sexta-feira, janeiro 17, 2020

O Portugal dos cafezinhos

Sai um cafezinho, bem cheio, p’ró senhor Madureira!” “Aquele Trump, só a tiro!” “Eu cá, acho que a história do gajo do Irão está mal contada...” “E ninguém fala de Israel, que esteve por detrás daquilo tudo?” “Você absolvem os aiatolas, mas aquilo no Irão é uma ditadura!” “Está bem, está, mas se fôssemos matar todos os ditadores, nunca mais se acabava...” “Então e o Trump não andou aos beijinhos com o maluquinho da Coreia, o das bombas?!” “Os americanos é para o lado que lhes dá mais jeito. Tanto apoiam ditadores, como os perseguem.” “E o Putin? Está ali, está para ficar para sempre!” “Às tantas, se não criar mais chatices, até é bom que fique”. “Viram a entrevista da engenheira de Angola? Aquilo é que é uma santinha!” “Da Ladeira, digo eu!”. “Sorte para logo, ó Leitão! É bom ser do Belenenses, nestes dias!” “De qual Belenenses. Agora há dois, não é?” “Mau, mestre! Lá começam as provocações”.

A coreografia dos cafés, dos croissants com fiambre, da meia de leite, da torrada “em pão de forma, com manteiga só de um lado”, do pingado “ali para a senhora dona Amélia”, foi abafando a sociedade das nações em que aquele espaço se tinha transformado, por minutos, esta manhã. A conversa já ia no futebol, único tema em que, em geral, o lado de dentro do balcão se sente tentado a intervir, em tudo o resto patrão e empregados só se autorizam alguma exclamação ou contribuem com esgares de leitura não unívoca. Quando saí para a rua, a violência doméstica do Armando Gama começava a aceder ao “hit parade” dos comentários. A menina Adelaide, que chegava para o seu queque tradicional, diria alguma coisa sobre o tema?

É este o Portugal dos “cafezinhos”. Gosto imenso deste país lisboeta de bairro, de quem conhece o outro mas não muito (e, se calhar, ainda bem), dos “vizinhos” de quem não sabemos o nome mas que há anos cumprimentamos (e de quem passamos a íntimos, se cruzamos na praia ou no estrangeiro), das sorridentes cumplicidades implícitas com algumas pessoas (quase sempre, por inferência intuitiva), mas também das antipatias nunca explicadas (“não gosto da cara daquele gajo, pronto!”). Lisboa é imbatível!

O Norte Desportivo


Ontem, por razões óbvias, lembrei-me muito de “O Norte Desportivo”. Era um jornal portuense retintamente portista, num tempo - anos 50 e 60 do século passado - em que os émulos de Lisboa não assumiam claramente as suas cores afetivas, embora toda a gente soubesse que “A Bola” era maioritariamente benfiquista, que no “Record” se exultava com as vitórias do Sporting e que “O Mundo Desportivo” tinha de tudo um pouco, desde os dois rivais lisboetas ao Belenenses.

Joaquim Alves Teixeira era o diretor e, dizia- se, o grande redator de “O Norte Desportivo”, um jornal que tinha a interessante particularidade de ter uma edição ao final da tarde de domingo, que trazia os resultados das partidas. Estas tinham lugar, impreterivelmente, às três da tarde de domingo. A variedade de dias e de horas, por que, nos dias de hoje, se distribuem as jornadas futebolísticas, foi o resultado de uma deriva progressiva, muito motivada pelas transmissões televisivas.

Quem andava nessa altura pelo Porto tinha, nos domingos, a opção, mais barata, de ir saber os resultados “da bola” (como então se dizia muito) junto à porta de “O Comércio do Porto”, nos Aliados, onde, num papel afixado, estava quantificada toda a jornada, logo depois das cinco da tarde. Muitos ficavam por ali em grupo, a comentar.

