terça-feira, março 16, 2010

Parlamento

A Assembleia da República, através da sua Comissão dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, iniciou uma nova prática: ouvir os embaixadores portugueses pelo mundo falar do funcionamento das missões diplomáticas que dirigem, dos interesses portugueses que lhes compete defender, das questões que se colocam ao seu dia-a-dia, bem como de várias outras matérias da sua atividade que interessam ao poder legislativo.

Como disse, esta é uma prática nova, que não afeta, naturalmente, o equilíbrio constitucional de poderes. Nem de responsabilidades. É o governo quem responde perante o parlamento. Ao diplomatas, como servidores públicos que têm a seu cargo a execução da política externa, compete prestar esclarecimentos sobre o modo como exercem a sua atividade e como dão sequência às instruções que recebem do poder político. Nem mais, nem menos.

Tive o prazer de inaugurar hoje estas audições, num ambiente muito simpático, muito interessante e muito interessado. E mais não digo, porque a sessão decorreu "à porta fechada".

segunda-feira, março 15, 2010

Reunião

"Uma reunião acaba, normalmente, ao final de 20 minutos... só que ninguém dá conta e todos insistem em repetir, nas horas seguintes, embora de forma diferente, os argumentos que os outros já disseram e que estiveram na base das decisões que há muito já foram tomadas".

Quem nos disse isto, hoje à tarde, na Fundação Calouste Gulbenkian, foi o professor Peter Magrath, um especialista de educação americano que, em muito boa hora, o meu querido amigo professor Marçal Grilo convidou para vir a Lisboa falar aos reitores e presidentes dos Conselhos Gerais das universidades públicas portuguesas.

Desta vez, Magrath desmentiu-se a si próprio. Nas cerca de três horas em que o ouvimos e com ele discutimos, nem um minuto foi perdido e todos saímos muito mais conhecedores, não apenas dos exemplos de gestão universitária dos EUA, mas igualmente do modo como cada um de nós, na sua universidade, interpreta o novo modelo de gestão que está em vigor em Portugal. Este é o único caminho para nos ajudar a tornar mais eficaz tal modelo.

Viegas

Há dias, alguns amigos queixaram-se pelo facto de eu ter escolhido João Villaret como o primeiro declamador apresentado neste blogue e alguns perguntaram-me se tinha algo "contra" Mário Viegas. Claro que não tenho. Conheci bem Mário Viegas (1948-1996), com quem fiz serviço militar. Foi uma figura extraordinária da cena portuguesa e a sua ironia faz imensa falta.

Aqui fica a sua "Cantiga dos Ais", um texto (um belo retrato nosso, traçado a ironia) de um poeta português que deveríamos conhecer melhor, Mendes de Carvalho (o qual, a talhe de foice, convém não confundir com o homónimo angolano, também bom poeta, que assina sob o nome de Uanhenga Xitu).

domingo, março 14, 2010

Emprego

Julgo que o nome era Silva. António Pedro de Vasconcelos contou-nos, há dias, em Paris, que ele era o funcionário que tinha por missão, nos tempos que antecediam o 25 de Abril, transportar entre o jornal "O Século" e os serviços da Censura (que o marcelismo crismou de "exame prévio") as provas tipográficas que eram submetidas à vistoria, antes da impressão das publicações. Era um vaivém diário constante, da rua do Século à rua da Misericórdia, até se obter a autorização final que permitisse dar ordem de preparação das edições. 

A.P. de Vasconcelos dirigia então o "Cinéfilo", uma revista do grupo controlado pelo jornal - onde figuravam algumas outras, como "O Século Ilustrado" ou a "Modas & Bordados". Sem exceção, tudo tinha de ir à censura, pela mão diligente do Silva, uma figura simpática, que já fazia parte da rotina da casa, bem conhecido de todos os jornalistas.

No dia 25 de Abril de 1974, a manhã estava, como se compreenderá, a ser muito confusa. Marcello Caetano ainda não se tinha rendido, o Carmo ainda não fora ocupado por Salgueiro Maia, a sorte da Revolução estava ainda longe de definida. Soube-se, porém, que o diário "República", muito próximo dos meios democráticos, tinha decidido arriscar e fizera já uma edição especial, sem se sujeitar ao controlo da censura. A vontade dos jornalistas de "O Século" e restantes publicações era, naturalmente, idêntica.

