Um dia consegui juntá-los a uma mesa da Gomes, na
ingénua crença de que, por tê-los a ambos como amigos, haveriam de se dar bem.
Erro crasso. O José cedo arvorou a machista arrogância vilarrealense e sentiu-se
deslocado no registo intelectual das referências em que a conversa descaía.
Logo que pôde, abalou para a zona do balcão mais próxima da máquina de cortar
fiambre, posto de observação onde há décadas se sentia confortável. Ao que me
lembra, o Sérgio nem lhe havia passado cartão, absorvido que estava no
chamamento constante de conhecidos, saltitante no seu gesticular frenético,
sublinhado pela voz anasalada que enchia a sala.
Há mais de quinze anos, pelo Natal, desapareceu
tragicamente o Sérgio Moutinho. Neste último Natal fomos, uns poucos,
despedir-nos do José Araújo, traído pelo coração agitado. Deixámo-lo em Santa
Iria, perto do Sérgio. Que mais havia de comum entre ambos, à parte a
circunstância – irrelevante para o leitor – de serem ambos meus amigos ? A
pressa da vida.
O Sérgio era um furacão em pessoa, a ousadia
chocante no comportamento e na palavra, a incessante procura da afectividade,
sem baias nem temores. Na minha memória, não consigo ter dele um retrato
estático, vejo-o no movimento de um filme, a chegar ou a partir, sem tempo para
paragens, sem paciência para ouvir o irrelevante e o tonto, fosse ele ideia ou
pessoa. Tinha a pressa do mundo, a vertigem de viver intensamente, no fio da
navalha – como a navalha que haveria de matá-lo numa noite trágica na
Anatólia.
O José Araújo parecia ser o seu oposto. Pousava
pelas esquinas da vida com um fácies vincado e grave, onde às vezes aparecia um
esgar equívoco, sempre apoiado na frase curta e no gesto cortante. Mas quem o
conhecia sabia que naquela cabeça, com o cabelo branco a subir sobre a samarra,
vivia um adolescente à procura incessante de um segundo futuro, que ele sentia
cada vez mais atolado nas complicações do presente. A vida do José foi a da
viagem adiada, a tentativa de fuga a uma rotina que teimava em lhe atar as
mãos, a mitificação de mundos ideais onde, chegado que fosse, tudo seria fácil,
tudo correria a preceito para a realização dos seus sonhos, uma espécie de
Pasárgada, logo ele que nunca lera Manuel Bandeira.
Embora muito diferentes, com ambos eu tendia a
cometer o erro pateta de os tentar trazer à minha leitura da realidade, fazendo
o elogio da serenidade, pregando a necessidade de ponderação e dizendo-lhes
para pararem um pouco para pensar. O Sérgio achava-me, cada vez mais, um
burguês acomodado. O José desconcertava-me, dando-me sempre razão de forma
irónica, intimamente ciente que eu jamais o compreenderia.
A minha última discussão com o Sérgio foi sobre o
seu - para mim, excessivo - empenhamento em favor da causa curda, questão que,
para alguns, poderá não ter sido alheia à sua morte violenta na Turquia.
Recordo-me de o ter alertado para os erros profissionais em que poderia estar a
incorrer, pedi-lhe a calma e a moderação que eu, no fundo, sabia que ele nunca
iria ter. Ria-se de mim e dos meus cuidados, como ele sabia fazê-lo, sem
qualquer acrimónia, na certeza de que a nossa amizade era intocável.
O José falou-me, há meses, no seu projecto de ida
para o Brasil. Era o renascer da sua ambição de criar um museu de automóveis
antigos, ideia que sempre me pareceu desenhar de forma irrealista, como tantas
outras iniciativas que eu lhe ouvira no nosso passado de longa convivência.
Tentei mostrar-lhe os riscos de uma deslocação sem preparação cuidada, dos
imponderáveis de um negócio sem apoios sólidos. Reagiu com impaciente
complacência, com um “pois, mas assim ninguém chega a sítio nenhum!”. Agora,
dizem-me, tinha já viagem marcada e afirmara tencionar procurar-me, quando
chegasse ao Brasil.
Hoje pergunto-me, simplesmente: que direito temos
nós de tentar atrasar a pressa dos sonhos que fazem as vidas?
(Publicado no “Notícias de Vila Real” em 28.12.04)