Outros acabavam por descer para a Praça, esperando, junto ao Imperial, pela edição da “folha” de Alves Teixeira, que por ali chegava um pouco depois das seis, com a tinta ainda por secar, sujando as mãos dos leitores. O jornal, que nem era caro, lia-se num ápice, porque era pouco dado às “literatices” dos colegas de Lisboa.

Eram muito curiosos os relatos ali escritos sobre os jogos principais. Ao ler essas crónicas, notava-se que eram feitas pela cumulação sequencial de textos ditados pelo telefone, todos os cinco minutos, que iam sendo de imediato compostos pelos tipógrafos, para não atrasar a saída do jornal. Às vezes, as coisas acabavam por não “rimar” umas com as outras, o que tornava as crónicas algo divertidas.

Durante anos, Alves Teixeira tinha um mote regular: apelar ao regresso ao Porto de Yustrich, um disciplinador treinador brasileiro, que tinha dado algumas alegrias ao clube das Antas. Esses tinham sido também os tempos de Jaburu, um excelente jogador, também brasileiro, em quem se dizia que Yustrich batia. Era uma coisa quase certa: sempre que as cores azuis entravam em declínio num campeonato, o que então era vulgar, lá vinha ele com a ideia do retorno do treinador.

Um dia, Yustrich acabou mesmo por vir. E foi um fracasso. 

Dificilmente se é feliz duas vezes no mesmo sítio.

quinta-feira, janeiro 16, 2020

Notícias da bola


Por alguma razão, o meu nome vai surgir, nas horas mais próximas, associado por aí ao mundo do futebol, como alguns irão notar. É a vida, como dizia o outro!

Aproveitemos então o ensejo, com toda a tranquilidade, para exercitar um pouco a memória.

Gosto muito de futebol, desde que me conheço. O meu pai levava-me, em miúdo, ao campo do Calvário, onde o Sport Clube de Vila Real - o clube mais antigo de Trás-os-Montes, que, daqui a pouco, festejará o seu centenário - disputava então, em regra, a segunda divisão, antes do destino o ter feito cair, inexoravelmente, para a terceira e depois para os distritais. (Ficou famosa, por ali, uma frase lançada um dia por um adepto, muito entusiasmado mas pouco realista, quando, a dez minutos do fim de um jogo, até então teimosamente empatado, a nossa equipa marcou finalmente um golo: “Vamos à dúzia!”)

Na minha infância e juventude, as vitórias do “Sport Clube” (como se dizia em minha casa) animavam a cidade, em especial se fossem sobre o Chaves, à época o seu grande rival. Qualquer feito notório do clube era festejado com receção no Alto de Espinho, o ponto mais elevado da estrada que liga Vila Real a Amarante. Autoridades e “forças vivas” iam receber os jogadores e diretores, imagino que com cerimónia posterior nos “paços do concelho”, com direito a discursatas gongóricas.

Na cidade, os adeptos do Benfica eram dominantes. Depois, vinha o Sporting, com o Porto então num distante terceiro lugar, em matéria de fãs. Esses eram os dias em que a liderança no futebol português se decidia no “derby” de Lisboa. “A Bola” e o “Record” dominavam em vendas, com “O Norte Desportivo”, do infatigável Alves Teixeira, a defender as então muito minoritárias cores das Antas. O meu pai “levou-me” cedo para o Sporting e por aí fiquei, sempre com imenso gosto e orgulho, por muito que a posterior carreira do clube pudesse apontar noutro sentido.

Fui sempre um medíocre praticante de futebol, desde a escola primária. Tinha a “mania” que era defesa lateral direito, mas algumas experiências, ainda em Vila Real e, mais tarde, quando estudava no Porto, fizeram-me constatar a minha inabilidade. Outras jogatainas, já na tropa, confirmaram essa minha perceção. Terminei cedo a minha “carreira”...

Continuo a gostar imenso de ver futebol, um espetáculo desportivo que acho sem par. Sou, contudo, um feroz adepto de sofá, raramente de bancada. Porém, sempre que ponho em causa a minha comodidade e decido ir a um estádio, apanho um banho de alegria e de vida. Ainda estive no velho Wembley, no Parc des Princes e em algumas outras “catedrais”, mas nunca me perdoarei por ter perdido o Maracanã. Admito que é na televisão que se consegue “ler” melhor um jogo, mas não há nada melhor do que entrar no ambiente de um estádio cheio, para sentir o verdadeiro futebol!

