Vivi na cidade que hoje o "Diário de Notícias" diz ser a mais cara do mundo. E, então, era bem barata. Bom, era barata porque não havia nada para comprar...
Foi em 1982 que fui viver para Luanda. Não por escolha minha, mas porque o MNE assim me impôs, como já me tinha imposto a minha anterior ida para a Noruega. O contraste entre ambas as experiências, como se imaginará, não podia ter sido maior. A guerra civil assolava então Angola. Da meia-noite às cinco da manhã, havia "recolher obrigatório". Depois dos jantares, tinhamos de nos despachar para chegar a casa. Os diplomatas podiam obter um "passe" para viajar pela cidade por essas horas noturnas, mas o risco de encontrar as patrulhas armadas, de "kalash" e garrafas de cerveja à mão, era demasiado para valer a pena arriscar. Não me lembro de uma única noite sem tiros, nos quase quatro anos que por lá passei.
Luanda era uma espécie de "ilha". Por razões de segurança, só algumas dezenas de quilómetros de estrada para sul eram frequentáveis, até à barra do Cuanza, à reserva da Kissama e à praia de Cabo Ledo. Para norte, podia ir-se até ao Cacuaco e pouco mais, aí uns 20 quilómetros. Para leste, viajava-se até Viana, ainda mais perto. Mas, também, para quê ir para aí, subúrbios sem graça e alguns riscos? Em todos os casos, o cenário era comum: estradas esburacadas, fruto do descaso, de serviços públicos desorganizados. Aquele era então o país do gerúndio. Com a desculpa da guerra, as coisas iam-se fazendo. Às vezes, nem isso.
O hotel onde me alojei pelos primeiros quatro meses tinha um preço ridículo. Mas, também, uma qualidade de serviço a condizer. No restaurante normal, no andar do topo, a comida era apenas sofrível. Caricaturávamos: arroz com peixe frito ao almoço, peixe frito com arroz ao jantar. Por um pouco mais, mas apenas "por gentileza" da direção do hotel (onde andarás tu, meu caro Zé Mário?), comia-se no "grill", uns ligeiros furos acima da cantina do topo, mas onde o "tout Luanda" adorava abancar. Aí, o Smith, o Sambo e outros sorridentes "camaradas" (todos se tratavam assim, por esses tempos) atenuavam, com a sua simpatia, as carências de um país que sentíamos em guerra consigo mesmo.
Lojas? O Fernando Valpaços vendia artesanato, algumas casas tinham as coisas mais inimagináveis e imprestáveis. Quando, numa loja, se pretendia comprar algo à vista, lá vinha quase sempre a frase: "Não, camarada, não vendemos, aquilo é só para encher montra". Na única livraria: alguma literatura e história angolana, coisas soviéticas traduzidas, o "Avante!" com semanas de atraso. Nem um jornal português. Nem a venerada "A Bola"! Às vezes, corria a notícia: "está a sair" alguma coisa! E lá ia meia Luanda comprar buchas para parafusos ou rolos de cordas ou blocos de papel branco. Precisávamos disso? Claro que não! Mas, como "estava a sair"... Ainda hoje tenho buchas coloridas de Luanda!
A vida social fazia-se na casa uns dos outros. Todos partilhavam o que tinham, o que lhes chegava: de alheiras a whisky, de queijos a champagne, de peixe que alguém trouxera da baía a paté vindo de Paris, de chouriço espanhol a latas de atum. Havia ainda, nos mercados populares, menos baratos, produtos agrícolas, legumes vendidos aos "montinhos" - batata, cenoura, cebola, tomate, etc. E alguma fruta, não muito variada. Deve haver pouca gente mais simpática do que eram as quitandeiras desses lugares de Luanda, riso franco, muito branco, nas caras negras, vivendo as suas carências com a alegria possível. Peixe ia-se arranjando, mas, às vezes, era mais fácil conseguir lagosta (no excelente Mário, em Cabo Ledo, para quem um dia andei à procura de facas "de escalar", em lojas do Cais do Sodré) do que frango ou peru. A carne era o mais difícil. Traziamo-la nas escassas idas a Lisboa, em pequenas arcas frigoríficas. Chegámos a montar o seu fornecimento vindo do Zimbabwe, num voo TAP que chegava antes das cinco da manhã. E abandonámos a compra de carne de porco na ilha de Luanda: sabia a peixe, com que eram alimentados os porcos...
