sábado, abril 27, 2019

Reflexão sobre a ingratidão

Um certo olhar sobre o 25 de abril, que sempre emerge por esta época, apoia-se na ideia de que existe um défice de reconhecimento, em especial por parte das novas gerações, dos benefícios que a ordem democrática trouxe aos portugueses. Para essa perspetiva, a liberdade de que desfrutamos surge hoje como um dado adquirido, sem que, no entanto, haja um reconhecimento explícito dos sacrifícios que foram necessários para, em 1974, nos libertarmos da ditadura. E, mais do que isso: sem que se assumam as incomensuráveis vantagens que o novo regime trouxe, face ao “tempo da outra senhora”.

Geracional e politicamente, sou tentado a simpatizar com este modo de ver as coisas e irrito-me com quem tende a desvalorizar o esforço e o risco de quem lutou pela liberdade, negativizando aquilo que ela nos trouxe. Mas, devo confessar, com realismo, que acho quase inevitável que, 45 anos depois da Revolução, quem a não viveu e não haja sofrido o autoritarismo do anterior estado de coisas não sinta um forte apelo a comemorá-la, com um entusiasmo militante. Algumas dessas pessoas, olhando para o paradigma político que hoje marca a generalidade da Europa, tenderão mesmo a considerar que o modelo de liberdades em que nos habituámos a viver mais não é do que uma coisa natural e, perdoe-se-me a ousadia, uma quase banalidade.

É injusto que assim pensem? Claro que é, mas temos de entender que estão no seu pleno direito de assim pensarem, tanto mais que algumas delas também reagem negativamente ao que consideram ser uma certa apropriação da “memória de Abril” por setores políticos em que não se reveem. Ora a democracia é isto mesmo: o próprio direito a lê-la como cada um entenda.

Chamei o 25 de Abril a este texto, não para o discutir, mas pela similitude que nele podemos encontrar com a atitude de muita gente face à ideia europeia. É uma evidência que, também no modo como os cidadãos reagem perante a Europa, se pode dizer que há como que uma evidente “ingratidão”, quer nas críticas, quer mesmo em alguma indiferença.

Ora a Europa comunitária representou muito para os países integrantes. Foi vital para lançar e sustentar um sentido de cooperação em paz entre Estados saídos, pouco mais de uma década antes, de uma tragédia quase sem par. Depois, alavancou o seu desenvolvimento, garantindo-lhes tempos de prosperidade e de bem-estar, sob um modelo social magnífico. Essa mesma Europa fez partilhar as suas sinergias por outros países que não haviam estado no grupo fundador, apoiando também o fim de algumas ditaduras, mais tarde dando acolhimento a países vítimas da Guerra Fria - quer a Estados de vocação neutral, quer aos que se haviam libertado da tutela de Moscovo.

O que vemos hoje? A revolta perante o fracasso do modelo? Nada disso. A Europa comunitária, mais integrada e mais aprofundada, continua a ser um espaço quase ímpar de modelo de convivência de Estados, com instituições transparentes, regras funcionais que são um “benchmark” para o mundo, um espaço atrativo para os que o olham de fora. Embora longe do crescimento exponencial de outrora, a Europa mostra uma vitalidade económica muito significativa, alimenta uma moeda única de referência universal, é um notável espaço de bem-estar e liberdade. 

Tudo parece indicar que a Europa, afinal, acaba por ser uma vítima do seu próprio sucesso. O projeto foi “vendido” com um grau de expetativas que acabou, aqui ou ali, por se confrontar com uma realidade que ficou aquém do sonho. Porque combina duas legitimidades, a europeia e a nacional, assistimos a esta última se avantajar agora, crescentemente, sobre a primeira, à revelia da tendência anterior. A Europa passou a ser o “bode expiatório” das insuficiências nacionais, a fonte de todos os males de que os eleitos dos países se não querem sentir responsáveis. 

Muitos já não olham a Europa como fator de esperança, mas apenas como fonte de crescentes inseguranças – com muito mito e mentiras à mistura. Tal como no caso do 25 de abril, já poucos se lembram como era antes. E daí o crescimento do euroceticismo, das derivas populistas, o êxito do Brexit. É triste para muitos, mas é a vontade de outros. E isso é a democracia.