Nos dias de hoje, o meu Sport Clube de Vila Real já não joga no campo do Calvário (na imagem, o pórtico de entrada, desenhado por um tio meu). Por muito tempo, os meus pais viviam num andar que dava sobre esse campo de futebol. De uma ampla varanda, era possível ver quase 90% (ia a escrever “do relvado”, mas era um campo pelado!) do terreno. Um dia, já há muitos anos, estando de visita a Vila Real, ia haver por ali um qualquer jogo, creio que de juniores. Ao ver sair com pompa, do balneário, a equipa de arbitragem, dei-me conta de que o árbitro era meu amigo de infância, uma pessoa que, desde sempre, ia encontrando pelas ruas da cidade. Ele olhou para a varanda, viu-me e acenámos um para o outro. Foi um mar de olhos virados para cima, para tentar perceber quem é que o “senhor árbitro” (como o jogo ainda não tinha começado, ainda era tratado com esse respeito...) estava a saudar! 

São assim as cidades pequenas, que nos trazem grandes memórias.

quarta-feira, janeiro 15, 2020

O dilema de Rio


Terá desaparecido a possibilidade de haver maiorias absolutas de um só partido no sistema político português? O futuro ao eleitor pertence mas, no plano das probabilidades, tudo assim o indica. A atomização vigente no parlamento, sendo sintoma da existência de cada vez mais votantes que se não se sentem representados pelas duas principais forças do sistema tradicional, não obsta a que estas tenham de continuar a ser as âncoras de qualquer solução, mais ou menos duradoura, de estabilidade.

O desafio para cada um desses dois partidos, em termos de apoio parlamentar potencial, mudou muito, contudo, nos últimos anos.

Os socialistas tiveram a histórica ousadia de derrubar o muro, que parecia eterno, à sua esquerda, tendo governado uma legislatura completa com o suporte parlamentar de duas forças que, no juízo definitivo de muita gente, estavam para sempre excluídas do “arco da governação” em democracia. Esses partidos não integraram o executivo, mas puderam reivindicar o resultado de algumas das suas políticas, o que os aproximou dos corredores do poder, aos olhos exteriores e na sua própria perceção. As últimas eleições revelaram que o PS terá sido o mais beneficiado com o “negócio”, razão pela qual parte dessa “esquerda da esquerda” o não quis renovar formalmente. Os socialistas, para recuperarem uma imagem mais “centrista”, não insistiram num novo entendimento formal, esperando que esses seus antigos parceiros acabem, no fim de contas, por preferi-los no governo a vê-los substituídos por forças mais à direita. Mas não é de excluir, em absoluto, que o juízo sobre as vantagens de desencadear uma crise política, provocando eleições antecipadas, possa um dia vir a ser diferente no PS e nos seus antigos aliados.

Para o PSD a questão que se coloca é a do tipo de coligações que lhe permitam o retorno ao espaço do poder. O espetro de opções à sua direita sofreu uma grande alteração, com a simultânea anulação da importância do mais moderado CDS e a emergência do mais radical Chega, o qual, tal como a Iniciativa Liberal, foi “pescar” votos ao seu eleitorado tradicional ou a um novo eleitorado que, normalmente, acabaria por se abster, votar CDS ou apoiá-lo. Qualquer aliança com esse setor dará ao PSD uma imagem clara de “viragem à direita”, precisamente num tempo em que Rui Rio anuncia o seu desejo de levar o partido mais para o centro político. Assim, ou Rui Rio se desdiz e perde a face ou se entrega a um “namoro” ao PS. A alternativa é ficar sozinho na praça.

