sábado, março 06, 2021

Ideias avançadas

“Tem ideias avançadas!”. Demorei alguns anos até decifrar o que o meu pai queria dizer com esta expressão, quando a aplicava a alguém. Com isso, ele pretendia significar que essa pessoa era comunista ou que andava lá próximo. Auto-qualificando-se sempre de “republicano”, querendo com isso deixar claro que era democrata (também não gostava dos monárquicos, é verdade), nunca lhe detetei qualquer simpatia (mas também nenhuma particular antipatia) pelos comunistas. Tinha-lhe agradado, claramente, que os comunistas tivessem atazanado o regime salazarista - a “situação” política que, acima de tudo, ele detestava. Mas as ideias do PCP, depois do 25 de abril, se bem que nunca o tivessem assustado (como aconteceu a muita gente que nos era próxima), ficaram também sempre longe de o entusiasmar. Foi a única pessoa a quem sempre ouvi pronunciar “marxismo” com o “x” a soar a “ch”, como que a querer marcar uma distância (sorria, quando eu pretendia corrigi-lo). E recordo bem a perplexidade com que viu a candidatura de Salgado Zenha, a figura que mais admirava dentro do PS, a merecer a simpatia de muitos comunistas.

Dei comigo a pensar como reagiria o meu pai se, no dia de hoje, eu lhe dissesse que o PCP faz 100 anos. Provavelmente, diria: “Ora essa! Eu nasci antes deles, mais de uma década!”. Mas não posso perguntar-lhe.

sexta-feira, março 05, 2021

A viagem do papa

Pode ter sido uma ideia um pouco doida, em tempos de pandemia. Um papa ir ao Iraque, numa altura destas, não lembrava a ninguém! Mas uma das razões pela quais o papa Francisco tem uma certa graça, para quem, como eu, nada tem a ver com a sua doutrina, é o facto de, por vezes, ele ter atitudes e “saídas” relativamente originais. Este papa parece-me ser, estruturalmente, uma “boa pessoa”. E não tive a mesma opinião de alguns outros. Este gesto, em terra “alheia”, num ambiente em que um discurso de paz, por muito ineficaz que seja, tem sempre um significado positivo, é um gesto digno de apreço e admiração. De vez em quando, embora nem sempre, a igreja católica escolhe bem. Foi manifestamente o caso deste papa.

quinta-feira, março 04, 2021

Doer

Pedro Nuno Santos é um “doer”, palavra inglesa que significa alguém que ”faz coisas”. Mostrou já eficácia na greve dos camionistas e em outras ocasiões difíceis. Mas “doer”, em português, tem outro significado e Pedro Nuno Santos está, por estas horas, a aprender isso mesmo.

Uma questão de acento

Tive um primo, que já se foi há uns anos, que tinha como máxima: “Deus disse que nos amássemos, não que nos amassemos”. Que eu saiba, ele nunca chegou a andar pelas redes sociais.

Um restaurante diferente



A porta fechou, há bastante tempo. O seu dono também desapareceu, há muito. Francisco Queiroz tinha vindo de África, nessa segunda metade dos anos 70, quando muita outra gente também veio de África.

Começou por lançar o “Varina da Madragoa”, na rua das Madres, até que se fixou no “Sua Excelência”, na rua do Conde, não muito longe do Museu de Arte Antiga. Há pouco, tirei esta foto da porta.

Queiroz era uma figura bastante interessante, para alguém que dirigia um restaurante. Fazia parte daqueles donos da casa que fazem gala que não nos esqueçamos de que são... os donos da casa. Há quem se irrite com o estilo, há quem ache graça. Eu, sem um esforço por aí além, procurei sempre sobreviver entre esses dois registos. Não tenho, por feitio e à partida, uma excessiva paciência para aquelas maneiras, mas divertia-me aquela forma de estar, por ser essa precisamente a diferença que marcava a casa. 

Era um restaurante com poucos lugares, com um pátio traseiro simpático e preços um pouco “puxados”. Nesse tempo, ali na Lapa, como no resto de Lisboa, encontrava-se sempre um lugar para estacionar (até no Bairro Alto!).

Reservava-se, entrava-se, havia uma zona para um copo prévio à refeição e, não se sendo íntimo, como nunca fui nem pretendi ser, começava-se, invariavelmente, por ser tratado de uma forma snobe, num estilo muito afetado, criando uma distância quase artificial e, para muitos, ligeiramente intimidatória. Essa era a imagem de marca que Francisco Queiroz deliberadamente queria transmitir. E que colava muito bem à sua pele.

Sejamos justos que era essa rara coreografia, para além da boa comida, a razão um pouco masoquista que ali nos levava. E que também nos motivava a convidar para lá amigos estrangeiros, para apreciarem aquela bizarria, essa aposta restaurativa muito distinta que o “Sua Excelência” representava então em Lisboa.

Para além da oferta culinária, que estava na “média alta” da época, o grande “número” da noite era o enunciar da lista, que não existia em formato de papel e que Francisco Queiroz debitava, se fosse necessário, em várias línguas.

Uma noite, no meio dessa longa recitação, decidi tomar uma nota escrita sobre um prato que ele tinha acabado de referir e que temi esquecer, ao fim da longa lista. Queiroz ofendeu-se, ou fez de conta que se ofendeu, afivelando o carão de desagrado que lhe era muito típico: “O que é que está a fazer?” Expliquei que tinha receio de me esquecer do prato. Ele olhou para mim do alto (ele olhava sempre do alto!), retorquindo: “O menino não tem nada que tomar notas! Ora essa! Pede para repetir e eu repito!” E lá continuou a litania.

Numa outra ocasião, levei por lá um amigo brasileiro que, além de um pouco surdo, tinha dificuldade em seguir os detalhes das descrições dos cozinhados com que Francisco Queiroz se comprazia. E, não reparando que falava demasiado alto, disse-me, pensando estar a fazê-lo em voz baixa: “Não entendo nada do que o “veado” diz!” A noite esteve para acabar por ali, com o dono da casa a dar mostras de ofendido, e com real razão, só não nos pondo com outro dono por consideração por mim, que organizara o jantar e tinha começado por elogiar a casa.

Num outro jantar em que uma convidada, no final da refeição, sem nada a ver com o que tinha comido, se sentiu mal, a conta final, num gesto de grande delicadeza, veio descontada dessa despesa. Nunca esqueci esse gesto.

Nesta memória, deixo um texto, que “apanhei” num artigo de jornal, e que reproduz, ipsis verbis, a apresentação feita das entradas que o “Sua Excelência” num certo dia oferecia. Por ele podem imaginar a riqueza da descrição que se seguiria, no tocante aos pratos principais e às sempre excelentes sobremesas. Noto que, na explicação dos pratos, era vulgar Francisco Queiroz dizer que eram “como a tia Maria do Carmo fazia” ou “como lá em casa a mãe preparava” ou coisas assim.

Aqui vai: 

Temos uma sopa de peixe, que é a sopa do dia, uma especialidade da casa, uma sopa alentejana que se faz num instantinho, se quiserem, e ainda temos um consome com vinho da Madeira que também há todos os dias. (Espere aí que ainda não acabei!). Nas entradas propriamente ditas temos umas gambazinhas deste tamanho chamadas “à moda de Moçambique”, que são abertas primeiro, muito bem temperadas, e depois, na altura de servir, são fritas em manteiga com molho de piripiri. Temos um belíssimo espadarte fumado e também um cocktail de camarão dentro de uma pêra abacate. Além disso, há uns cogumelos salteados com natas e vinho da Madeira, numas caçarolazinhas de porcelana. Uns ovos en cocotte, feitos no forno em banho Maria, com azeitonas, bocadinhos de fiambre e natas. Por fim, temos um funcho gratinado no forno... O funcho? Bem, há uma erva, mas essa erva nasce de um bolbozinho que está debaixo da terra e é essa raiz que nós empregamos na culinária. Parece uma cebola achatada, é muito saborosa. Primeiro, coze-se em água e sal, corta-se em quatro bocados que se põem num tachinho de barro (Espere aí que ainda não acabei!), com uma fatiazinha de fiambre, molho branco e quejo ralado, é uma delícia! Isto é o que nos temos para começar.”