(Publicado no Jornal de Negócios em 26.04.19)

Aleluia!

“A revolução de 1974 desmantelou a ditadura salazarista, que durante décadas manteve os portugueses em menoridade cívica”, Rui Ramos, “Observador”

sexta-feira, abril 26, 2019

Reflexão sobre a ingratidão


Hoje, no Jornal de Negócios, pode ler o artigo que ali publico com o título em epígrafe. Aqui.

quinta-feira, abril 25, 2019

EPAM


45 anos


E se o "E depois do adeus", o Maia, o Carmo, o outro Marcelo, os tanques, a Grândola, as fardas, o Otelo, a Junta, o Spínola, o cravo, a Pide, o Zeca, a censura, o MFA, Caxias, o "povo unido", Peniche, o Cunhal, a tv a preto-e-branco e toda a parafernália de datas e de siglas pouco disserem aos que hoje passam "a salto" de Ryanair as fronteiras de Schengen, aos vidrados nos iPad, balanceantes dos iPod, logados nos iPhone, para quantos vão para hostels, sem saberem onde e o que foi Champigny, os bivaques da guerra colonial ou a triste sina nos paradeiros de exílio? 

É que cada vez é mais difícil fazê-los ouvir falar da "frigideira" do Tarrafal, da “estátua”, das patifarias do Botas de Santa Comba, de quem foi o Manuel Tiago ou onde eram as tipografias da clandestinidade. E que sabem eles do Copcon ou da 5ª Divisão, do MDLP ou do ELP, do MES ou a FEC-ML? Por quanto tempo será possível fazê-los escutar o Furtado ou o Fialho a lerem comunicados do "posto de comando", a Luísa Bastos a gritar o "Avante Camarada", a poética neorealista com a rima prenhe de "povo", a saltitante “Gaivota", o hino marcial da Intersindical a conclamar as "massas" p'ró que der e vier? E até quando os poderemos manter atentos às memórias do 11 de março ou da Constituinte, do padre Max ou do cónego Melo, das bombas da reação (que não passaria mas afinal passou) ou do PRP? 

Alguns dirão ser uma causa perdida, que a nossa compulsão comemorativa anual, de cabelos brancos e cravos vermelhos, mais não é do que a desesperada tentativa de nos agarrarmos ao tempo, como os republicanos que estiveram na Rotunda e não se calaram com essa história até ao dia em que o chanfalho do Gomes da Costa os pôs com triste dono, por quarenta anos.

E, no entanto, será que dizer “fascismo nunca mais” é uma palavra de ordem datada, nestes tempos de Trump, de Salvini, de Le Pen ou de Orbán? Alguém se atreve a dizer que lutar contra o racismo, a xenofobia, a discriminação das minorias é uma luta do passado? Será que, nestes dias de “fake news”, não tem sentido clamar por uma informação livre, pela verdade, sem censura nem distorção dos factos? Ao vermos a extrema-direita já ali na esquina, não será afinal uma boa razão para as novas gerações perceberem a importância de comemorarem uma data que continua a ser o glorioso contrário de tudo isso?

Eu, por mim, já optei. Orgulhosamente, de cravo ao peito, com uma força proporcional à irritação que isso provocará sempre noutros, direi: viva o 25 de abril, sempre!

25 de Abril, sempre!



quarta-feira, abril 24, 2019

45 anos


Este é o título do artigo que hoje publico no Jornal de Notícias e que pode ser lido aqui.

terça-feira, abril 23, 2019

António


- Então? Que achaste do tipo?

- Tem uma bela figura! E uma presença muito forte! 

O António Alves Martins tinha ido ao aeroporto, para assistir à chegada de Álvaro Cunhal, nesse dia 30 de abril de 1974. Achara graça testemunhar o fim do exílio do mítico líder comunista e, pelos vistos, vinha impressionado, descrevendo-me a cena de Cunhal sobre o carro de combate, naquele “remake” luso da chegada de Lenine à estação da Finlândia, em Petrogrado, que o emergente PCP nesse dia encenou com estilo. 

Tinha-me desafiado para ir com ele, mas, por uma qualquer razão, deixei-me ficar nos estúdios da RTP, onde, como militares da EPAM - a Escola Prática de Administração Militar, unidade que ocupara a televisão, na noite da Revolução - ambos passávamos então os dias e parte das noites.