Líbia


1976. Na longa estrada de Misrata para Tripoli, o carro em que eu seguia era conduzido por um engenheiro líbio, formado no Reino Unido. Havíamos feito um desvio para visitar as magníficas ruínas de Leptis Magna (na imagem), a majestosa cidade de colonização romana, situada a mais de uma centena de quilómetros da capital líbia. 

Íamos os dois sós. Os restantes membros da nossa delegação seguiam em outros carros. Falámos bastante, da vida e do mundo, com ele sempre a mostrar-se orgulhoso do seu país e das suas realizações. Não tinha um discurso apologético àcerca de Kadafhi, mas não se lhe notava qualquer pendor para a dissidência. À passagem pela cidade de Homs (homónima da da Síria, da mesma forma que há outra Tripoli no Líbano), a densidade de cartazes e "outdoors" com a face do líder líbio, legendados em árabe, tornava-se muito evidente. Ousei então perguntar: "Kadafhi é mesmo popular? As pessoas gostam dele?".

O meu interlocutor, cujo nome devo ter ainda em alguma parte, mas de quem nunca mais tive notícias, ficou silencioso por alguns instantes, olhando a estrada. Depois, retorquiu:

- Se gostam de Kadafhi? Gostam de quem lhes dá casas, como Kadafhi lhes dá. Gostam de quem lhes dá escolas para os filhos, como Kadafhi lhes dá. Gostam dos novos hospitais, que Kadafhi está a construir, bem como destas estradas, que antes não tínhamos. Já andou de avião dentro da Líbia, não andou? Os pobres agora viajam de avião.

De facto, as minhas duas ou três experiências nas linhas internas da Libyan Airlines tinham-me mostrado que os aviões estavam transformados numa espécie de autocarros de província, com imensos beduínos, transportando mesmo gaiolas com galinhas! Os preços deviam ser muito acessíveis.

Começava a chegar à conclusão de que o meu condutor, homem com mundo e um excelente inglês, era, afinal, um fiel apoiante do coronel Kadafhi.

- Kadafhi dá muita coisa ao povo. Paga tudo com o petróleo e há muita gente contente com ele. Você já leu o "Livro Verde"? 

Fiquei num certo embaraço. De facto, havia passado os olhos por aquela "obra", escrita num estilo delirante, de quem tinha "descoberto a pólvora" política, desenhando uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo. Kadafhi era uma espécie de "genérico" de Nasser: abolira uma monarquia corrupta, afastara os americanos da base americana de Wheelus (por esses dias, eu estava alojado no "Beach Hotel", ao lado da antiga base, antes frequentado quase exclusivamente pelos militares dos EUA) e julgava-se fadado a ser um federador do mundo árabe. Mas estava muito longe da dimensão histórica do líder egípcio. O "Livro Verde" havia aparecido em Portugal pela mão de um jornalista já desaparecido, Cartaxo e Trindade, que cheguei a encontrar, numa outra ocasião, em Tripoli.

Sobre o "Livro Verde", eu não sabia o que dizer ao meu interlocutor. Não queria hostilizá-lo, nem parecer complacente. Devo ter dito uma coisas "redondas" sobre a "originalidade" das ideias expressas no livro. Mas também não era preciso, como verifiquei pelo que ele me disse a seguir, sempre olhando a estrada em frente:

- Kadafhi é um fanático que se acha mais inteligente que todos os outros. O povo líbio não tem grandes queixas materiais, mas não tem, nem percebe que não tem, uma coisa importante que vocês agora já têm: a liberdade. Mas se "eles" sonhassem que lhe estava a dizer isto, eu seria preso.

Calou-se. Percebi que tinha ido tão longe quanto lhe era possível. Talvez mais longe do que a prudência aconselhava. A viagem continuou, connosco em longos minutos em silêncio. Voltei a encontrar esse engenheiro líbio em algumas reuniões técnicas posteriores. Todas já há muitos anos. Nunca mais regressámos ao registo daquela nossa conversa entre Misrata e Tripoli. Que lhe terá acontecido?

terça-feira, janeiro 14, 2020

Lóbi


Estávamos na Zâmbia, a meio de uma longa viagem governamental por vários países africanos. Não faço ideia a quem, naquele caso, competia a responsabilidade pelas reservas, mas a verdade é que, chegados bastante cedo ao Hotel Intercontinental de Lusaka, idos de Harare, naquele final dos anos 80, nos demos conta de que faltavam dois quartos para a delegação portuguesa.