Fazem falta restaurantes destes em Lisboa! Agora, num estilo só aproximado, na melhor das hipóteses, o que se vê por aí, mas felizmente não muito, já não é este tipo de sobranceria afetada a soar, com graça, a uma aristocracia deliciosamente decadente, mas sim atitudes de “confiança” a roçar a má educação ou, então, o estilo “casual arrogant” de uns miúdos que servem à mesa como que fazendo um frete, dando ares de estarem a ganhar umas horas com o “tio”, no meio de um mestrado para encher o tempo.

quarta-feira, março 03, 2021

“A Arte da Guerra”


Num “podcast” do “Jornal Económico”, pode ver e ouvir a análise aos 10 anos das “primaveras árabes”, à crise na Arménia e no Cáucaso do Sul, acabando numa perspetiva sobre a primeira ação militar da administração Biden no Médio Oriente e o modo como poderá evoluir a sua relação com a Arábia Saudita.

Pode ver aqui.

A lua de mel



Joe Biden fez um excelente discurso na Conferência de Segurança de Munique, que anualmente reúne figuras do mundo político-militar europeu e norte-americano. A intervenção poderia ter sido escrita por um europeu, de tão simpática que soou a ouvidos deste lado do Atlântico. Nas menções à União Europeia e à NATO, no tocante ao multilateralismo ambiental, nas equilibradas referências críticas à Rússia e China - tudo o que ficou dito foi ao gosto europeu, por muito que saibamos que nem toda a Europa toca exatamente pelo mesmo diapasão.

Biden é um óbvio anti-Trump e sabe que, ao mostrar sê-lo, ajuda a sarar o traumatismo que o seu antecessor provocou por estes lados. Diplomaticamente, vive-se agora um tempo de “lua de mel”, mas esses períodos têm sempre, como se sabe, um prazo de validade.

O novo presidente americano não disse até onde está disposto a ir se Berlim mantiver a ideia do Nordstream 2, o “pipeline” para abastecimento de gás russo. E também não esclareceu o que irá pedir aos seus aliados europeus em matéria de pressão sobre a China - que se sabe ser, para Washington, muito mais do que um retórico “adversário estratégico”. Neste tema, também não disse o quanto lhe desagradou a pressa na finalização do acordo sobre investimento, firmado entre a União Europeia e a China, num tempo coincidente com a sua posse. E não elaborou sobre o que pensava da “autonomia estratégica” que, no seio da União, alguns anunciam como desejável e que outros acham ser, no limite, menos compatível com os equilíbrios da NATO.

É de regra que, numa eleição presidencial americana, os europeus se sintam tentados a “votar”. Nesta última, quase ninguém se “absteve” e grande parte (nem toda, atenção!) da Europa saiu vencedora.

Mas há uma outra regra que é preciso nunca perder de vista: o presidente americano é eleito para defender os interesses dos Estados Unidos e estes, frequentemente, não são os mesmos dos dos seus aliados, por muito que uma retórica de consenso embrulhe o discurso. Por isso, a prazo, alguns dentre quantos agora aplaudem Biden vão, forçosamente, sentir-se desencantados com parte da sua ação. É da lei da vida.

Biden é uma extraordinária oportunidade para o mundo transatlântico. Mas a América já provou ser uma entidade internacional menos previsível do que aquilo a que nos tinha habituado e a Europa destes tempos é bem mais complexa do que a que se projetou nas décadas da aliança de sucesso no passado. Nem todo o desejável é possível e ser realista poupa muitas desilusões.

terça-feira, março 02, 2021

Moedas

O principal problema com que Carlos Moedas vai ter que se confrontar, na sua candidatura à Câmara de Lisboa, são as figuras que, inevitavelmente, vão aparecer a seu lado e que ele não vai poder “enxotar”.

No “Le Monde”


Então ninguém fala sobre isto?

Eduarda Lima é portuguesa e foi cá que o livro foi originalmente editado. 

Procurem-no!

Populismos


Amanhã, às 16:00 horas, não perder este debate. Promete!

A dança das cadeiras


Foi ontem anunciada a condenação do antigo presidente francês, Nicolas Sarkozy, acusado de corrupção. A sentença prevê um ano de prisão efetiva. Haverá um recurso, mas Sarkozy ficará, por ora, retido em casa, com pulseira eletrónica. O antigo presidente tem ainda outros processos a correr contra si.

Há dias, quando lia um livro sobre o sucessor de Sarkozy, François Hollande, lembrei-me de ambos. De como projetavam imagens que não podiam ser mais contrastantes: Sarkozy tenso e agitado, Hollande calmo e sorridente.

Ainda com José Sócrates como primeiro-ministro, estive no Eliseu algumas vezes, em encontros com Sarkozy. Antes, havia ido lá, em diversas ocasiões, com António Guterres, para conversas e almoços com Jacques Chirac. E também acompanhei Pedro Passos Coelho a reuniões no Eliseu, neste caso com Sarkozy e Hollande.

A reunião de Passos Coelho com Sarkozy, pouco tempo após a posse do nosso primeiro-ministro, teve lugar no “salão verde”, que fica junto ao gabinete do presidente. 

No ”salão verde”, notei que as cadeiras douradas, à volta da mesa comprida, eram todas iguais, com uma exceção: a do presidente francês, mais cómoda, com braços. Achei aquilo um pouco bizarro: o chefe de Estado estava a receber um chefe de governo, seu homólogo no Conselho Europeu, e não concedia ao seu visitante um assento idêntico. Como se Sarkozy fosse ali um “primus inter pares”. Para meu gosto, era tudo demasiado Versailles, demasiado monárquico.

Passou, entretanto, um ano. Regressei ao Eliseu, acompanhando Passos Coelho. O presidente francês tinha mudado. Era François Hollande. A reunião era no “salão verde”. Olhei as cadeiras. A de Hollande, no mesmo lugar onde antes se sentava Sarkozy, era a tal, confortável, com braços. A que estava destinada a Passos Coelho era igual a todas as restantes. 

A França passara da direita à esquerda. Os presidentes eram o oposto um do outro. No entanto, a coreografia do protocolo, no Eliseu, continuava exatamente a mesma.

Como será com Emmanuel Macron? Posso apostar que está tudo igual.

segunda-feira, março 01, 2021

Memória da política

Acabo de saber que saiu um livro sobre as relações entre ministros e secretários de Estado, que assentará no estudo dos fatores de conflito entre essas duas categorias de membros de governo. Estou com alguma curiosidade em lê-lo, confesso.

O livro cobre um período posterior àquele em que eu próprio passei por dois sucessivos governos, exercendo, por mais de cinco anos, as funções de secretário de Estado dos Assuntos Europeus, quando Jaime Gama era ministro dos Negócios Estrangeiros.

A política também é feita de “petite histoire” e, por vezes, acabamos por ser envolvidos nela, queiramos ou não. Comigo isso também aconteceu. Ao longo daquele relativamente longo período de governo, em especial nos últimos anos, correu um persistente boato, com ecos na comunicação social, de que haveria divergências, e até conflitos, entre o ministro e eu. Em algumas ocasiões foi-me colocada a questão, não sabendo se alguém a suscitou alguma vez a Jaime Gama. Pude constatar, aliás, que algumas pessoas se compraziam em difundir o rumor, como se o quisessem consagrar como um facto.

Esta semana, passam precisamente 20 anos - caramba, já! - desde a data em que deixei funções políticas, na opção que então tomei de regressar à minha carreira profissional de base. A minha saída do governo havia sido programada com quase um ano de antecedência, entre mim e o ministro, com conhecimento do primeiro-ministro António Guterres, e teve lugar depois de eu ter deixado concluídas algumas tarefas que tinha a meu cargo, no âmbito europeu, que se considerou que era importante ficarem completas - a principal das quais era a conclusão da negociação do Tratado de Nice. 

Tudo correu sem o menor drama, sem a menor pressa, em total e completo entendimento. Por coincidência, a tragédia de Entre-os-Rios fez com que a minha saída acabasse por ser simultânea com a de Jorge Coelho, com quem, curiosamente, eu entrara no mesmo dia no governo.