O António não tinha grande simpatia pelo PCP. Mas não quis perder esse encontro com a História. Seria, aliás, fundador e um dos primeiros militantes do MES, o Movimento da Esquerda Socialista, onde me levou numa noite de maio, ainda na sede do edifício de esquina com a Calçada da Estrela, para me apresentar ao Afonso de Barros.

Tinhamo-nos conhecido na EPAM, em 1973. E ficámos logo amigos. Ligavam-nos alguns interesses comuns, ele ainda trazia Paris, onde estudara, no sangue e na memória afetiva recente. Fizemos juntos o 25 de abril (fomos, aliás, os dois únicos oficiais milicianos envolvidos na cena da detenção do comandante da unidade, nessa manhã). Eu, entretanto, saí para a Comissão de Extinção da PIDE e, depois, para a assessoria da Junta de Salvação Nacional. Voltámos a encontrar-nos, meses mais tarde, na 2ª Divisão do EMGFA, para onde fui chamado a trabalhar, por indicação dele. Na sequência do 11 de março, fizémos parte do escasso grupo que saiu do EMGFA para criar o SDCI. 

Depois, um dia desse ano politicamente inesquecível de 1975, a tropa acabou para nós. Eu entrei para as Necessidades e o António passou a dar aulas no então ISEG. Fomo-nos vendo mais a espaços, ele sempre com uma cordialidade carinhosa (que derretia as “piquenas”, terreno onde era imbatível!) e a sua simpatia transbordante e irradiante. Nos seus 50 anos, no antigo “Saddle Room”, fizemos uma festança memorável, creio que em 1996. Ainda nos abraçámos no jantar comemorativo dos 20 anos do fim do MES, no Pavilhão de Portugal, em 2001. Foi a última vez que o vi. Depois, por muito que eu tentasse, com outros amigos, numa consegui romper o mundo recolhido em que a depressão o mergulhou. 

O António Alves Martins morreu ontem. Hoje, terça-feira, pelas 18:30 h, o seu corpo estará na igreja de S. João de Deus. Vou lembrar-me muito do António, neste 25 de Abril.

segunda-feira, abril 22, 2019

11 de março


Hoje, pelas 18:00 horas, na Associação 25 de abril, vou fazer a apresentação do livro “A noite que mudou a Revolução de Abril”, que inclui a transcrição da Assembleia do Movimento das Forças Armadas, que reuniu na noite de 11 para 12 de março de 1975.

Coordenado por Carlos Contreiras e com a colaboração de Vasco Lourenço e Jacinto Godinho, o livro é publicado pelas Edições Colibri.

sábado, abril 20, 2019

A democratura


Na aproximação das eleições para o Parlamento Europeu, o Partido Popular Europeu suspendeu o Fidesz, o partido do líder húngaro, Viktor Orbán. embaraçado por algumas das suas práticas políticas. Para alguns, a Hungria é já hoje uma espécie de “democratura”, isto é, uma democracia com fortes laivos de ditadura. 

Deixo aqui uma história pessoal, envolvendo Orbán.

Estávamos em março de 1999. Como membro do governo português, eu acompanhava o presidente Jorge Sampaio em visita de Estado à Hungria, país candidato à União Europeia (entraria em 2004), a convite do seu homólogo Árpád Göncz. 

Por esses dias, estavam iminentes os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que ainda nesse ano iria integrar a NATO. 

Em Budapeste, eu havia acompanhado Jorge Sampaio num encontro com o já então primeiro-ministro Viktor Orbán. A conversa não foi fácil, quando, a pedido de Jorge Sampaio, fiz referência a alguns dos passos institucionais que a UE exigia à Hungria e que esta resista a fazer. Orbán mostrava-se frio, tenso, desagradável mesmo. A certa altura, a propósito dos possíveis bombardeamentos da NATO, falou da sua preocupação com as populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia. Eu disse perceber a sua inquietação, mas reagi ao seu bizarro conceito de “futuras populações NATO" com que qualificou esses sérvios, lembrando que a ditadura portuguesa tentara, sem o menor sucesso, utilizar um similar conceito extensivo para os habitantes das colónias africanas em guerra. Orbán lançou-me um olhar duro e a conversa, que já não estava amável, não melhorou.

