Mário Soares, então líder da oposição, tinha acabado de participar numa reunião da Internacional Socialista, de que era um dos vice-presidentes. Ciente do seu dever de acolher um ex-primeiro-ministro, o embaixador fora buscar Mário Soares e Maria Barroso ao hotel e, na viatura oficial da embaixada, com um jovem diplomata, conduzia-o agora de volta ao aeroporto.
O embaixador era um diplomata à antiga. Criado na ditadura e pouco sossegado com o novo regime, olhava os socialistas como "avis rara". Claramente, apreciava a coligação conservadora no poder em Portugal, nesse início dos anos 80 do século passado. Mas, com sentido de Estado e do lugar que ocupava, colocara-se à disposição de um antigo primeiro-ministro. Soares estava satisfeito e foi simpático com o homem, que, intimamente, devia reconhecer que se tinha comportado como um bom profissional.
Apenas para fazer conversa, Soares inquiriu:
- O senhor embaixador conhece a China? Daqui a duas semanas, vou a Pequim. É a primeira vez que os chineses convidam a Internacional Socialista para uma visita e, digo-lhe, fico contente em poder ter esta deslocação. Estou com uma grande curiosidade sobre a China.
- A China é muito importante, de facto, retorquiu o embaixador, em tom tipicamente formal. Conheço razoavelmente bem a China. Tem prevista alguma ida a Nanquim?
Soares não tinha ideia de que Nanquim estivesse no programa.
- É pena, porque se fosse a Nanquim, por esta altura, veria os campos de flores, que são magníficos.
Mário Soares não pareceu muito entusiasmado com a eventual extensão floral da sua visita. E, sobre o tema, nada disse. Mas, nem por isso, se calou o embaixador.
- O senhor doutor vai-me perdoar, mas, indo à China, posso dar-lhe um conselho?
- Ó senhor embaixador! Por quem é! Claro que sim, tanto mais que já me disse que conhece a China e os chineses.
- Então, se me permite que lhe diga, deixo-lhe um alerta para a sua conversa com os chineses: não lhes fale de política!
Diz quem assistiu que o carro pareceu atingido por uma lomba que lhe afetou a suspensão. Soares explodiu:
- Não lhes falo de política? Ora essa, senhor embaixador, não tenciono falar-lhes eu é de outra coisa!
E Soares, farto da conversa do homem, entrou num quase mutismo até ao aeroporto.
Despedido o político português, o embaixador, que sempre usava a expressão "mais uma lebre corrida!" quando deixava aquela capital algum visitante português de peso, virou-se para o jovem diplomata e comentou:
- Este Mário Soares ainda está muito "verde". Falar de política aos chineses, imagine você!
O jovem não comentou o comentário do chefe. Estava a começar a carreira e, nela, o que verdadeiramente se pensa só pode começar a ser dito a partir de certa altura. Há um tempo para tudo, até para criticar as "chinesices" de certos embaixadores. Foi isso que sempre "li" por detrás de alguns silêncios, aparentemente respeitosos, dos muitos colaboradores que tive...
5 comentários:
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Momentos de leitura muito agradáveis...
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Oslo?
:-)
ZP Fafe
Oh!.. mas que crónica deliciosa e bem humorada.
Só mesmo saída de alguém com tantas vivências e uma enorme capacidade de descrição dos acontecimentos e pelos vistos uma memória de elefante.
Já dei hoje uma boa risada, com aquela saída à Mário Soares, com o devido respeito.
Olha com quem o dito cujo embaixador estava a lidar...
Não digo que tenha tido uma vida sempre fácil, mas ter enveredado por uma carreira de diplomata, deu-lhe esta grande capacidade e possibilidade de somar, presenciar factos e todo o tipo de acontecimentos.
Hoje relata-nos esses acontecimentos de uma forma que eu chamaria de "Contos de um Diplomata", assim e seguindo o modelo de Miguel Torga.
ARPires, Pode entreter-se também, com ficções, por exemplo, das "Cenas da Vida Diplomática" e de "Salve-se Quem Puder", ambos de Lawrence Durrel. Tenho-os em edição relativamente recente da Ulisseia - mas talvez já não existam nessas edições.
Nuno de Magalhães
Nuno de Magalhães, obrigado pela sugestão.
Vou ter em linha de conta nas minhas leituras de futuro.
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