Arrumados os membros da delegação mais afortunados, eu e o Duarte Ivo Cruz, que ali representava a AIP (Associação Industrial Portuguesa) constatámos que, para nós, não havia quartos. Ou melhor: havia uma vaga promessa de poderem "aparecer". Para utilizar uma expressão que o então jovem chefe da delegação portuguesa viria, décadas depois, a tornar popular noutro contexto, nós podíamos dizer que sabíamos que íamos ter um quarto, só não sabíamos é quando.

A visita oficial comportava, entretanto, alguns "números", entre os quais uma visita ao presidente Kenneth Kaunda, bem como reuniões e uma multiplicidade de contactos. Intercalando tais eventos, fazíamos passagens pelo hotel onde a delegação se acolhia. Mas não toda a delegação, não! A maioria da delegação! Porque eu e o Duarte continuávamos com as nossas malas recolhidas em quartos alheios e, nesses intervalos, contactávamos, com progressivo desespero, a receção ou a direção do hotel, metíamos "cunhas" através de empresários locais e da nossa embaixada, sempre em diligências cada vez mais ansiosas, porque a noite se ia aproximando. E, perante o olhar descansado (e demasiado sorridente, parecia-nos) dos nossos colegas, que se regalavam com bebidas no bar e conversavam entre si relaxados, nós os dois andávamos, de um lado para o outro, labutando verbalmente por uma cama onde descansar a noite.

O jantar oficial nem nos caiu bem, porque, acabado este, lá voltámos nós, ansiosos, ao lóbi do hotel. E seria já depois das 11 da noite que, já numa taquicardia angustiada, finalmente, recebemos as chaves dos nossos quartos, para logo constatarmos, com forte choque, que deles haviam sido literalmente "despejadas" minutos antes duas famílias africanas, com filhos, que foram dormir sabe-se lá para onde. Mas, àquela hora da noite, devo confessar que o nosso limiar de solidariedade Norte-Sul estava já ultrapassado pela lei da sobrevivência.

Foi nessa altura, culminadas que haviam sido com as dezenas de diligências feitas, junto de imensos interlocutores, que o Duarte Ivo Cruz, que comigo brindava o mútuo "sucesso" com um merecido whisky, se saiu com uma frase que recordo até hoje: "Só agora percebi, verdadeiramente, por que razão a esta área dos hotéis se chama "lóbi". Foi isso mesmo que nós os dois andámos o dia inteiro a fazer..."

Um abraço de Bom Ano para si, caro Duarte!

segunda-feira, janeiro 13, 2020

Viva o ar condicionado!


Acabo de ler que, no Rio de Janeiro, a sensação de calor foi superior a 50 graus. E recordei uma tarde, de 2006 ou 2007, em que, por ali, de fato e gravata, tive a imprudência, no centro da cidade (o conceito de “centro da cidade”, no Rio, é um pouco estranho: o centro é geograficamente ”de lado”), de dizer ao motorista que queria visitar dois ou três “sebos” (nome brasileiro para alfarrabistas), que trazia em agenda, e que me aparecesse apenas uma hora depois.

Estava imensamente adiantado face ao momento de uma palestra que devia proferir na Associação Brasileira de Imprensa, pelo que achei que escarafunchar em prateleiras de livros antigos seria a coisa certa a fazer para ocupar o tempo. O motorista tinha-me ido buscar ao aeroporto, tendo eu sido iludido pela temperatura interior do carro. Mal saltei para fora e o vi partir, comecei a ser invadido por uma sensação de calor como nunca tinha sentido. E ali estava eu, engravatado e vestido de fato claro, no meio daquele inferno.