À noite, Árpád Göncz ofereceu um jantar a Sampaio no majestoso parlamento húngaro. Sabia-se que as relações entre Göncz e Orbán não eram nada fáceis, por razões de política interna, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política. Por contraste com Orbán, o presidente era uma figura suave, um homem de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. 

A certa altura, na varanda do parlamento, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Göncz morreu em 2015. Órban, depois de ter estado afastado do poder, é, de novo, desde 2010, primeiro-ministro. O que se tem passado nos últimos anos na Hungria, em matéria de abusos que infringem as liberdades fundamentais, as regras do Estado de direito e o respeito pela separação de poderes, envergonha a Europa.

(Artigo publicado em 18.4.19 no “Jornal Económico”)

sexta-feira, abril 19, 2019

Alfredo Cunha



Alfredo Cunha é um dos grandes foto-jornalistas portugueses. A sua coleção de retratos do 25 de abril, de que organizei em 2008 uma exposição em Brasília e que agora saiu num excelente livro, sob a égide da Câmara Municipal de Lisboa, é um momento alto da fotografia em Portugal.

Entretanto, tinha já ouvido falar deste outro livro, “Retratos”. Há dois dias, folheei-o na FNAC e, confesso com facilidade a vaidade, tive um grande gosto de me ver retratado por lá, numa imagem já com 17 anos. Não é todos os dias que uma figura como Alfredo Cunha nos fotografa.


Buraco 15


- Ele ainda trabalha convosco?

- Claro!

- E está por aí? 

- Há pouco estava. Passei pela secretária dele e tinha lá o casaco.

- Nesse caso, o tipo que está aqui ao pé de mim, no buraco 15, é um espantoso sósia dele...

- Mas tu estás onde?

- Estou no golfe...

- Espera aí! Já te ligo! 

                                                                  (***)

- És tu? Afinal tinhas razão! O tipo já tinha saído daqui há horas! Vai-me ouvir das boas!

- A tua empresa é que ainda cai no velho truque no casaco sobre as costas da cadeira...

Conversa telefónica verdadeira, há tempos, entre uma famosa personalidade empresarial portuguesa e um amigo, a propósito de um colaborador do primeiro, pago a peso de ouro, figura que o país bem conhece (até demais!). Os nomes omitem-se, por piedade pascal.

quinta-feira, abril 18, 2019

Pão de ló


Mas, afinal, o que é que faço? Saio depois da Tornada, na A8, e vou ali comprá-lo a Alfeizerão? Ou, já na A29, dou uma saltada a Ovar? Ou ainda, para o ter mais fresco, faço um pequeno desvio da A4 por Felgueiras e levo para Vila Real o pão de ló de Margaride? Qual é o melhor, digam lá?! É que já vou a caminho...

O inimigo...


Notre Dame europeia



Ao ver tombar a agulha de pedra da parte traseira da Notre-Dame de Paris, não consegui deixar de pensar na queda das Torres Gémeas, em Nova Iorque. Nos dois casos, as televisões tornaram-nos testemunhas oculares de tragédias que, porque profunda e sinceramente partilhadas, convocaram em nós fortes sentimentos coletivos. Se entre eles as diferenças são claras, a verdade é que em ambos se gerou um óbvio sentido de perda, que federou uma tristeza comum.

Em Nova Iorque, com a imensidão de vítimas, a tragédia tinha um sentido tão óbvio de barbárie que levou a que muitos milhões, por todo o mundo, acabassem por partilhar uma solidariedade com uma América que, em geral, não despertaria nessas pessoas uma automática sintonia. Ao assistir ao modo criminoso como tanta gente foi sacrificada no altar do extremismo religioso, houve como que um sobressalto ético, porque, mesmo nos mais agudos conflitos, não “vale tudo”. Não cheguei ao ponto de colocar a bandeira americana na lapela, mas confesso que, com amigos americanos, partilhei aquela perda como se fosse minha. O título nesse dia do parisiense “Le Monde” (“Somos todos americanos”) foi um grito genuíno, também meu.

