.

O Fausto, já por essa altura, compunha coisas musicais bem interessantes, embora ele talvez se reconheça menos numa canção em que se falava de "meninos com olhos de cratera", com letra do João Bettencourt da Câmara, que então gravou num (hoje raríssimo!) 45 rotações. O mesmo Fausto que cantava nos "convívios" da Junqueira, em tardes em que o Tossán e o José Carlos de Vasconcelos declamavam o neo-realismo empolgado das poesias das "notícias do bloqueio". O Fausto que então namorou a Rita Vinhas, a mais bonita colega das nossas tardes do magnífico jardim e da "sala verde".

Dois anos mais tarde (1970/71), o Fausto e eu voltámos a ganhar as eleições para a Associação. E, dessa vez, para alguma surpresa nossa, o ministério não ofereceu quaisquer objeções à lista. Eu era presidente da Assembleia Geral e o Fausto tinha uma posição muito importante, creio que na direção. O ano académico fora muito turbulento. No meu caso, tinha mesmo sido objeto de um processo disciplinar, que me impedia de assistir às aulas (!) e de entrar nas instalações da escola, exceto para fazer os exames das "frequências".

Mas, no ano seguinte (1971/72), voltámos a apresentar uma nova candidatura. E voltámos a ganhar. Só que, dessa vez, o presidente da Assembleia Geral cessante (isto é, eu) recebeu uma carta do Secretário-Geral do ministério, num tom muito formal, informando "V. Exa. de que a lista vencedora nas eleições para os corpos gerentes da Associação Académica do ISCSPU foi homologada por despacho de S. Exa. o Ministro da Educação Nacional". Tudo igual ao ano anterior? Não. O texto não acabava aí e acrescentava "... , com exceção dos senhores Francisco Manuel Seixas da Costa e Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias, que estão superiormente impedidos de tomar posse".

A "medalha" de termos sido "não homologados" pelos dois ministros da Educação da ditadura já na sua versão marcelista, Hermano Saraiva e Veiga Simão (este último que o destino me levaria a cruzar à mesa do mesmo governo, um quarto de século mais tarde), ninguém nos tira, ao Fausto e a mim.

O Fausto, além de se dedicar ao ensino, teve a carreira musical brilhante que o país conhece. Construíu alguns dos álbuns mais notáveis da música portuguesa contemporânea e, amizades à parte, faz hoje parte desse (julgo) indiscutível "top five" que integra com Sérgio Godinho, José Afonso, José Mário Branco e Jorge Palma.

Lembro-o hoje aqui porquê? Porque o Fausto tocou ontem na minha terra, em Vila Real, nas comemorações do 10 de junho. E eu, que um dia vim de Paris a Lisboa expressamente para ver e ouvir uma sua apresentação, estava ocasionalmente em Vila Real, a 400 metros do espetáculo... e não fui, porque não sabia!

Um destes dias, quando me apresentar ao serviço no "almoço das quartas", no Lumiar, com o Fausto, o João Paulo Guerra, o "naval" Paiva de Andrade e outras gentes, lá vou eu ter de fazer a minha "mea culpa", selada com o "maltesiano" líquido escocês que, além da amizade, de há muito nos une os gostos.

5 comentários:

Anónimo disse...

Senhor Embaixador

Eu saí do ISCSPU antes do tempo que refere (estive lá entre 62 e 67) e só fui colega do Fausto no mestrado em relações internacionais no ISCSP já no início dos anos oitenta.
Mas que saudade da sala verde da Junqueira (no meu tempo também aí se namorava mas, principalmente, estudava)

José Neto

dor em baixa disse...

Sou de opinião que Fausto e José Afonso constituem uma dupla à parte, acima de todos os outros. Fausto trabalha detalhadamente as suas obras, José Afonso era menos cerebral, mais emotivo e mais variado (baladas de Coimbra, canções de intervenção, canções de denúncia, temas infantis, temas de raiz popular, poemas líricos, poemas surrealistas, desculpem se me esqueci de algum género), oferecia uma voz com timbres diferenciados e nuances geniais, por isso o considero o n.º 1.

Anónimo disse...

Serão cinco sim, mas com Palma substituído por Adriano, que era um intérprete-autor.

Palma surge mais tarde do que eles, que cantaram e andaram todos juntos.

Fausto tem um disco, por este rio acima, que faz parte de qualquer lista séria de melhores álbuns do mundo. Depois tem grandes/excelentes álbuns/canções. Mas o topo, o topo é mesmo o Por este rio acima, intocável e imprescindível enquanto conjunto.

Sérgio Godinho tem quase uma mão cheia de álbuns imprescindíveis (OS Sobreviventes, Pré-Histórias, Campolide, Pano cru, Campo de Boca), mas repete-se há anos, desde 1982, diria. Desde aí, boas canções, mas sem o génio desses primeiros álbuns.

DE ZMBranco talvez só o último Resistir é Vencer não entre nos imprescindíveis.

Zeca Afonso, de que gosta menos, é absolutamente imprescindível, de uma ponta à outra. Não se deita nada, nada fora, nem quando foi panfletário e engajado. É só o melhor autor/cantor do mundo (há outros nessa lista de um, mas perceba-se o que digo). E peso as palavras. Como dizia um cantor espanhol, é o mais moderno dos modernos, mais moderno que Dylan, mais moderno que toda a gente.

Luis Filipe Gomes disse...

Quando nomeamos sempre esquecemos: Adriano Correia de Oliveira mas ainda os muito vivos Francisco Fanhais, Luís Cília, Manuel Freire, Tino Flores...

Anónimo disse...

Luís Filipe Gomes, Até há mais, mas o embaixador referiu um top five. Adriano entrará, os outros não.

Poder é isto...

Na 4ª feira, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal que desde há quatro anos faço no Jornal Económico com o jornalista António F...