O primeiro “sebo” (e depois o segundo e o terceiro) não tinha ar condicionado, apenas uma ventoínha apontada à figura física dos vendedores. Era um bafo quente e húmido que se fazia sentir e me começou a invadir. Comecei a ficar progressivamente encharcado, com o suor a transferir-se para o casaco. Tirei-o, até porque as manchas de humidade já se viam do exterior, coloquei-o às costas, o que, por sua vez, passou a incomodar-me a pesquisa livresca. Dei por mim a maldizer-me da “brilhante” ideia que tivera, de ir aos sebos numa semelhante tarde.

Por um azar monumental, não tinha tomado nota do “celular” do motorista, que, com inveja, logo imaginei refastelado num qualquer “boteco”, com um geladinho “chope” à ilharga. Assim, não o podia chamar de volta, para me resgatar da insensata jornada em que me tinha metido.

O lenço com que procurava secar a cara e o pescoço assemelhava-se a uma trouxa húmida. No saltitar entre os “sebos”, ainda tentei vislumbrar um café ou um bar que tivesse as portas fechadas para a rua, onde pudesse beneficiar do frio artificial, que estava a ser minha ideia conjuntural de felicidade. Mas eram tudo coisas tropicais, ao ar livre, se bem que à sombra, com pouca gente, porque os “cariocas” sabiam como evitar uma imprudência como a minha. E, os que o faziam, andavam com escassa roupa, de bermudas e alpargatas. Só eu, feito parvo, vestido “de embaixador” (a gravata, claro, estava já num bolso), por ali me permitia andar, sob os seus olhares curiosos, fixados naquele cidadão que vestia um traje insólito para o tempo que fazia. Ainda parei num desses lugares, bebi uma cerveja, mas isso só me fez acelerar o débito de suor. Estava inapresentável!

A hora de espera do motorista demorou horas a passar. Quando, finalmente, o vi surgir, entrei disparado no carro, passei para o banco de trás, pedi-lhe para pôr o ar condicionado no máximo e, dizendo-lhe para “não estranhar”, tirei a camisa encharcada, pendurei-a nas costas do banco em frente e devo ter dado algum “espetáculo” aos (felizmente anónimos) passantes: o embaixador de Portugal no Brasil, em tronco nu, passeando-se de carro pelas ruas do Rio. Uma fotografia na imprensa portuguesa, tirada por algum turista, teria sido um gozo nacional!

Arriscando uma pneumonia, fui-me assim secando, por largos minutos, conduzido pelas ruas do Rio, até chegar a hora da cena na ABI, onde entrei com um aspeto de que guardo algures uma fotografia da cerimónia, comigo desgrenhado, com ar de quem saía de uma indizível e bizarra experiência.

Há dias assim, que se há-de fazer! Viva o ar condicionado!

domingo, janeiro 12, 2020

Royals

Há muito de gosto pelas “soap operas”, misturado com a curiosidade saloia com vida das Kardashians, no modo como se vê discutir por aí o novo “o príncipe e a americana”. O facto da “piquena” ser etnicamente diferente do resto de Buckingham dá ainda um toque modernaço ao “remake”.

Rádio

Fico furioso comigo mesmo: constato que só ouço rádio no carro. E, as mais das vezes, ouvir rádio é excelente. “Vamelaver”, como diz o nosso PM, se consigo ouvir mais rádio em 2020.

Primeira dama

Tenho uma embirração antiga com o conceito de “primeira dama”. Para além do pretensiosismo do termo, fico sempre com uma dúvida: há por ali sempre uma segunda dama?

Direitas

Os novos partidos de direita radical, surgidos nas últimas eleições, foram a pior notícia que a direita tradicional podia ter. Retiram-lhe votos que, à partida, seriam dela, potenciam uma competição que é sempre desgastante e fragmentam esse campo político.

Rua

Para fazer esquecer que o PCP se absteve no orçamento, nada melhor do que dar luz verde para que a central sindical que controla inicie um novo ciclo de greves. A política portuguesa, de tão previsível, quase que perde a graça.