Entretanto, imbuído da rotina profissional, chega o Silva, para recolher as provas da edição seguinte do "Cinéfilo". A.P. de Vasconcelos diz-lhe que não tenciona mandar as provas do "Cinéfilo" para visto prévio. O Silva insiste, sem sucesso, e fica por ali, sem rumo certo, não podendo levar a cabo a sua tarefa habitual. Com as horas a passar, com o adensar das notícias de que o regime se estava a esboroar, parte do pessoal do jornal sai para a rua. A.P. de Vasconcelos convida então o perturbado Silva a acompanhá-lo à zona próxima da rua da Misericórdia, onde se sabia ser grande a movimentação popular, bem perto do quartel onde Marcelo Caetano se refugiara. Por ironia, era também nessa artéria que, num singular contraste, se situavam as instalações do "República" e as da da censura, cada uma do seu lado da rua. 

Aí chegados, o ambiente não enganava: a democracia estava na rua, o edifício da censura estava já como que isolado. A.P. de Vasconcelos, que comungava a alegria comum aos milhares de pessoas que enchiam a zona, nota que a cara do Silva era tudo menos felicidade. Seria saudosismo pela queda do regime? A interrogação não durou muito. O pobre do Silva pergunta-lhe, angustiado: "Ó senhor Vasconcelos, e agora o que é que eu vou fazer?"

O 25 de Abril não foram só alegrias.

sexta-feira, março 12, 2010

Jospin

Lionel Jospin foi primeiro-ministro socialista da França (1997-2002), em "coabitação" com o presidente Jacques Chirac. Afastou-se da política ao ser derrotado na primeira volta das eleições presidenciais de 2002, onde ficou atrás de Jean-Marie Le Pen.

Jospin assumiu, a partir de então, uma postura bastante discreta, não obstante ter publicado alguns livros e, aqui e ali, ter feito algumas declarações públicas, quase sempre ligadas à defesa da sua "herança" governativa. Já sem ambições para as eleições presidenciais de 2012, publicou, há algum tempo, o seu livro "Lionel raconte Jospin", uma conversa com dois jornalistas que pretende ser o seu inventário de memória política.

O livro traz poucas surpresas, para quem seguiu com algum cuidado o percurso de Jospin. Porém, traz a sua versão sobre a sua polémica permanência na órbita trotskista já como militante do PSF, adianta alguns dados às relações entre os socialistas e os comunistas franceses nos anos 80, introduz elementos interessantes sobre as tensões que emergiram na "coabitação" e, muito em particular, revela a sua quota de desilusão quando foi confrontado com aspetos do passado de François Mitterand. Uma novidade, pelo menos para mim: Jospin só por falta de apoios expressos não foi tentado a ser o "challenger" socialista contra Nicolas Sarkozy, nas eleições presidenciais de 2007.

Villaret

João Villaret (1913-1961) foi um "diseur" de poesia que marcou muito a minha geração. Dele guardo a imagem "a-preto-e-branco", como era então a (única) televisão desse tempo. Os seus discos, que recomendo vivamente, são uma apelativa introdução à poesia portuguesa.

Hoje, por uma qualquer razão, aparece-me partilhar esta sua vibrante versão do Cântico Negro, de José Régio. Ouçam-no bem, até ao fim.

quinta-feira, março 11, 2010

A conversa

O nosso embaixador, recém-chegado àquele país africano de expressão portuguesa, tinha toda a boa vontade do mundo na sua agenda de ambições, para os anos de trabalho que o esperavam. As relações políticas entre os dois países estavam muito tensas, fruto de traumas históricos ainda não ultrapassados, a que se somavam regulares polémicas conjunturais. Porém, o nosso homem vinha de espírito aberto e queria fazer a diferença.

Uma das suas primeiras visitas foi à Associação de Escritores locais, um órgão que, não obstante a ortodoxia política que o dominava, reunia alguns nomes de reconhecido mérito literário, de que lera algumas obras. Era um gesto de "soft diplomacy" em que colocava algumas esperanças, com vista a quebrar o gelo prevalecente.

O presidente da Associação era um velho resistente, que havia estado envolvido na luta contra a presença portuguesa, conhecido pelo seu radicalismo ideológico. Contudo, como o embaixador reconhecia, tratava-se de um escritor de apreciável qualidade.