Naqueles bem mais de cinco anos, posso hoje revelar, nunca tive, que me recorde, uma única discussão com Jaime Gama, nunca com ele tive a menor divergência de natureza política - pelos vistos, o mote do livro agora publicado. Em duas ou três ocasiões, mas apenas em questões práticas e nunca em qualquer tema de fundo, teremos abordado algum assunto por prismas diferentes, com toda a serenidade, tendo rapidamente chegado a uma conclusão comum, confortável para ambos. O que permitiu, aliás, e constato isso com muito agrado, que até hoje continuemos a ser bons amigos. 

O publicação do tal livro e a coincidência de passarem exatamente duas décadas desde o dia em que deixei a política ativa dão-me um belo ensejo de deixar isto aqui escrito e bem clarificado. Em definitivo, “for the record”, sem aguardar hipotéticas memórias encadernadas.

Notícias do medo

Chegámos a março. Foi no mês de março, do ano passado, que começámos a ter medo. E ainda não saímos disto.

domingo, fevereiro 28, 2021

Falar de amigos



Hoje, vou falar de amigos. De alguns dos muitos que têm, como negócio, como vida, um restaurante. Dos que sofrem, por estes dias, tempos bem difíceis, com empregos em jogo, contas para pagar, responsabilidades para cumprir. Dos que se dedicaram, por anos, a gizar um projeto de gastronomia responsável, a “desenhar” uma casa e um nome, com seriedade e muito profissionalismo. Pessoas por quem tenho muito respeito e que estou “deserto”, como se diz na minha terra, por poder abraçar, visitar, frequentar. Quem são eles? Aqui vão, só alguns. Podiam ser muitos e muitos outros!

A dona Ilda, no Carvalho, em Chaves. A Alice e o Eleutério, no Lameirão, em Vila Real. O Óscar e o Tó Luís, no G, em Bragança. O António Machado, no Costa do Sol, em Vila Pouca de Aguiar. O Julião, na Casa de Armas, em Viana do Castelo. O Victor Peixoto, no Victor, em São João do Rei. A Palmira e o José António, no Bocados, em Ponte de Lima. O Pedro Nunes, no São Gião, em Moreira de Cónegos. O Renato Cunha, no Ferrugem, em Famalicão. O José António, no Cozinha do Manel, no Porto. O Rui Paula, no Casa de Chá da Boa Nova, em Matosinhos. A Fernanda e o Luís Castro, no Vallecula, em Valhelhas. A Manuela Cerca e o Eugénio Martins, no Casas do Bragal, em Coimbra. O Luís Frazão Gomes, no Tribeca, em Serr d’el Rei. O Júlio Vintém, no Tomba Lobos, em Portalegre. A Sílvia, no Retiro do Pescador, na Carrasqueira. E, em Lisboa, tantos! O Henrique, no Galito. A Justa e o José Nobre, no Nobre. O João “Espetáculo”, na Imperial do Campo de Ourique. A Vivianne, na Travessa. O Jorge Dias, no Faz Figura. O Octávio, no Gambrinus. A Petra, no Solar dos Duques. O Miguel Júdice, no Eleven. O Manuel e o Aurélio, no Poleiro. O Cardoso, no Comilão. O Duarte, no Salsa & Coentros. E tantos e tantos outros.

sábado, fevereiro 27, 2021

“Ai a loiça!”


O prédio é este, garanto! Ali ao pé da Estrela. Passei lá, há minutos, pela casa do senhor Anastácio. Toquei e ninguém respondeu, o que era estranho. Perguntei à vizinhança e disseram-me, na loja onde trabalha o Filipinho, que gosta da menina Juju, que tinham ido todos para o Porto, onde o Sporting do Anastácio (e meu) vai jogar daqui a pouco com um clube local. Caramba, e foi a família completa! Parece que quem os levou foi o Miguel, o motorista que anda com o carro de um “cartola” e que namora com a criada, a Rosa, a qual tinha ameaçado dar cabo da loiça se não a levassem também na viagem. A verdade, verdadinha, é que não estava ninguém em casa! Nem sequer o senhor Comandante, que mora no rés-do-chão, parava há pouco por lá. Com a crise que aí anda, vai-se a ver e ainda lhes assaltam a casa!

(Bom, nesse ano de 1947, ganhámos 2-1, embora o Anastácio tivesse previsto 3-1, para grande arrelia do seu conhecido portista Barata, que só foi atenuada pelo carinho das Lolas do casino de Espinho. Como será hoje?)

A noite em que passei a tratar o Sarmento de Matos por Zé


(Crónica hoje publicada em “A Mensagem de Lisboa”, jornal digital)

Ainda sou do tempo em que na rua Alexandre Herculano, quando já nos aproximávamos da Liberdade (reconheço que esta figura ambígua de retórica só me saiu assim-assim), existia uma pequena livraria, a Ática, que editava e vendia, com capa branca brilhante, a poesia de Fernando Pessoa. Descia-se um ou dois degraus, para entrar num espaço esconso. Era ali, nos finais desses anos 60, que jazia, pouco procurado, ao que me lembro, o essencial da glória editorial de Pessoa.

Fernando Pessoa de há muito que não era um desconhecido,longe disso. Na imprensa, no mundo académico e na lusofilia letrada, a sua genialidade estava bem consagrada. Isso não impedia, contudo, lá por Paris, que uma figura como Roland Barthes ainda achasse, poucos anos antes, que a obra de Pessoa tinha uma qualidade que a punha a par da de alguns seus contemporâneos da poesia portuguesa, de que ele, aliás,possuía boas referências - e citava, como exemplos, nomes como Álvaro de Campos, Bernardo Soares ou Ricardo Reis... A heteronímia ainda não viajava bem.

Se o Pessoa poeta, com muita obra por descobrir lá no célebre baú, já deslumbrava e muito quem o lia, a verdade é que o Pessoa objeto não tinha ainda nascido: a sua imagem de escriturário míope, a descer o Chiado de gabardine, ainda não passara a azulejo ou à estatuária turística, rivalizando com Santo António ou as sardinhas. E claro, não tomara ainda assento etéreo e metálico no alto da Garrett.

Tudo mudou, em poucas décadas. Pessoa entrou na moda. E de que maneira! Há hoje Pessoa por todo o lado, nesta que é, cada vez mais, a sua cidade. Desconfio que deve mesmo haver quem o leia!

Por isso, na Lisboa “pessoísta” (“pessoana” é uma outra coisa mais séria) como aquela em que estávamos a viver, nesse ano de 2013, não estranhei que alguém, um dia, me telefonasse a convidar para jantar num restaurante com o nome de Pessoa. Mas logo percebi que era uma indesculpável ignorância minha: o espaço tinha, já então, nada mais nada menos do que 164 anos!

O convite era curioso: uma associação de jovens queria ouvir-me falar sobre os lugares perdidos da Lisboa do convívio público - os restaurantes, os cafés, os bares.

Não sou totalmente inocente nesta ideia que se criou de eu ser um epicurista obsessivo. Escrever frequentemente sobre restaurantes e comidas, ser frequentador público de um bar de culto, contar em blogues e artigos historietas sobre ocasiões de convívio lúdico, em vários lugares, tudo isso deixa marcase alguma fama - e, vá lá, confesso, um certo proveito. Como costuma dizer um amigo meu: “O que te vale é teres um sólido currículo profissional. Se assim não fosse, estavas liquidado!” Se calhar, ele tem alguma razão.

O restaurante Pessoa, o tal que eu culposamente não conhecia,ficava (já não fica, porque fechou, entretanto) na rua dos Douradores, numa ampla sobreloja. Inquiri se, por um acaso,Fernando Pessoa podia ter alguma coisa a ver com o local. Não e sim, foi a resposta.

Claro que, ao tempo em que o restaurante fora criado, Fernando Pessoa ainda não era ninguém e o senhor Pessoa,que seguramente dera o nome à casa, só por milagre o tocava em linha familiar. Mas sim porque, ao que rezava a história e a biografia feita oficial, o poeta seria um frequentador habitual daquela que então se chamava “Antiga Casa Pessoa”. Ou não tivesse Bernardo Soares deixado registado: “Penso às vezes que nunca sahirei da Rua dos Douradores. E isto escripto então parece-me a eternidade”. A verdade, histórica e biográfica, faz-se destes pedaços de fantasia.