Belém

Mais do que o facto de Cristina Ferreira ter aventado a possibilidade de, um dia, poder vir a concorrer à Presidência da República, assusta-me que o país discuta o assunto como se essa eleição fosse possível. Porque, como isto anda e promete andar, talvez fosse mesmo.

Racismo?

Essa agora! Será que ninguém pode criticar, mesmo com severidade, o comportamento da deputada Joacine Katar Moreira, na Assembleia da República, sem arriscar ser crismado de racista? Ou anti-feminista? Está tudo doido, é?

Bola

É ”nesta fase do campeonato” que os árbitros de futebol começam a pensar no futuro das suas carreiras. E, claro, os que se lixam sempre são os mexilhões do costume.

Gorjeta patriótica



Foi há mais de 15 anos, em Khujand, bem no norte do Tajiquistão. Não havia elevadores naquele modesto hotel, ainda tributário da era soviética. Era, no entanto, o melhor da cidade.

Eu chegara, como sempre (nunca aprendi a viajar "light"), com uma pesada mala. Quando me disseram que tinha de subir dois andares a pé, cansado como estava, depois de uma viagem longa e de um dia de trabalho relativamente intenso, "passei-me" e reclamei. 

A rececionista, com pinta de "aparatchik" da era antiga, num país onde as coisas não tinham mudado assim tanto, confrontada com o meu mal-estar, sem me dar grande confiança, disse-me para eu ir indo para o quarto, que a mala lá iria ter. 

Passados largos e irritantes minutos, bateram-me à porta. Ofegante, um homem, cuja idade tinha ultrapassado há muito os 80 anos, apresentou-se com a minha mala. 

Senti-me incomodado. Então aquele senhor idoso tinha subido as escadas, com mais de 20 quilos na mão, para evitar o meu esforço? Para além de articular vários "spasiba", entendi dever dar-lhe uma boa gorjeta, que pudesse compensar o meu complexo de culpabilidade. 

O homem mirou a nota de cinco dólares, revirou-a bem não fosse estar a ver mal e saiu, às vénias, desta vez sendo ele quem se desfez em coisas que entendi como profundos agradecimentos. 

Sabia que a gorjeta tinha sido boa, mas não tinha ideia do que ela significava, à escala local. Quando, ao jantar, contei o episódio a um diplomata holandês que vivia no país, revelando-lhe o montante da gorjeta, o comentário foi, para mim, surpreendente: "Em moeda local, o que você lhe deu deve representar mais de metade da reforma mensal do homem!"

Na manhã seguinte, ao sair do quarto, deparei com o idoso, especado em frente à porta, já preparado para transportar de novo a minha mala. Deduzi que devia estar por ali já há algum tempo. 

Com um imenso sorriso, num tom levemente interrogativo, como que a confirmar apenas o que já sabia, disse-me: "Portugaliya!?" Confirmei e lá descemos as escadas, ele ajoujado com a minha mala, comigo ao lado, descansado, apenas com uma pequena saca de pano ao ombro.

À chegada ao lóbi, recordo, como se fosse hoje, o olhar reprovador e prenhe de "righteousness" das minhas colegas de viagem, embaixadoras da Noruega e do Canadá, que condenavam, num silêncio grave, a minha atitude de vil e eurocêntrica exploração da terceira idade tajique. Como poderia explicar-lhes que estava a fazer um "favor" ao homem? Como reagiriam se lhes falasse dos cinco dólares da véspera?

À entrada para a carrinha, ainda hesitei: como a tarefa da manhã tinha sido "a descer", devia dar uma gorjeta inferior à da véspera? Mas, esmagado pela culpa, logo me decidi: voltei a dar ao homem outra nota de cinco dólares. 

Sorriram-lhes os olhos e despediu-se com um forte e efusivo cumprimento de mão, sempre repetindo, enfático: "Portugaliya! Portugaliya!".