E foi isso mesmo que o embaixador começou por dizer, no início da visita de cortesia que lhe fez. Nela adiantou também algumas ideias que trazia para a sua ação na área da cultura - desde os contactos entre academias, o intercâmbio de experiências, a oferta de bibliotecas, bolsas de estudo, etc. Reiterou a sua disponibilidade, bem como a da Embaixada que agora chefiava, para facilitar tudo o que pudesse ajudar a aproximar ambas as literaturas.

Quando acabou de falar, esperou uma resposta. Nada. Em seu lugar, instalou-se um silêncio que se começou a "ouvir" na sala. Curiosamente, deu-se conta de que não tinha ainda escutado a voz do Presidente, que apenas o saudara com um cumprimento de mão à entrada. Ele permanecia na sua cadeira, com uma cara muito branca, num esgar giocôndico indefinível,  por detrás da barba grisalha, a qual, à época, era como que uma marca corporativa da intelectualidade branca e mulata local. Mas, sempre, imóvel e em silêncio.

Para quebrar o gelo desses segundos de vazio, embora com alguma artificialidade, o embaixador ensaiou mais umas frases, desta vez falando do novo país onde estava, dos familiares distantes que por ali tinha, do seu interesse em visitar certas regiões que estavam na memória coletiva de Portugal. Os minutos esgotaram-se, tal como a sua intervenção, e a reação do seu anfitrião foi exatamente a mesma, isto é, nenhuma. 

A diplomacia ensina algumas coisas e uma delas é a capacidade de não revelar a menor surpresa, mesmo perante aquilo que nos choca. E conseguir sair por cima, com arte e até com gozo. Foi o que fez: agradeceu a "simpatia" do acolhimento, disse do gosto que tinha tido em "trocar impressões" com uma figura tão conhecida do mundo cultural do país em que estava acreditado e, com alguma ênfase, sublinhou o prazer que teria, numa próxima oportunidade, de receber o presidente da Associação na Embaixada, "para continuarmos este promissor intercâmbio".

Fora tão longe na provocação quanto a "lata" e a prudência aconselhavam. Fez menção de se levantar, no que logo foi imitado pelo seu potencial interlocutor, sempre silencioso, que esboçou um sorriso, talvez de alívio pelo fim do exercício, na melhor das hipóteses de  subtil reconhecimento pela "capacidade de encaixe" do embaixador. Este despediu-se com um aperto de mão, caminhando para o carro que o esperava no calor abrasador da tarde. Dentro dele, o ar condicionado esfriou-lhe alguma raiva. Dentro de si, sentiu que tinha ganho o dia: aprendera sobre o país, nesses muito breves minutos, uma bela lição.

quarta-feira, março 10, 2010

Partidas

A morte de um familiar que há muito não visitava projetou-me na memória um filme rápido com todas as recordações que sobre ele alimento. São imagens de tempos diversos das nossas vidas, nas quais se cruzam, entretanto, várias outras figuras do passado, mais próximas ou mais distantes, que estes momentos acabam inevitavelmente por convocar. Nestas ocasiões, atravessa-me sempre uma sensação de um tempo que se desperdiçou, de conversas que poderia ter tido e deixei de ter, de um convívio que poderia ter alimentado, de outra forma e com outra intensidade. Sei tudo isso, como também sei, muito bem, que outros familares e amigos estão precisamente nas mesmas circunstâncias e que, por esta inércia e comodismo que me marca os dias, em alguns casos acabarei por os não rever. E sei também que, quando desaparecerem, terei uma reação em tudo idêntica. Às vezes, dou comigo a desculpar-me de tudo isto com a vida errante que levo, quando se trata apenas de um imperdoável descuido com os afetos. Mas regresso sempre à justificação auto-complacente: não acontece isto a toda a gente?

Europa

A Europa esteve no centro de duas conversas diferentes e bem distintas que tive: um jantar ontem com o escritor Amin Maalouf e um almoço hoje com o conselheiro para os assuntos europeus do presidente Sarkozy, Fabien Reynaud.

Duas gerações, duas inteligências brilhantes e duas perspetivas que se cruzam na existência de interrogações - embora não as mesmas - que também partilho.