Voltemos à charla. Nela, eu faria par, foi-me dito, com um olissipógrafo que só conhecia de nome e de escrita, José Sarmento de Matos.

Aí, confesso, assustei-me um pouco. O que é que eu podia dizer, com alguma valia, ao pé de alguém que conhecia a cidade e a sua história de trás para a frente? Imaginei-me a fazer “uma triste figura”, uma expressão que trazia da infância, que o meu pai repetia muito, quase sempre acompanhada de um episódio que nos fazia rir, a propósito de alguém que fora apanhado numa sarilhada a cuja altura não tinha estado.

E lá fui eu, numa noite, para o Pessoa, com uma sala cheia de gente na casa dos vinte e trinta anos. Fui então apresentado ao José Sarmento de Matos, com quem logo esclareci as minhas limitações. Disse que apenas me propunha falar, num modo impressionista e muito pouco rigoroso, sobre o papel de socialização que alguns lugares da Lisboa, dos anos 60 e 70,tinham constituído para a minha geração. Abordaria, disse, com historietas pessoais à mistura, alguns desse refúgios da solidão, que era o que os cafés representaram, para quem, como eu, caíra algo desamparado na cidade grande. É que eu devia muito a esses espaços, havia conhecido por lá meio mundo, tinha assistido por ali a alguns episódios que achavacuriosos. Devia-lhes, assim, um gesto de memória. (Quando temos de justificar a razão por que não nos calamos, dizemos coisas deste género, já percebi há muito!)

O José Sarmento de Matos - o Zé, como passarei a referi-lo e logo perceberão porquê - adiantou que a sua abordagem seria algo diferente, começando nos lugares públicos de comes e bebes do século XVIII, até apurar o objeto da sua fala para os cafés do século XIX e início do século XX, referindo a sua importância na política e na literatura. “Un vaste programme”, reagi eu. E ele, com um sorriso: “Ah! Você conhece a expressão do De Gaulle!” (Vá lá! Tinha colhido uma coincidência sossegante).

Se eu estava já em séria dúvida sobre a valia do meu pobre testemunho, a perspetiva de me confrontar com a riqueza potencial daquela prestação deixou-me, antecipadamente, de rastos. Mas, pronto, não havia recuo, lá fomos jantar e, depois, viria a conversa. E logo se veria!

O Zé não desiludiu, claro. Fez uma intervenção magnífica, culta, bem humorada, com episódios e notas com imensa graça. Deixou, na conversa, coisas de arte, de literatura, até de arquitetura.

Um cavalheiro, já de uma certa idade, sentado sozinho numa mesa, que contrastava visivelmente com todo aquele ambiente jovem à nossa volta, fez-lhe algumas perguntas, ou comentou qualquer coisa, já não recordo bem, sobre a Lisboa dos cafés ao virar dos séculos. Falava do que sabia e, de forma evidente, sabia do que falava. No final, apresentou-se: era o arquiteto Campos Matos, talvez a pessoa que, em Portugal, mais conhece a obra, e tudo o que está à sua volta, de Eça de Queirós. Queirosiano amador, eu tinha pelas estantes muito daquilo que ele tinha escrito e organizado. E o Zé, claro, esteve bem à altura do interlocutor.

E eu? Bom, lá deixei as notas que trazia, a arriscar a “triste figura”, embora me digam que escapei a ela. Falei de alguns restaurantes (vício meu antigo) que, ali pela Baixa, onde estávamos, tinham entretanto desaparecido, do Oriental ao Múni e outros mais, da cozinha galega dos funcionários às mesas de fim de semana das famílias. Toquei no mundo dos bares, mais de ouvido do que de prática, do Lorde ao velho Belcanto, do Nina aos outros tempos da Tágide e mais poisos do copo, muitas vezes com “pequenas” tarifadas à mistura.

Mas concentrei-me mais nos cafés históricos onde tinha ainda bilharado, como o Palladium ou o Martinho (o antigo, não o da Arcada), outros onde tinha metido o nariz da curiosidade, como o Gelo dos surrealistas ou a Smarta de outras escritas. Mas também o Aviz dos sportinguistas e dos fascistas, porque, às vezes, mas não todas, essas dimensões se confundiam. A minha Lisboa geográfica preferida era, contudo, outra. Falei do Canas e do Értilas (que ninguém ali desconfiava ser um anagrama de Salitre), porque tinha (e tenho) Campo de Ourique como terreno de estimação. Mas era nas Avenidas Novas que eu assentava arraiais com mais frequência. De início, na Granfina e no Nova Iorque, ou, mais acima, no Luanda e na Suprema, muito pouco no Vává, alguma coisa no Trevi, no Londres ou na Mexicana, com descidas depois ao Colonial, já a caminho da Baixa. E, com mais persistência, no Monumental e, em especial, no Montecarlo. E tantos outros, de que caraterizei as “faunas”, algumas tertúlias, frequentadores mais ou menos conhecidos.

A conversa abriu-se. Afinal, com a idade próxima a ajudar, o Zé “entrou” por esses cafés comigo, começamos a cruzar nomes e histórias e, de repente, estávamos a perceber a existência de uma identidade geracional. A noite acabou divertidíssima, connosco a recortar algumas figuras da Lisboa desses tempos, embora nem sempre no mesmo registo de convivência.

O Zé Sarmento de Matos passou, depois dessa noite, a ser um amigo. Voltariamos a cruzar-nos, por alguns anos com uma regularidade quase semanal, numa tertúlia jantante muito divertida, numa tasca de Campo de Ourique, onde, curiosamente, o número de mulheres suplantou sempre o dos homens. Aí comemorámos, numa noite imensa de gente e boa disposição, os 70 anos do Zé. Ele viria a desaparecer, tempos depois.

Há dias, ao olhar uma estante, redescobri a extraordinária “A Invenção de Lisboa” do José Sarmento de Matos. Uma história amorosa da sua cidade. Recomendo vivamente que leiam!

Comecei este texto falando de Fernando Pessoa, acabo a falar do biógrafo da sua cidade. Ambos nasceram e morreram em Lisboa. Isto anda tudo ligado, dizia alguém da minha terra,que também escrevia e era poeta, que andava muito por bares, restaurantes e cafés, que se chamou Eduardo Guerra Carneiro,que era um amante de Lisboa e que, tal como Pessoa e o Zé Sarmento de Matos, também já lá vai.

Nada de confusões

Desejo que o Sporting ganhe hoje ao Porto, porque isso pode facilitar a nossa vitória no campeonato. Mas há que ter bem presente que, em matéria de adversários, o Porto permanece ao mesmo nível do Braga. O adversário histórico natural do Sporting tem um único nome: Benfica.

A Mensagem de Lisboa

 

Se ainda não conhece o mais recente jornal digital do país, carregue aqui: amensagem.pt

Vai ter por lá gente conhecida.



Olhares noturnos (4)


Por estes dias, esta casa, na rua das Janelas Verdes, tem um destino comercial que a si próprio, numa placa, se atribui o nome de Ramalhete. “Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida - a paixão”, diz Eça de Carlos da Maia, que ali teria residido dois anos. Mas este está longe de ser o único edifício que a fantasia coloca como morada dos Maias.

Seja lá o “Ramalhete” onde for, era por ali que o meu colega Steinbroken, ministro da Finlândia em Lisboa, trauteava as suas árias em “Os Maias”. Para um diplomata dos dias que correm, não saber isso “c’est très grave, c’est excessivement grave!”

sexta-feira, fevereiro 26, 2021

Inteligência gráfica

 


Estupidez gráfica


 

Bicho

Que bicho terá mordido alguns jornalistas (jornalistas mesmo!) económicos da nossa praça? Era gente serena, analítica, com equilíbrio e, em poucos anos, converteram-se em comissários políticos, fortemente ideológicos, alguns até já partidarizados, que temos de ler com um pé atrás.

Jesus!

Parece claro que Jorge Jesus não vai conseguir deixar de cometer o erro clássico de tentar voltar a ser feliz no país onde um dia se teve êxito. Talvez valesse a pena falar com o Mourinho.