Ah! Havia a loja diplomática, a "Angodiplo", onde os preços eram mais elevados, mas isso ainda era o menos: os fornecimentos é que eram um "happening". Tanto podia haver trinta espécie de molhos ingleses, como faltar o sal, o azeite ou... o café. Para escapar aos "esquemas" ou à ciclotimia comercial dessa loja, onde, por semanas, as prateleiras chegavam a ser um deserto, mandávamos vir de Lisboa, numa muito atípica mala diplomática, da "Casa Bom Dia", na Infante Santo, um pouco de tudo: de ovos a açúcar, de leite a pilhas, de azeite a lâmpadas, de arroz a ... café! E, claro, para mim, jornais e livros. A chegada semanal da "mala", grandes volumes selados, que se recuperavam a horas muito matinais no aeroporto (deixá-los lá por muito tempo era garantia de ter "mala perdida"...) era um momento de gáudio. Recordo para sempre, dias após a minha chegada, a voz jubilosa do então conselheiro da embaixada, gritando pelos corredores. "La valise est arrivée!". O seu posto anterior fora Paris...
Luanda estava então longe de ser a cidade mais cara do mundo. Mas a vida era muito, mesmo muito, complicada. Porém, éramos novos, aí fizmos grandes amizades para sempre, tivémos experiências únicas. E, de facto, éramos felizes. É por isso que as memórias desse tempo também o são.
12 comentários:
Pedindo-lhe já desculpa pela meu sujo arremesso paternalista de quem ainda não perdeu os tiques colonialistas, parece que outra coisa que também é bastante cara em Luanda é a liberdade de associação e de expressão. Há, até, quem esteja a morrer à míngua de tão preciosos alimentos. Mas isso são coisas de somenos importância. Falemos de lagosta, pois...
Os angolanos (e muitos africanos como os vizinhos Congos e Ruanda e outros) ouviam que sofrer uma guerra não era muito mau, até pode ser bom, porque a própria Europa é tão civilizada porque teve a as grandes guerras primeira e segunda, mais a dos 30 anos mais a dos 100 anos, etc.
Os angolanos conheciam a par da história do 1º ao último rei de Portugal, e
dos vários rios do Tejo, Minho etc. toda a história da Europa com as suas grandezas e desgraças.
Agora isso da fome, aguenta-se bem, pergunte-se ao "Luati".
Grave é se houver crianças lá em casa e como no caso daquela Luanda da guerra deve ter sido do piorio.
Em Luanda do "meu tempo", a palavra fome, nem vinha no dicionário.
Assº Retornado
Vivi em Luanda por pouco mais de um ano e já antes dos tempos que retrata. Ainda me lembro dela como a cidade com as pessoas da, pelo menos aparente, felicidade mais espontânea que encontrei. Como Catinga, também não me esqueço que se continua a morrer pela liberdade naquele País que tanto tem.
Por favor! Não venham com discursos do "antes da independência é que era bom!". Reservem essa prosa para a caixa de comentários de "O Diabo"...
... mas escrevam à vontade sobre a falta de liberdade - desde que não sejam as mesmas pessoas que estejam saudosas do colonialismo, da PIDE/DGS e da OPVDCA, está bem?
Sr Embaixador, não me parece que tenha havido aqui elogios ao tempo da 'outra senhora'.
Estes tiques neocoloniais relativamente a Angola levam a pensar que o que trazem sempre é água no bico...