A sensação que, quase sempre, retiro das conversas que por aqui vou tendo é que a Europa e o seu futuro são hoje muito mais um menu de interrogações de que um manual de respostas credíveis para os problemas que temos perante nós. E que o grau de euro-entusiasmo, para aqueles que o partilham, varia na razão direta da fé que cada um coloca na eficácia das novas instituições, cujo dealbar - todos concordam - se mostra algo titubiante . 

terça-feira, março 09, 2010

Futebol

Embora eu navegue por outras ondas futebolísticas, gostava de deixar claro que não me comprazo minimamente com o naufrágio portista perante o Arsenal. A derrota de equipas portuguesas no plano internacional reflete-se sobre todo o futebol português, degrada a nossa imagem desportiva coletiva e - embora haja quem talvez não saiba isso e que tal pode vir a afetar, no futuro, o seu clube - conduz à redução da quota de equipas nacionais nas competições europeias.

Pode ser que eu esteja enganado, mas é minha convicção que o futuro dos clubes portugueses nas altas competições internacionais tenderá a ser, cada vez mais, sombrio. Com efeito, tendo em atenção a progressiva perda de capacidade financeira dos clubes nacionais, que lhes não permite manterem em Portugal os seus melhores valores, apenas na seleção nacional será possível depositar alguma esperança de uma boa representação do nosso futebol . Tal como já sucede com o Brasil, os melhores jogadores tenderão, no futuro, a ser cativados pelos campeonatos estrangeiros, mais ricos e mais atrativos.  

O Futebol Clube do Porto foi, nos últimos anos, uma exceção a esta regra - que se aplica já, de há muito, ao Benfica e ao Sporting. Infelizmente, parece hoje destinado a segui-la.

África(s)

Notei que a cara do nosso embaixador não era das mais felizes. Vim a saber que o ministro dos Negócios Estrangeiros o tinha informado, logo no início da nossa visita oficial ao país africano onde estava colocado, que o seu próximo destino seria... um outro país africano. Curiosamente, um país onde, anos atrás, estivera já em posto por quatro anos.

Ter passado, em duas vezes, oito anos em África, com a perspetiva de um período idêntico numa capital africana onde já servira, aliás bastante distante de Portugal, era uma ideia que não agradava, compreensivelmente, àquele meu colega. Não obstante o grande interesse profissional dos postos, a vida em África acarreta quase sempre problemas específicos, pessoais e familiares, pelo que, muito legitimamente, ansiaria ter agora um outro destino geográfico. O ministro, contudo, não lhe dera qualquer alternativa.

À noite, no jantar na residência oficial do ministro africano que nos recebia, a conversa derivou, a certa altura, para a Revolução do 25 de Abril. Pedagógico, o ministro português explicou ao anfitrião, com algum detalhe, as motivações subjacentes à revolta contra Marcello Caetano. Dentre essas razões, elencou os problemas de carreira e as pulsões democráticas que atravessavam a tropa, para concluir: "Além do mais, os oficiais portugueses estavam cansados de fazer várias comissões de serviço em África".

Foi aí que se ouviu, num sonoro aparte em português, a voz do meu colega em posto: "Como eu os compreendo!". Dei uma gargalhada de solidariedade, cujo significado poucos entenderam, com exceção do nosso ministro. Do outro lado da mesa, o António sorriu.

segunda-feira, março 08, 2010

Música na Embaixada

O dia 8 de Março, dia internacional da mulher, foi ontem comemorado com um concerto musical na Embaixada.

A soprano Eduarda Melo (na foto), acompanhada pela pianista Joana David, apresentou a um público de cerca de 100 convidados um recital variado, iniciado por canções de António Ramos Rosa com música de António Pinho Vargas, seguidas de peças de diversos compositores - Debussy, Mozart, Puccini, Menotti, Bizet, Lehar, Britten, Cole Porter e Gershwin.

Foi a 6ª sessão do programa musical Entre Partituras/Entre Partitions, organizado pelo Instituto Camões/Embaixada de Portugal, que tem vindo a apresentar talentos portugueses em diversas áreas musicais.

domingo, março 07, 2010

Franqueza

A linguagem diplomática internacional tem alguns códigos que importa conhecer, para melhor se entender o que pode estar por detrás de algumas declarações públicas.

Uma dos conceitos-chave em que convém atentar é a eufemismo "franqueza". Se acaso se depararem em algum comunicado, relatando um encontro internacional, a nota de que, durante uma reunião, houve um "debate franco" ou uma "franca exposição de posições", podem ficar cientes de que o ambiente foi tenso, confrontacional, muito duro e sem cedência de posições.