Tvendo

Anda por aí um debate sobre a informação nas nossas televisões. Ninguém devia ousar entrar nesta discussão sem ser obrigado a passar umas horas a ver os noticiário da BBC, com um relógio na mão. Depois, deviam passar pelo "envergonhómetro". Só isso!

Não são saudades, é pena!


A casa tem hoje este aspeto desolador. Passei por lá, há poucas horas. Ninguém dirá, ao ver aquela ruína, que ali foi um dos restaurantes populares mais em moda na noite lisboeta.

No Painel de Alcântara, de início uma única sala, com uma cozinha muito simples à entrada, servia-se excelente comida. Na última metade dos anos 80, comecei a ser um cliente fiel da casa. E, até ao fim, continuei a sê-lo.

O Painel, nome que imagino derivado de um painel de azulejos com uma imagem de Lisboa que existia numa parede, onde a mão distraída do mestre-de-obras tinha cometido o lapso de colocar quatro azulejos ao contrário, dando um toque surreal ao conjunto, preponderava o meu amigo Cardoso.

Era um jovem nervoso, trabalhador incansável, que ia às cinco da manhã para a praça, com uma imensa atenção aos clientes. Na cozinha inicial esteve o Zé, que um dia foi chamado para a tropa e a quem uma moscambilha inocente conseguiu atrasar o recrutamento; ingrato, logo que liberto dessas lides, zarpou para outra casa, para imenso desgosto de quem usufruía da sua arte. No balcão das contas andava a Zezinha, uma jovem simpática, companheira do Cardoso, que um dia se cansou daquela vida, arranjou um emprego e deixou o homem inconsolável. Lia-se-lhe isso na cara.

O Cardoso teve muito sucesso com o Painel. Alargou a casa, comprou o espaço ao lado, ganhou fama e, sempre, mais clientes. Ali se ouviram fados! Chegou a ser difícil reservar mesa, mas eu nunca me pude queixar! O Cardoso, a certo passo, foi obrigado a ir ele próprio para a cozinha. Para assegurar a qualidade de uma oferta que nunca desiludiu. Viamo-lo desfazer-se em trabalho, com um ar cada vez mais cansado, magro e, sempre, agitado. Ganhou bom dinheiro, chamou irmãos para trabalhar com ele. Meteu-se em negócios e abriu outro espaço, ali perto. Também passei por lá. Mas algo não correu bem. 

Nas minhas passagens por Lisboa, nunca deixei de o visitar, de lhe dar um abraço, de amizade e de gratidão, pela imensa simpatia de que fui feliz destinatário. Via-o nervoso, cada vez mais nervoso. E triste. Entretanto, tinha casado, teve um acidente, esteve doente, a vida pessoal correu-lhe mal. O Painel, um dia, fechou e o meu amigo Cardoso desapareceu (*), dizem-me, vivendo lá para a Beira. 

As coisas não duram sempre, claro. Mas damos mais conta disso quando gostamos das coisas e das pessoas. Não são saudades, é pena!


(*) Depois de ter publicado este texto, soube que Adelino Cardoso morreu, em 2019.

Olhares noturnos (3)


Em 1954, Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro estiveram na origem da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE). Dois anos mais tarde, ela veio a ser autorizada pela ditadura. Em 1965, ao tempo em que era presidida por Jacinto do Prado Coelho, a SPE decidiu atribuir o Grande Prémio de Novela ao livro “Luuanda”, de Luandino Vieira, um militante nacionalista angolano então preso no Tarrafal. Dias depois, a SPE foi extinta, por despacho do ministro da Educação, Inocêncio Galvão Telles. Nessa mesma noite, um bando de legionários e fascistas correlativos assaltou e destruiu a sede da SPE. Só em 1972, já no marcelismo, a SPE viria a recuperar parte da sua memória, sendo então criada a Associação Portuguesa de Escritores (APE). Nos dias de hoje, a atividade mais relevante da APE parece ser atribuição de prémios literários, mas imagino que desenvolva outras ações a que eu tenha estado desatento. A sua sede fica na minha rua. 

quinta-feira, fevereiro 25, 2021

David Mourão-Ferreira


À meia-noite, na RTP Memória, produzido na RTP2 ("where else?"), teve início um excelente e já antigo documentário, com testemunhos sobre David Mourão-Ferreira, pedagogo e escritor, que morreu em 1996.

É minha impressão ou persiste, na sociedade cultural portuguesa, uma relativa falta de atenção em torno da figura e obra de Mourão-Ferreira? Ouve-se tanto incensar alguns outros escritores e tão pouco se fala de Mourão-Ferreira. 

Será a política? Será uma casta reação ao erotismo de alguma da sua poesia? É que pensei que um outro compreensível preconceito, fruto da competição por algumas senhoras, já teria ficado resolvido pelas inexoráveis leis do tempo.

Olhares noturnos (2)


Passei lá há pouco, nas minhas caminhadas noturnas. É a sede do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa, em Lisboa.

O Centro foi criado em 1990, dedicando-se a promover a cooperação, em determinados setores, entre dois “mundos” separados por um fosso de desenvolvimento.

Pelo período de um ano, entre 2013 e 2014, fui diretor-executivo do Centro. Foi uma experiência interessante, que desempenhei “pro bono”, já após a minha aposentação do serviço público. Não me foi possível prolongar esse exercício, porque constatei que me ocupava demasiado tempo e obrigava a muitas viagens internacionais, mais do que aquilo que a minha nova vida profissional permitia.

Aproveito para aqui contar um episódio curioso.

Em inícios de janeiro de 2014, comigo ainda a chefiar o Centro, estive presente na sessão de cumprimentos de Ano Novo ao chefe de Estado português, como membro do corpo diplomático... estrangeiro acreditado em Lisboa.

As organizações internacionais apresentam-se, nessa cerimónia, imediatamente após os embaixadores bilaterais. Como “aquisição” recente, eu era, naturalmente, quase o último (senão mesmo o último) da fila dos diplomatas. 

No meu fraque (com colete claro, como é de regra para cerimónias diurnas, tal como o meu colega e “mestre” de Protocolo, José Bouza Serrano, sempre me recomendou), ali estava eu, naquele imenso salão de vidros e espelhos do Palácio de Queluz, aproveitando para uma conversa sempre divertida, em voz baixa, com o meu colega de fila, o meu querido e velho amigo (e vizinho!) Nazim Ahmad, representante em Portugal da Fundação Aga Kahn.

A certa altura, faltando ainda dois ou três diplomatas para o cumprimento a Cavaco Silva, este viu-me, à distância. Notei-lhe um olhar espantado: “O que é que este tipo está aqui a fazer?”, deve ter pensado. Nem se deve ter lembrado do Centro Norte-Sul! O qual, aliás, sempre fora dirigido por estrangeiros. Eu era o primeiro português a exercer essas funções.

Cavaco conhecia-me bem. Fora membro do júri do concurso em que fui admitido como diplomata, em 1975. Tinhamo-nos reencontrado numa visita dele à Noruega, em 1980, sendo ministro das Finanças, comigo ali em primeiro posto. Voltara a cruzá-lo, já como primeiro-ministro, em S. Tomé, em 1989, e, depois, em Londres, em 1992 e 1994, durante deslocações oficiais. Estava presente, como primeiro-ministro cessante, no dia em que fui empossado como secretário de Estado, em 1995. Em 2005, ocorreu ter sido o primeiro embaixador português a ser por ele recebido em Belém, logo após o início de funções como presidente da República. Algumas outras vezes por lá voltei, noscanos seguintes, acompanhando políticos brasileiros. E eu era embaixador português no Brasil quando Cavaco Silva ali se deslocou, em 2008.

Quando, nessa cerimónia em 2014, chegou a minha vez de o cumprimentar, e com o chefe do Protocolo, a seu lado, a entender que não valia a pena estar a explicar quem eu era, achei por bem esclarecer o que estava ali a fazer, integrado no corpo diplomático ... estrangeiro! Cavaco Silva sorriu imenso e ainda teve tempo para me perguntar como ia o Centro, que ele próprio tinha criado - como me lembrou - e com cujo futuro eu sabia que ele se preocupava.

