Por muitos anos, não fui sócio do Grémio Literário. Sucessivas estadas no estrangeiro e uma vida ocupada quando em Lisboa não me dariam para gozar, com calma, as delícias da Rua Ivens, pelo que, por muitos anos, fui apenas um visitante episódico daquela bela casa.
Um dia, já não sei bem quando, deixei cair, numa conversa com o Luís Santos Ferro, essa minha qualidade de não-sócio. “O quê!? Você, um queiroziano de mérito, não é dos nossos?”. O “queiroziano de mérito” tocou-me a corda da vaidade e lá entrei eu para associado do Grémio, com a absoluta certeza de ter sido proposto por ele.
Quando e onde eu tinha conhecido o Luís Santos Ferro foi sempre, para mim, um mistério. Lisboa é uma aldeia feita cidade e, tendo nós muitos amigos, interesses e tarefas que se cruzavam, terá sido algures por aí. O importante é que em boa hora o conheci, estabelecendo com ele, desde o primeiro minuto, uma forte empatia.
O Luís era a boa disposição feita pessoa, que recordo com aquele sorriso franco, que se abria quando nos encontrávamos. Divertido, com histórias magníficas, amigo do seu amigo, sempre disponível, com uma cultura multifacetada, diziam-me ser uma extraordinária mais valia no Conselho Literário do clube. “Foi o Eça quem me trouxe para o Grémio. Só estou cá por causa dele”, disse-me, um dia.
E assim era. Com o prolífico arquiteto Campos Matos, Luis Santos Ferro, um engenheiro que foi diretor da Fundação Luso-Americana, era, no meu modesto entender, das pessoas que, em Portugal, mais sabia sobre a vida e obra de Eça de Queiroz.
Grandes “estudos” fizemos para tentar perceber, à luz da interpretação de pequenos pormenores, em que casa da Rua de S. Domingos à Lapa “viveu” esse “distinto sportsman” que, em “Os Maias”, se chamou Dâmaso Salcede. Figura a que o Luís sempre se referia como “o seu vizinho”, porque moro por lá.
Quando fui para embaixador em Paris, cidade onde havíamos de nos encontrar em belas jantaradas à roda da mesa de gente amiga, o Luís tinha um pedido a fazer-me: procurar substituir a já ilegível placa colocada no local onde antes estivera a casa em que Eça tinha morrido, colocada, nos anos 50, pelo meu longínquo antecessor, o embaixador Marcello Mathias. Empenhei-me, falei com autoridades e proprietários, e, um dia, para seu imenso contentamento, consegui levar a cabo aquilo que o Luís me pedira.
Mas fiz mais: num aniversário do Eça, ainda antes de abandonar a embaixada, consegui instalar uma placa comemorativa na primeira casa em que o escritor tinha vivido, logo que acabado de chegar a Paris. Foi o Luís, claro!, a primeira pessoa a quem dei conta desta nova iniciativa de um diplomata que “conspirava” pelo escritor. “O Altíssimo nos agradecerá”, sendo que o “Altíssimo” era o Eça, porque sempre soube que o Luís era pouco dado a outros.
Há semanas, num qualquer evento, cruzei-o nas salas do Grémio. “Estive bastante doente, sabia?”. Não sabia e, sem estar a mentir, disse-lhe que, pelo contrário, o achava com excelente aspeto. “Vivo do aspeto”, retorquiu-me, com uma das suas costumeiras gargalhadas. Mas reparei que aquelas escadas já lhe estavam a ser pesadas.
Recebi há pouco a notícia de que o Luís Santos Ferro tinha morrido. Fiquei muito chocado, provavelmente até bastante mais do que a nossa limitada intimidade justificaria. Só que o Luís era já uma parte integrante e querida do mundo de amigos e conhecidos que tenho vindo a criar ou recriar, desde que, faz amanhã sete exatos anos, regressei em definitivo a Lisboa.
Agora, para mim, o Grémio, sem ele, passa a ter metade da graça. As conversas sobre o grande Eça vão tornar-se numa caturreira enfadonha. O nosso sempre adiado almoço com o arquiteto Campos Matos nunca mais se fará.
De que terá morrido o Luís? Ainda não sei. Mas, se acaso lhe tivesse perguntado sobre aquilo de que padecia, ter-me-ia talvez respondido, imitando o sentenciosismo do Conselheiro Acácio, “não há doenças, há doentes”. Desta vez, aos 80 anos, o doente era ele. Adeus, Luís!