Não se pense que esta realidade se restringe a negociações a níveis técnicos. Muitas vezes, em discussões políticas a nível ministerial, ou mesmo primo-ministerial, as tensões sobem a patamares impensáveis. Mesmo entre aliados. Por exemplo, dentro da União Europeia, para quem não saiba.

Uma noite, no auge de um processo negocial complexo, estava com o meu amigo e deputado europeu Elmar Brok, democrata-cristão alemão, algures num bar de hotel, quando vimos passar um responsável político europeu, saído de um jantar "informal" com os seus pares. A nossa curiosidade sobre esse jantar era grande, porque, do resultado da discussão que nele deveria ter lugar, poderiam depender algumas importantes decisões no dia seguinte.

Pela cara carregada dessa figura política, depreendemos que o debate havia sido tenso. Não imaginávamos, contudo, quanto o fora. Convidámo-lo a sentar-se, desejosos de saciar a nossa curiosidade. Disse-nos que necessitava de um bom "Armagnac" duplo, para se recompor. Nunca lhe fora dado assistir a uma discussão tão divisiva dentro da União Europeia. Ao que nos contou, e perante um comentário que ele próprio fizera, recebera de um seu par, de uma grande potência europeia, a "elegante" reação: "A tua opinião sobre isso não interessa. Se voltasse a haver uma guerra na Europa, o teu país quase não teria tamanho para sepultar todos os mortos dessa guerra". Não recordo a resposta que ele teria dado a essa provocação, talvez porque eu me tivesse fixado obsessivamente nesta chocante frase.

Lembrei-me ontem da questão da "franqueza", ao ler a dura e justa resposta dada pelo primeiro-ministro grego, Georgios Papandreou, perante os bem lamentáveis comentários surgidos na imprensa alemã, a propósito da corrupção no seu país, realidade que não enjeita mas que se recusa - e muito bem! - a assumir como identitária do seu país: "os gregos não têm a corrupção nos seus genes, da mesma maneira que os alemães não têm o nazismo nos seus".

Costa Martins (1938-2010)

Morreu José Costa Martins, um dos grandes heróis da madrugada de 25 de Abril. Com um fantástico "bluff", tomou sozinho e neutralizou o funcionamento do aeroporto da Portela, convencendo tudo e todos que tinha imensas tropas sob o seu comando. As quais só chegariam bem mais tarde.

Era um figura seca e determinada. Conheci-o mal. Recordo-me apenas de ter estado em algumas reuniões com ele, no Palácio da Cova da Moura, em Agosto/Setembro de 1974, quando eu era assessor da Junta de Salvação Nacional e ele confrontava, com coragem, o general Galvão de Melo, com o (hoje general) José Manuel Costa Neves, chefe de gabinete deste último, a procurar construir entre ambos cada vez mais impossíveis pontes. 

Viria a ser ministro do Trabalho, cargo em que foi alvo de um miserável processo de calúnias, que a justiça viria a desmontar, mas de que, na opinião pública, nunca se libertaria, situação que ele sofria com estoicismo.

Na sequência dos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, episódio durante o qual teria um comportamento no mínimo muito controverso, fugiu para Angola, onde acabou por envolver-se nos conflitos de 27 de Maio de 1977. Escapou então, por muito pouco, a ser fuzilado.

Morreu ontem num acidente com um monomotor, ele que tinha sido um orgulhoso oficial da nossa Força Aérea.

Orfeão

Acabo de saber, pelas notícias, que faleceu o maestro Gunther Arglebe. 

A memória dizia-me algo sobre o nome. Tinha razão: a ele se deve, numa infausta tarde de 1967, o "chumbo" que eu e o Albano Tamegão tivemos, naquela que seria a nossa comum e promissora entrada para o Orfeão Universitário do Porto. No meu caso, recordo, com o muito audível argumento de que não tinha "uma voz que interessasse" ao Orfeão. 

O maestro tinha, claro, toda a razão do mundo. A verdade, porém, é que, a partir daí, se perderam duas inestimáveis vocações...

Aqui fica, para compensação e por boa sugestão, o "Desafinado" por  João Gilberto ou, a pedido de outras famílias, por  António Carlos Jobim.

sábado, março 06, 2010

Agricultura

Não deixa de ser impressionante a importância que a agricultura mantém ainda no imaginário francês. A realização do Salon de l'Agriculture, que termina este fim-de-semana em Paris, é a mostra de um mundo com uma identidade fortíssima, cujo peso político, embora de declínio, é ainda considerável. O modo como os políticos, com natural favorecimento dos setores conservadores, exercitam a sua coreografia entre os agricultores presentes, é prova de que, por aqui, a "lavoura" está viva e recomenda-se, não obstante também alimentar um recorrente discurso de queixas. 