Achei então que era capaz de ser excessivo revelar que fora eu quem, a pedido do ministério, nesse ano já longínquo de 1990, escrevera o discurso que ele tinha lido na cerimónia inaugural da abertura do Centro, creio que proferido no auditório do Monumento dos Descobrimentos (um local muito “na berra”, por estes dias).

Um diplomata, tal como Thomas More, é “a man for all seasons”. Aliás, naquele instante protocolar, eu era talvez a melhor prova provada disso mesmo!

quarta-feira, fevereiro 24, 2021

“A Arte da Guerra”




Na “Arte da Guerra” desta semana, falo com António Feitas de Sousa do novo tempo na Organização Mundial de Comércio, dos equilíbrios políticos na Catalunha depois das últimas eleições e da situação em Myanmar.

Pode ver carregando aqui.

Non grata

Um abraço amigo à Isabel Brilhante Pedrosa, embaixadora da UE na Venezuela. Está a ser uma "vítima colateral" da decisão europeia de impor sanções a figuras do regime.

A Isabel, contudo, que passou pela Líbia em guerra civil, está habituada a momentos bem complexos.

E difícil, isso sim!, é a situação do seu Benfica! Também haverá por lá "personas non gratas"?

Conselho amigo

Um conselho de amigo, com a maior e mais penosa autoridade: nunca transportem uma garrafa num tabuleiro!

Deputados

É sintomática do baixo nível a que isto chegou a linguagem que se vê usada por deputados, nas redes sociais, para criticarem colegas seus de outros partidos, bem como figuras do governo ou responsáveis da oposição. Nem sequer um mínimo de camaradagem política é respeitado.

Olhares noturnos (1)

 


Morte ao Acordo Ortográfico!

23- F


Recordo-me de que o seu nome era Flavia. O marido era herdeiro de uma família ligada a uma das mais conhecidas bebidas de Espanha. Era um casal divertido, extremamente agradável. Tínhamo-nos conhecido, dias antes, através do meu colega da embaixada espanhola em Oslo, Rafael (Rafa) Conde, em casa de quem passavam uns dias de férias.

Havíamos convidado os dois casais espanhóis para jantar, nessa noite, em nossa casa. Era o dia 23 de fevereiro de 1981. Os espanhóis, que gostam de crismar as datas com peso histórico, haveriam de chamar a esse dia o 23-F.

Pela tarde, chegaram notícias: um golpe militar estava em curso em Espanha. Hesitei em falar do assunto ao Rafa. Acabou por ser ele a ligar-me: “Já sabes o que se passa? Mantemos o jantar?”. Eu ri-me e disse-lhe: “Desde que não venhas fardado!” Ele esclareceu: “Sabes que os nossos convidados são ‘muy de derechas’!” Eu não era ingénuo: já tinha dado conta. E acrescentou: “A Flavia é sobrinha daquele que parece ser o chefe dos golpistas, o general Miláns del Bosch!”. Aí arrematei: “Não há problema! Traz ‘los fachos’ e depois logo se vê!”

A alegria da Flavia, naquela noite, era bem menos transbordante do que era seu costume. Pediu-nos, por duas ou três vezes, para poder telefonar para Madrid. O Rafa piscava-me o olho, com uma atitude contida, perante a coreografia que interrompia o jantar. Sempre que a Flavia regressava do hall onde estava o telefone, depois da consulta à família em sobressalto armado, perante um nosso “entonces?” mais curioso do que compungido, sentíamo-la cada vez mais chorosa.

Depois, na sala, os únicos canais de televisão que tínhamos, noruegueses e suecos, ainda davam um relato parco da cena nas Cortes. A heroicidade do trio - Mellado, Suarez e Carrillo - que não obedeceu ao berro fascista “Todos al suelo!”, do patético Tejero, só a viemos a saber muito depois.

A simpática Flavia viveu o resto da noite preocupada com o destino do tio. Eu, discreto, até à sua saída, como a educação de um anfitrião recomendava, aguentei com garbo a alegria que sentia com a prevista derrota daquele golpe de franquismo tardio. A certa altura, num instante de cumplicidade, atravessando a sala à distância, com um discreto esgar sorridente, eu e o Rafa tínhamos aproveitado para fazer um ibérico, democrático e silencioso brinde.

Só depois de todos os convidados saírem é que, já em família, se bebeu um copo à liberdade em Espanha. Tive pena, confesso, de não ter então à mão um álcool da produção do marido da Flavia...

terça-feira, fevereiro 23, 2021

A Mensagem de Lisboa


Já está nas bancas! Ou melhor, basta um clique e pode ler a Mensagem de Lisboa, uma bela e alegre aventura de jornalismo digital, alheia a politiquices e outras picuinhices, da lavra de Catarina Carvalho e José Ferreira Fernandes, com colaboração muito diversa. Promete! 

Carregue aqui.




segunda-feira, fevereiro 22, 2021

“Observare”


Esta semana, no “Observare”, Carlos Gaspar, Luís Tomé e eu, sob a coordenação de Filipe Caetano, falámos das tensões no mar da China e dos esforços para a estabilização do Sahel, sob a ameaça islâmica.

Pode ver aqui.

domingo, fevereiro 21, 2021

O Excelsior e o café de Timor



No desaparecido Café Excelsior, em Vila Real, na parede por detrás do balcão, havia um caixilho que enquadrava uns dizeres, escritos sobre um papel bege: “O melhor café é o de Timor”.

Eu era miúdo e, por essa época, nem café bebia, mas via o meu pai e o meu avô serem servidos do produto, pelo Manuel “Rato” ou por um outro empregado mais forte, com “pés de chumbo”, que era pousado naquelas mesas pequenas com tampo de mármore muito amarelado e raiado a verde, com açucareiros de metal com dupla tampa, connosco sentados numas cadeiras extraordinárias, em couro trabalhado, com as iniciais do café.

Timor era uma coisa distante, de que se falava muito pouco, uma terra no meio da Oceania, de onde não havia notícias. E, aprendi eu na vida, com assumida arrogância eurocêntrica, quando, do mundo “subdesenvolvido”, não há notícias, costuma ser bom sinal!

O Excelsior era um grande café de referência na nossa cidade.

Por aqui tenho falado dos seus bilhares - onde o Chico Menezes, o Olívio e o ciclista Firmino Claudino davam cartas - e da sua sala do dominó, onde, além do dito dominó, outras cartas também se jogavam.

(Hesito em referir, por pudor, a escada, a pique, para os sanitários, de onde, em tempos de calor, exalava um odor a ácido úrico que alguém, com óbvio exagero, disse um dia, que, abertas as janelas, “em dias regulares, enchia a sala das “permanentes” das senhoras do Pimentel cabeleireiro, atingia o largo do Vilarealense, e, em históricas rabanadas de vento, chegava a entrar pela Capela Nova e dava a volta à Misericórdia”...)

Creio nunca ter visto isso referido por escrito mas, nos anos 50, no Excelsior havia, por vezes, espetáculos, depois do jantar, com ilusionistas e outras figuras visitantes, dotadas para algumas artes. Pagava-se para assistir. Os espetadores eram, claro!, exclusivamente homens, porque as senhoras, nesse tempo, não iam aos cafés (a nenhum!) depois do jantar. Houve também por ali sessões de hipnotismo - eu vi! - e tenho na memória uma apresentação de um “fenómeno” que sabia 18 línguas (deve-nos ter baratinado, a nós que então sabíamos uma ou duas). Posso estar equivocado, mas nenhum outro café de Vila Real teve uma tão diversificada atividade artística.

Por que trago o Excelsior aqui hoje? Porque, para fazer o meu café de balão, uma “mão amiga” ofereceu-me um belo café de Timor, que juntei a outro que, há pouco mais de um ano, eu próprio trouxe da Colômbia. Fizeram um lote excelente!