Por 10 dólares, a imagem do nosso país subiu, nesse dia, aos píncaros, nessa remota e pequena cidade da Ásia Central.

sábado, janeiro 11, 2020

PSD

Quem quer que ganhe no PSD, ficará sempre com mais de um terço do partido a jurar vingança e a intrigar no futuro. Além disso, a sombra que a já aguardada impugnação do ato eleitoral vai criar, ofuscará o brilho do vitorioso, em especial for Rio.

Quem se lembra de William Gilman?



Há dias, numa conversa com António Borga, um nome que os portugueses conheceram na televisão, veio à baila o nome de William Gilman, que ele conhecera em Londres, ao tempo que trabalhou no serviço português da BBC.

Aqueles que têm tempo de vida para usufruirem de alguma memória deverão recordar-se de uma voz, com um português com óbvio sotaque britânico, que, de Londres, por alguns anos, nos trazia as notícias da RDP.

Antes, Gilman, tinha trabalhado para o “Record” e foi correspondente da Anop, antecessora da Lusa. Escreveu também para o semanário “País” e, creio, terminou a sua relação jornalística com Portugal como correspondente do “Diário de Notícias”, em 1996. O Estado português condecorou-o em 1993.

Gilman tinha nascido em Portugal, em 1917, filho de um homem dos serviços de “intelligence” britânicos, colocado na respetiva embaixada, e de uma cidadã portuguesa. 

“Gilly”, como era conhecido pelos amigos, era uma figura suave, com um agradável sorriso, casado com Joan, que, curiosamente, muitas vezes o acompanhava nas suas atividades profissionais. Era filha de um jornalista britânico, H. G. Greenwall, autor de um livro sobre Portugal, “Our Oldest Ally”. 

Conheci William Gilman em Londres, ainda nos anos 80 e, mais tarde, quando fui viver para o Reino Unido, tornámo-nos amigos do casal. Estivémos por mais de uma vez na sua casa em Epson, no Surrey, e comemorámos com ambos e os seus amigos o seu meio século de casamento, num clube de golfe, para o qual ele me fez convite para ser sócio. O clube era de muito difícil admissão, ele tinha conseguido uma exceção para mim e, até hoje, tenho esperança de que a minha recusa em corresponder ao seu gesto tenha sido feita com uma gentileza à altura do mesmo. É que eu nem cartas jogo...

William Gilman (na imagem, à direita, tendo à esquerda Fernando de Sousa e ao centro Gilberto Ferraz) morreu em 2001, com 83 anos. Joan sobreviveu-lhe por escassos anos.

Cooperação e política externa


Proferi na quarta-feira, dia 8 de janeiro, na abertura do Seminário anual do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, a convite do respetivo presidente, uma intervenção sobre a cooperação para o desenvolvimento em face dos desafios da política externa portuguesa. O texto pode ser lido aqui

sexta-feira, janeiro 10, 2020

"Evasões"


A revista "Evasões" publica hoje o seu nº 250.

Trata-se de uma revista semanal com uma excelente qualidade de escrita e imagem, distribuída gratuitamente com o "Jornal de Notícias", à sexta-feira, e vendida separadamente nos restantes dias, por um preço extremamente acessível.

Sou um fã da "Evasões", confesso. Em especial, por nela escrever Fernando Melo, um dos mais sabedores críticos gastronómicos da nossa praça, cujas recomendações, de restaurantes e vinhos, nunca frustraram as minhas expetativas. Mas a "Evasões" tem-me ajudado a descobrir muito mais, nas minhas peregrinações pelo país.

Por alguns anos, eu próprio escrevi na "Evasões" uma modesta crónica de "gastrófilo". Depois, um dia, pedi escusa à minha "chefe", Catarina Carvalho, responsável pela revista, e saí discretamente de cena. O tempo não me chegava para tudo. Hoje sou apenas um leitor da "Evasões". Mas atento!

Um abraço de parabéns à equipa da "Evasões"!

Não nos desiludam!

Já há abaixo-assinados contra a decisão sobre o novo aeroporto? E providências cautelares? Então e as objeções ambientais, de invejas locais...