Como português e como europeu, continuo a ter sérias dúvidas sobre o equilíbrio, racionalidade e justiça do atual desenho da Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia, até porque ela foi estruturada num outro contexto histórico-económico, ligado às preocupações de autonomia alimentar europeia, bem presentes no pós-guerra. E estas minhas dúvidas, estendem-se, bem entendido, ao modo como as ajudas da PAC se distribuem pelos bolsos portugueses que delas beneficiam. Devo, porém, confessar que, ao viajar pela França e ao verificar que o ordenamento do seu território e os estímulos à fixação da sua população devem muito aos apoios dados à agricultura, questiono hoje algumas das minhas antigas objeções à aplicação da PAC. 

Nada disto implica que não devamos debater, com seriedade e firmeza, a questão da hierarquização e do posicionamento relativo das despesas agrícolas dentro do orçamento comunitário. Não podemos admitir que, por supostos e contestáveis direitos históricos adquiridos, seja o dinheiro europeu a contribuir para a existência de duas Europas agrícolas.

sexta-feira, março 05, 2010

Nostalgia?

A publicação simultânea de vários livros sobre o general De Gaulle suscitou ontem um curioso debate televisivo entre os quatro autores. Nas diferenças que projetaram, ficou claro que todos entendem que se vive em França um tempo de nostalgia, para alguns de regresso a num ambiente de um certo "défaitisme", em que a invocação do general, pela direita e certos setores da esquerda, pode aparecer como um reflexo de uma crise de identidade que o país estará a atravessar, agravada pelo confronto que faz entre a realidade contemporânea e a ideia que sempre alimentou do seu papel no mundo. (Para um português, para quem o "sebastianismo" é identitário, foi uma sensação de "déjà-vu").

Para os autores, a algumas questões de raiz europeia, como a relação desigual que a França hoje sofre com a Alemanha unificada ou a deslocação do controlo normativo ("em inglês") para Bruxelas, somam-se agora tensões internas de natureza nova que levam à discussão da sua própria identidade, originando, cada vez mais, discursos nacionalistas de raiz protecionista e "autarcista", com crescentes laivos de rejeição de aberturas ao exterior.

Os escritores foram unânimes em considerar que, no fundo, esta "degaullo-nostalgia" pode ser lida como um implícito voto de desconfiança na capacidade dos políticos atuais. Valha a verdade que, cada um convocando os seus fantasmas históricos próprios, a maioria dos países europeus parece sofrerem de um "malaise" similar, face ao qual - e isso é indiscutível - a ideia europeia não tem constituído um bálsamo com um mínimo efeito atenuador. Bem pelo contrário.

Michael Foot (1913-2010)

O Tim Tim no Tibete, atento como sempre a certas memórias, trouxe-me, há pouco, a notícia da desaparição de Michael Foot. Não se deve dizer isto, mas eu pensava que ele já havia morrido.

Não sei a quantos este post possa interessar, dado que Foot, nos dias de hoje, não será muito conhecido. Porém, ele foi uma figura interessantíssima da vida política britânica, que chegou à liderança do Partido Trabalhista, num registo ideológico tão radical que acabou por ajudar a manter o seu partido longe do poder.

Em 1983, o seu programa eleitoral, com 700 páginas, foi crismado por Gerald Kaufmann como "the longest suicide note in history"... Incluía: saída das Comunidades Europeias, desarmamento militar unilateral, nacionalizações várias, subida drástica de impostos, extinção da Câmara dos Lordes, etc. Ficou "à porta" da abolição da monarquia! 

Quase tão ácido como Kaufmann, o conservador Chris Patten chamava a Foot "a kind of walking obituary for the Labour party", o que levou Kempsell à caricatura que abre este post.