Em tempo:

O meu amigo Mário Fernandes Pinto, que é o curador da memória do saudoso “Excelsior”, lembrou, a propósito deste num comentário no Facebook, um folheto do café onde se lê e que aqui reproduzo, com a devida vénia:

Bebi agora um café
que era mesmo um primor
e sabeis de onde é que é
é o café de Timor 

Este café só se toma
naquele café da esquina
onde vai depois que coma
toda a nossa gente fina 

E nunca ficareis mal
pois que eu digo e não me calo
que o EXCELSIOR de que falo

é um CAFÉ ideal
e agora já não me ralo
pois também lá vou tomá-lo

sábado, fevereiro 20, 2021

E os marcianos, senhores!




A sonda pousou em Marte. Mas ainda não vi nenhuma declaração sobre marcianos. 

As gerações pós-ET entraram num outro registo, mas, para a minha, os marcianos tiveram um papel mítico importante.

Por isso, o que é que eu peço? Apenas que nos ajudem a encerrar o assunto. Que nos digam se há ou não marcianos!

Custa assim tanto sossegar-nos?!

Isto agora começa a ser a sério!

 


Navegar foi preciso


Acho oportuno, no dia de hoje, recordar um texto que publiquei por aqui, há três anos, aquando do debate sobre um museu sobre a aventura marítima portuguesa:

“As viagens tituladas pela coroa portuguesa, desde o ataque a Ceuta, foram quase sempre operações de conquista (com exceção das desertas ilhas atlânticas), com toda a violência que isso à época implicava. Afonso de Albuquerque foi um guerreiro sanguinário e os outros capitães das frotas e das naus não devem ter sido muito mais meigos. Pode imaginar-se o modo como foram tratados os árabes, os negros ou os indianos e outros orientais que lhes apareceram pela frente, nessas expedições para encher alforges e porões, tendo como alibi ideológico a expansão da cruz. A captura e uso de escravos, com a desenfreada exploração laboral e sexual, fez parte integrante da empresa ultramarina e Portugal foi dos Estados europeus que prolongou essa selvática prática até mais tarde. O nosso atraso histórico é, aliás, recorrente: um século depois, quando já quase toda a Europa tinha descolonizado, por cá ainda se falava do “Ultramar” e do “Portugal do Minho a Timor”.

O Estado Novo, prosseguindo, aliás, uma velha narrativa colonialista republicana, pretendeu dar a essa aventura além-Europa uma aura de santidade civilizacional. Usou “Os Lusíadas” como bíblia apologética e capturou oportunisticamente em favor de um patriotismo de regime essa parte da nossa História, consagrando-a de forma caricatural, em textos e momentos hagiográficos, de que a Exposição do Mundo Português (que já ecoava modelos alheios) foi o mais curioso exemplo. A minha geração deve ter sido a última que foi atulhada por uma historiografia gongórica, de que muita da estatuária que por aí anda é aliás tributária.

A notável aventura marítima foi o que foi. Foi fantástica no que representou de inventividade e ousadia, marítima e não só, e o mundo credita-nos isso sem o menor problema, penso mesmo que muito menos do que deveria, à luz do esforço feito por um pequeno povo, numa ambição quase planetária. 

Acho, contudo, sem o menor sentido - e até de uma despropositada arrogância histórica por parte da geração atual, que parece achar ter o direito de poder julgar as anteriores - estar a fazer juízos de valor sobre atos cometidos à luz de conceitos e princípios que estavam muito distantes dos nossos de hoje.

Uma coisa é podermos reagir com horror a crimes cometidos na idade contemporânea, quando já vigoravam padrões de valores civilizacionais muito próximos dos atuais - como os assassinatos em massa promovidos pelos nazis, ou os crimes do colonialismo mais recente, já dentro do século XX. Outra coisa é andar a escolher seletivamente episódios ou práticas de um passado distante, assumindo culpas (repito, à luz dos princípios de hoje) por atos como a inquisição, o colonialismo ou a escravatura. É que, por essa ordem de ideias, estaremos, um destes dias, a pedir contas a alguém pela brutalidade das invasões bárbaras, antes da nossa nacionalidade. E esses ciclos nunca terão fim.

Voltemos às descobertas. São descobertas ou achamento, como se debateu no Brasil? Para Portugal, entidade invasora, detentora do olhar que enformou a sua perspetiva de titular desses atos, foram descobertas, de terras e de gentes que o poder português dominou - à força, claro, porque, que eu saiba, as operações de conquista foram sempre feitas pela violência, às vezes extrema e impiedosa. E, claro, com massacres, agressões de toda a ordem, desrespeito total pelos povos encontrados, por muito que, aqui ou ali, pudesse ter havido práticas menos constrangentes. Mas reconheçamos isso, com toda a frontalidade, agora sem ter de recorrer à ganga apologética que o discurso historiográfico da ditadura nos impôs, mas igualmente sem prescindir, nem por um segundo, de relevar o caráter fantástico e pioneiro da empresa das navegações, no que ela teve de avanço para o conhecimento e abertura do mundo.

Nós somos, como povo, o somatório dos vários segmentos sucessivos da nossa História. No terreno colonial, outros a sofreram para que, deste lado, o país de então pudesse beneficiar - na exploração dos recursos económicos e humanos, com uso de escravatura e trabalho forçado, ignorando e espezinhando as identidades dos povos, com práticas racistas em que o “outro” foi, muitas vezes, apenas uma “coisa”. Nesse aspeto, podendo a colonização portuguesa ter tido alguns matizes próprios, basicamente ela seguiu um padrão muito comum aos restantes conquistadores europeus. Foi o que foi e assim deve ser estudada, entendida e exposta, com total transparência histórica.

Dificilmente conseguiremos consensualizar uma discurso comum sobre a História. Aliás, não vejo qualquer vantagem nisso. No trabalho sério em torno do passado, importa apenas não esconder nenhum aspeto da verdade, devendo, contudo, estar sempre preparados para que essa leitura seja diferente, de acordo com as diversas perspetivas, também elas decorrentes da experiência de cada um. Divulguemos e exponhamos os factos, todos os factos.

Ainda no que toca ao debate sobre um museu sobre a aventura marítima e colonial portuguesa, acho, sem a menor hesitação, que deveria ser um “museu das descobertas”, da mesma maneira que devemos aceitar, com toda a naturalidade, que, do lado de quem sofreu uma invasão brutal do seu território, possa e deva ser feito um “museu da exploração colonial”. São as duas faces de uma mesma verdade. Pretender a reconciliação dos olhares, como que “hierarquizando-os”, nunca será aceite por todos, é um artificialismo que não conduzirá a nada. Em particular à tal verdade.“

É isto que eu penso.

Num Calvário, também


É um clássico da minha terra, no histórico Campo do Calvário.

O nosso Sport Clube de Vila Real (fez há pouco 100 anos, é um dos mais antigos clubes de futebol do país!), até dez minutos do fim, estava empatado com um dos seus adversários tradicionais. Provavelmente, o Desportivo de Chaves.

Vivia-se um ambiente de nervoseira desatada! A certa altura, num ataque glorioso, metemos um golo.

Da bancada, ergueu-se então um cavalheiro (de gravata e chapéu, como era de regra) que lançou para o campo, pelado como ele era, um berro que ficou na memória: “Vamos à dúzia!”

A assistência caiu de risota.

Não sei bem porquê, ao ver este título, lembrei-me daquela saída, grávida de esperança, a convocar uma boa risada. 

Num Calvário, também.

sexta-feira, fevereiro 19, 2021

O regresso de Bolsonaro


Há não muitos meses, eram bastantes os observadores da situação política brasileira que apostavam em como os dias do presidente Jair Bolsonaro estavam contados. Embora não fosse muito evidente o modo como ele podia vir a sair de cena - desde o “impeachment” até uma espécie de golpe militar “bondoso” -, tudo chegou a parecer melhor a muitos do que a continuidade de alguém que havia sido um quase negacionista da pandemia, que revelava uma flagrante impreparação para governar, com um executivo atravessado por frequentes crises e demissões. A fraquíssima prestação da economia e o agravamento de muitas políticas públicas apontavam um mau destino ao presidente.

Olhando para trás, muitos brasileiros que haviam votado Bolsonaro interrogavam-se sobre a opção tomada. Não porque estivessem arrependidos por terem contribuído para a derrota de Fernando Haddad, que substituíra Lula na “chapa” da esquerda, mas porque, manifestamente, Bolsonaro ficara muito abaixo das suas mais modestas expetativas.