Porque não falam de Moçambique ou da Coreia? Não têm casos? Ou os "interesses" não andam por lá?...
Por mim não tenho dúvida de falar de lagosta que, por cá, não é tão gorda mas tem o sabor a maresia que não há lá!
antonio pa
Conheci bem essa Luanda. Deixei-a em Outubro de 1977 (dia 5) em situação dramática. Antes tinha havido o 27 de Maio, a tentativa de golpe de estado de Nito Alves e Sita Vales, que fez correr muito sangue e continua hoje (e continuará) a fazer correr muita tinta – há muito coisa por explicar por parte das autoridades angolanas. Eu e alguns outros portugueses (entre os quais o major Costa Martins, já falecido) e outros angolanos fomos acusados de termos sido os "mentores intelectuais do golpe" e, claro, fomos todos – um a um – presos e mais tarde, os que tinham a nacionalidade portuguesa, expulsos. Decerto que em 1982 ainda terá ouvido na embaixada ecos desses tempos dramáticos. Um funcionário da embaixada, Carlos Alberto Rio-Bom (por sinal colega meu dos bancos de escola), foi visitar-nos à prisão. Graças ao empenho da embaixada, meses mais tarde, acabámos por ser expulsos. Saímos directamente das celas para o aeroporto.
Por essa altura eu morava era ali perto do Trópico, um pouco mais acima, no então (antes da independência) Largo Maria da Fonte. Foram tempos de escassez de tudo. Tudo faltava. E o que havia, quando havia, era racionado. Eram filas para tudo. Aliás, muitas vezes metíamo-nos nas filas sem sabermos a que se destinavam. Se havia fila para alguma coisa necessária era… e lá íamos nós p’ a fila. Só a utopia e o sonho é que eram aos molhos. Íamos muitas vezes à ilha pescar para a seguir comer.
Também conheci a Luanda dos outros tempos. A Luanda dos cinemas-esplanadas, dos mercados fartos, dos polícias sinaleiros, dos desfiles de Carnaval na Marginal, da Barracuda na Ilha, do Polo Norte, a Luanda da florescente Universidade. Fui, aliás, estudante na faculdade de Medicina criada e dirigida superiormente por um ilustre Vila-realense, o grande professor Nuno Grande – democrata, homem de uma elevada formação humanista e que também já nos deixou e a quem Vila-Real (e já gora Luanda) deve uma homenagem. A propósito, o Sambo a que se refere no texto não era um jovem negro recém-formado em medicina e que mais a tarde foi vice-ministro da saúde?
Tenho saudades de ambas as Luandas. A do tempo colonial e a dos tempos revolucionários. Em ambas era um jovem feliz e com sonhos. Como diz o Embaixador, por isso, “as memórias desse tempo também o são”.
Então e a Livraria Lello?
Estou confuso: nuns dias, falar das crises políticas na Guiné-Bissau é um ato paternalista condenável; noutros, pode-se falar à vontade da falta de liberdade em Angola? Então, aí não estamos a meter-nos em assuntos de estados independentes e soberanos? Ou isso é só quando os guineenses andam aos tiros uns aos outros?
Penso que há uma grande "censura" de uns e de outros quando se fala de Luanda ?!
há sempre que ter cuidado...
mas podemos sempre ouvir a linda canção do Vitorino, se ninguém se importa ?!:
https://www.youtube.com/watch?v=kxi0NAAgqD8
https://www.youtube.com/watch?v=na0d1VV-mVE
Peixe espada frito com arroz, quando havia, era dia de banquete. Ou só o arroz, ou só o peixe também alegravam o estômago.
E ainda que não houvesse nada para se comer - e muitos e muitos dias assim houve - havia alimento para a alma: havia o Sonho. Sonho grande, sonho enorme. Migalhas eram muito. Fartura de Esperança não faltava nunca. Que tempo tão feliz, aquele "meu" tempo!
Mas nada é eterno, só enquanto dura ...
Saudações.
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