Em Paris, tudo foi parecido e diferente. De início, olhei aquelas imagens com a ingenuidade de que seria um pequeno e controlável incêndio. Depois, à medida que o rubro das chamas ia subindo no écran, apossou-se de mim uma angústia crescente: “Espera aí! É a Notre-Dame que está a arder!”. E, de repente, lembrei-me de uma tarde de agosto, há mais de meio século, em que ali chegara, à boleia, pousara a mochila no chão e olhara, esmagado, para aquela igreja que conhecia “de toda a vida”. Estar ali significava muito para a minha geração. Lembrei-me também da emoção com que, há uma década, como embaixador em Paris, falei daquele altar a uma Notre-Dame apinhada de portugueses vindos de toda a França, tendo ao lado o cardeal arcebispo de Paris. Mas isso, afinal, não era nada, perante o facto de estarem ali a arder mais de 800 anos de uma História que, sendo francesa, era também europeia, isto é, igualmente nossa.

É com frequência nas dificuldades que se criam os mais fortes sentimentos comuns. Naquele dia, em Nova Iorque, tinha-me sentido cidadão de uma civilização de valores. Na segunda-feira, dei comigo a pensar que reconhecermo-nos como herdeiros de uma cultura e de um património desta monta é, afinal, o que verdadeiramente nos identifica como europeus.

(Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 17 de abril de 2019)

terça-feira, abril 16, 2019

Incêndios e riscos


Ao ver as imagens trágicas do incêndio na Notre-Dame, não pude deixar de me interrogar sobre as condições em que estarão alguns importantes edifícios do património português. Não tendo certezas sobre a qualidade da prevenção em Portugal, resta-me apenas alimentar a esperança de que esteja tudo bem.

Um dia, creio que em 1977, chegaram finalmente os detetores de incêndio ao palácio das Necessidades. Na repartição do MNE onde eu então trabalhava, a EEA (onde tratávamos das relações económicas com a África, Ásia e Oceania), entraram, no final de uma manhã, uns operários para montar os sistemas de deteção. Escadotes e outros aparatos invadiram a sala onde trabalhávamos cinco diplomatas e técnicos. A sua ação perturbava o nossa, pelo que me lembro de termos apressado a saída para o almoço, deixando-os a operar por lá.

No regresso, para nossa grande surpresa e algum escândalo, a sala estava sujíssima, com restos de material pelo chão e imenso pó sobre as nossas secretárias. Ficámos furiosos e era nesse estado que estávamos quando ele entrou na sala. 

Ele era um cavalheiro  - recordo-me bem! - que vestia um blazer azul, sob o qual se destacava uma estranha camisa de largos quadrados, à Alves Redol, como ironicamente eu sempre designava aquele traje, para desagrado dos meus amigos mais sensíveis à cultura do neo-realismo. Assente no peito de tal bizarra camisa, destacava-se uma berrante gravata vermelha, com nó largo, como à época se usava. Era, com certeza, o encarregado da obra.

O homem disse boa-tarde, avançou e, chegado a meio da sala, pôs-se a olhar para o teto, para o trabalho feito. Irritou-me fortemente que não tivesse notado a sujidade espalhada, fruto da incúria do seu pessoal. Não sei se o meu desagrado terá ido ao ponto de me fazer não retorquir à sua saudação, mas recordo-me de ter dito: “Acha isto bonito? Lindo serviço!”. 

O homem “fez de conta” e veio direito a mim, que estava sentado ao fundo, entre as duas janelas. E estendeu-me a mão, com um sorriso entre o esfíngico e o irónico.

- Como está? Trabalhei nesta sala vários anos. Já cá não vinha há algum tempo Qual é o nome do colega? - e disse o seu.

Devo ter ficado bem encavacado. Aquele não era o encarregado das obras, era o nosso embaixador numa capital africana, que, manifestamente, apenas tinha levantado os olhos para os novos detetores de incêndio pela curiosidade de ver aquilo pela primeira vez montado por ali. Deve ter percebido que o confundíramos com alguém responsável pelos trabalhos, mas não acusou o toque. Com naturalidade, falou depois com todos nós, querendo conhecer os interlocutores que por ali tinha, na correspondência escrita entre Lisboa e a sua embaixada. E, momentos depois, saiu.

Nunca tive a certeza se ele ouviu ou não a imensa gargalhada coletiva que todos demos, depois da  porta fechada atrás de si. Rimos de nós mesmos, claro.

O futuro