Na realidade, Bolsonaro não foi eleito por si próprio, pela convicção maioritária na sua qualidade política, mas, pura e simplesmente, como cabeça de cartaz de uma coligação informal para travar o “petismo”. Claro que havia, e há bolsonaristas, pessoas seduzidas pelo seu discurso extremado, que vai do saudosismo da ditadura militar até à ideia de que, com o PT e o seu candidato no poder, o Brasil acabará por ter um futuro “venezuelano”.

Na Europa, curiosamente, nunca houve uma consciência real do impacto, por contraste, que o exemplo do “chavismo” sem Chávez havia provocado em muitos eleitores brasileiros. Além do mais, Lula e os seus foram sempre incapazes de condenar o regime de Caracas.

Enquanto largos setores da opinião pública internacional partilhavam alguma admiração pela figura de Lula, positivamente marcados pelo modo como a imagem do Brasil se tinha prestigiado nos seus anos de poder, uma maioria de eleitores, sinceramente convicta de que a corrupção tinha passado a estar na matriz do “petismo”, consagrou no voto em Bolsonaro toda a sua indignação.

Foi essa perspetiva de rejeição que ganhou e, com ela, Bolsonaro foi eleito.

À época, tinha ficado evidente que os políticos conservadores tradicionais haviam perdido a sua oportunidade, suspeitos que eram também de moscambilhas financeiras, surgindo muitos deles envolvidos em escândalos que minaram as suas hipóteses de serem escolhidos. Bolsonaro, vindo de fora do sistema, foi o feliz usufrutuário deste desencanto generalizado.

O novo presidente teve uma gestão errática. Começou por condenar a “velha política”. Esta resistiu, conseguiu convencê-lo de que era impossível obter soluções governativas sem o apoio dos partidos do “centrão”.

E, de um dia para o outro, o presidente optou por “costurar alianças” com os inimigos da véspera. Travou assim os riscos de “impeachment”, alargou a governabilidade, abrindo o governo a antigos críticos. E pode mesmo vir a conseguir ser reeleito.

O futuro da Europa


Nota-se, em alguns meios, um sopro de entusiasmo a propósito da ideia de uma nova conferência sobre o futuro da Europa. Começo por confessar que acho essa conferência, no momento que atravessamos, aquilo que alguns costumam crismar de uma falsa boa ideia.

Mas, é claro, se o tema vier a prosperar, não há como fugir-lhe. E, nesse caso, haverá que desenvolver uma posição portuguesa sobre o assunto, a qual, a meu ver, deveria ter um suporte político interno tão alargado quanto possível.

Vale a pena ter a coragem de assumir que o tão vilipendiado “centrão” foi a base política que nos permitiu, ao longo das últimas décadas, estruturar uma atitude europeia consistente, coerente e, o que é mais importante, vista de fora como uma vontade maioritária. Se a política europeia de Portugal tivesse ficado à mercê do vai-e-vem do CDS, do negacionismo do PCP e dos zigzags do Bloco, não teríamos ido longe.

Recorde-se que, por muitos anos, e desde o documento inicial de Roma, a estrutura institucional da Europa permaneceu inalterada. Foram o Ato Único Europeu e o Tratado de Maastricht que vieram a consagrar novas e substanciais adaptações de fundo no modelo de cooperação entre os Estados membros. Uma saudável onda de ambição atravessou então o projeto, soprada pelo ambiente do fim da Guerra Fria e pela noção de que uma Europa-potência, mais do que uma Europa mercado, era então possível, ancorada no eixo-franco alemão. A diluição dos nacionalismos, as oportunidades da globalização e, muito em especial, as vantagens óbvias do Mercado Único e o pesado custo da “não-Europa”, para usar a bela expressão de Delors, tudo isso criou um ambiente de euro-entusiasmo. Daí também o projeto do euro, em que já só alguns se empenharam, tal como, para a liberdade de circulação de pessoas, foi criado o acordo de Schengen.

Houve sempre, como sabemos, alguma ambiguidade quanto ao destino final do processo europeu. Uns diziam-se favoráveis a um salto federal, outros (entre os quais Portugal sempre esteve) privilegiavam um aprofundamento progressivo, outros ainda mostravam ser companheiros relutantes de jornada. Alguns mudaram entretanto de posição; nós não. Com pressões e cedências, foi-se andando.

A perspetiva de um grande alargamento, proporcionada ou forçada pelo fim da Guerra Fria, levou a que se procurasse adaptar as instituições, tendo como preocupação essencial a sua funcionalidade, para que a paralisia decisória nunca viesse a ter lugar. E, de caminho, foram aumentadas as competências da União, em especial em áreas que se tornavam essenciais para assegurar o êxito do mercado interno. Foram esses os passos dados em Amesterdão e Nice.

Ainda na lógica “delorsiana” de que a Europa é como uma bicicleta, isto é, de que é necessário continuar sempre a pedalar, sem o que se cairá para o lado, houve o sonho do Tratado Constitucional, logo travado pelo pesadelo dos referendos frustrados na França e nos Países Baixos. Com um jeito jurídico muito à moda de Bruxelas, foi possível dar a volta ao texto e retirar dele alguns dos seus maiores “escândalos” semânticos. E daí surgiu o Tratado de Lisboa, concluído durante a nossa presidência de 2007. É onde estamos hoje.

O que se passou na Europa, desde então? Muita coisa. Houve a crise financeira, seguida da das dívidas soberanas, emergiu uma inesperada e pouco saudável “diversidade” nas questões migratórias e no acolhimento dos refugiados, em certos Estados membros foi detetada uma deriva face aos compromissos de respeito pelos princípios do Estado de direito democrático.

A obsessão com a estabilidade financeira levou, entretanto, a gizar um outro tratado intermédio. A saída do Reino Unido trouxe, simultaneamente, um enfraquecimento do projeto mas, igualmente, para alguns puristas a ideia de que, finalmente, se pode caminhar sem esse empecilho.

Refundar a Europa? No estado de divisão interna que o projeto atravessa, com pulsões soberanistas e opiniões públicas a tê-la como bode expiatório das suas frustrações e medos, acho um suicídio tentar uma nova “síntese” a 27. Mas logo veremos!

Entrevista


Nunca tinha visto esta entrevista, depois de a ter gravado! Foi em 2008 que tive esta conversa, muito simpática, com Marina Pimentel e José Manuel Fernandes, difundida na RTP e na Renascença, editada também no Público.

Não tinha tido oportunidade de vê-la. Aqui entre nós, já nem me lembrava do que tinha falado! Hoje, uma pessoa mandou-ma.

Devo confessar uma imensa surpresa. Caramba! O embaixador português em Brasília permitir-se falar, para além dos temas do Brasil - língua portuguesa, CPLP, relações Brasil-EUA, conselho de segurança da ONU, relações brasileiras com Angola - do Iraque e de Bush, da atitude de Cavaco Silva sobre o reconhecimento do Kosovo, das relações com a China, da questão do Tibet e do modo como o Dalai Lama foi recebido em Portugal, de Timor, da política portuguesa de Direitos Humanos, da polémica em torno da presença portuguesa nos Jogos Olímpicos de Pequim, da política europeia de Portugal, das relações transatlânticas e do modo como nós e Europa olhamos os Estados Unidos, enfim, da política externa portuguesa como um todo, foi uma imensa ousadia! Ah! E, 13 anos passados, não me arrependo do que disse, mas arrependo-me (muito!) da gravata!

(Apesar disso, alguém, que teve a paciência de ver e ouvir o que eu disse, avaliou: “Foste muito oficioso!”. Pudera! Era o mínimo que eu podia fazer!)

Dito isto, confesso que achei graça “rever-me”. Mas isso é normal! No passado, o futuro era melhor!

Pode ver aqui.

quinta-feira, fevereiro 18, 2021

“A Arte da Guerra”


Em conversa com António Freitas de Sousa, no “Arte da Guerra”, do “Jornal Económico”, abordamos hoje em video as próximas eleições legislativas em Israel, as pressões chinesas sobre Hong-Kong e a profunda crise político-social em que está mergulhado o Líbano.

Pode ver aqui.

Tarde do dia de Consoada