Michael Foot teve uma longa e brilhante carreira como jornalista, durante a qual sempre manifestou, de forma enfática, as suas ideias, abertamente tributárias do marxismo, bem patentes nos seus múltiplos e muito bem escritos livros (a sua biografia de Aneurin Bevan é magnífica e dizem-me que a de H.G. Wells também, numa perspectiva política). Como parlamentar, foi um orador notável, tendo estado presente de forma muito ativa em momentos importantes da história do trabalhismo britânico. Foi ministro de Harold Wilson e sucedeu a James Callaghan como líder, durante a chefia conservadora de Margareth Thatcher. A sua vitória arruinou as muito mais fortes hipóteses de Denis Healey chegar a primeiro-ministro, contribuindo assim para o irónico título que este iria ganhar entre os socialistas britânicos: "the best prime minister we never had"... Deixou o partido a Niel Kinnock, o qual começou a abrir caminho à "modernização" que levaria o "Labour" ao poder, com Tony Blair.

Numa nota (concedo) digna da imprensa cor-de-rosa, gostava de dizer que a morte de Foot não ajuda a resolver o eterno "mistério" que atravessa os exegetas da vida íntima da esquerda do trabalhismo britânico: o seu suposto romance de juventude, durante umas famosas férias em França, com a também antiga ministra Barbara Castle, já há anos desaparecida. Quem, como eu, leu há muito as referências feitas por Foot ao facto e as memórias de Castle ficou sem confirmação absoluta desse "affaire", cuja hipotética existência, por si só, pode ajudar a explicar tanto algumas "políticas de aliança" como certos dissídios no seio do "alto" Labour.

quinta-feira, março 04, 2010

Tristeza

Uma análise de duas páginas que o "Libération" ontem trouxe sobre Portugal foi ilustrada pela fotografia de três jovens. Como o texto foca o problema  das condições de precariedade no nosso mercado de trabalho, é natural que as caras não se mostrem sorridentes e bem dispostas - ou melhor, que o jornal tenha optado por fotografias que não contrastassem com o sentido do texto.

Com todo o subjetivismo que esta minha análise possa ter, sou de opinião, porém, que o "Libération" se sentiu subliminarmente tentado a seguir uma ideia estereotipada, que, sobre os portugueses, subsiste no imaginário de muitos franceses: gente grave, de ar sério, um tanto formal e reservada, que às vezes parece "assustada" com o mundo. Como todas as caricaturas, esta minha leitura também vale o que vale.

Ficou-me desde sempre na memória a capa da 2ª edição (ver supra) do livro "Portugal", de Franz Villier, publicado na Petite Planète, a seguir ao 25 de Abril, que figura na imagem. O que nela se vê é revelador: uma jovem portuguesa de ar vagamente suburbano, já com alguns traços de modernidade na discreta maquilhagem, num fundo tradicional, marcada por uma quase endémica tristeza, que a luz ambiente como que sublinha. A graça - se é que isto tem alguma graça - é que a capa da 1ª edição do mesmo livro (ver infra), feita ainda ao tempo do Estado Novo (1957), era igualmente caricatural: uma mulher rural, xaile negro, olhar neutro e parado, com um pálido roxo pascal a atenuar o branco-e-preto original. A rue Scribe, que então controlava a "diplomacia pública" portuguesa em França, tinha feito o seu trabalho...

Comprazemo-nos, historicamente, a contrariar o "les portugais sont toujours gais", da opereta de Lecocq, que foi buscar a imagem a Alphonse Allais, ao espalharmos, como Mariza o canta tão bem
 
"sempre que se ouve um gemido, 
numa guitarra a cantar, 
ó gente da minha terra,                
agora é que eu percebi,
esta tristeza que trago,
foi de vós que a recebi.

Depois, não nos podemos queixar do "Libération"...  


Greve

Uma greve é um gesto coletivo de protesto que resulta do usufruto dos direitos que a democracia a todos concede. Quem a faz fá-lo por razões que considera importantes e, só por isso, essa sua atitude deve ser respeitada e ponderada.

Desde que cheguei a Paris, há mais de um ano, esta é a terceira vez em que a Embaixada quase se esvazia, pelo exercício do direito à greve do pessoal administrativo.

Esta nota não se prende com as razões invocadas, liga-se ao efeito sobre o quotidiano do serviço.

Para quem não tem razões para fazer greve, a Embaixada, nestes dias, muda completamente de perfil, nos seus corredores instala-se um silêncio ou um mero rumor, como que se os passos dos que ficam fossem dados sobre veludo.

A matemática das bolachas

Quase todas as madrugadas, pé-ante-pé, para não suscitar críticas caseiras, deslizo até à cozinha em busca de um sustento complementar, porq...