segunda-feira, outubro 14, 2019

A difícil partida


Naquele ano político decisivo que foi 1980, António Ramalho Eanes deslocou-se à Noruega, numa visita de Estado, como presidente da República, retribuindo a que o rei Olavo V fizera ao nosso país, dois anos antes. Recordo que a Noruega havia sido dos países que mais tinham auxiliado, económica e tecnicamente, o novo regime democrático português.

Eu estava há um ano colocado na embaixada em Oslo, onde só havia dois diplomatas: o embaixador e eu. A montagem dessa visita foi assim um trabalho muito intenso, embora facilitado pelo espírito prático dos noruegueses.

Em Portugal, as coisas estavam a ferro e fogo, entre o presidente e o governo da Aliança Democrática (AD), presidido por Sá Carneiro, ao ponto do ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas do Amaral, se ter feito substituir na delegação pelo secretário de Estado, Azevedo Coutinho, e de nenhum outro membro do governo ter sido indicado para acompanhar o presidente. Muito pouco tempo depois, a AD iria lançar a candidatura de Soares Carneiro para tentar evitar a reeleição de Eanes. Sá Carneiro morreria num desastre aéreo em dezembro, Eanes seria reeleito ainda nesse mês e a AD, como projeto político, iniciava ali o seu inexorável declínio.

Era visível, nessa visita à Noruega, a tensão entre a “entourage” do presidente e o pessoal político afeto ao governo, com a nossa pequena embaixada no meio daquela contenda surda, por vezes a receber ordens contraditórias, o que nos não tornava a vida fácil. 

A visita, essa, correu lindamente. Entre Eanes e o rei Olavo V passava uma forte simpatia, não obstante as conversas serem sempre feitas através de intérpretes. 

No último dia, já no aeroporto, toda a comitiva portuguesa tinha já embarcado no avião da TAP, ficando a aguardar Eanes e a sua mulher, que a regra mandava serem os últimos a entrar. O nosso chefe do Protocolo de Estado, Ary dos Santos, aguardava na base da escada do avião.

Na sala VIP, além do rei e dos príncipes noruegueses, Eanes e a senhora estavam acompanhados apenas por diplomatas noruegueses, pelo nosso embaixador e por mim. 

Eanes estava com visível pressa. Tinha combinado fazer uma paragem em Bona, na Alemanha, para falar com Helmut Schmidt, uma iniciativa de política externa que se sabia desagradar imenso ao governo de Sá Carneiro. O presidente tinha tomado essa decisão a curto prazo, informando o governo à última da hora. Muita da tensão na delegação portuguesa, percebemos então, advinha daí.

Contudo, por uma razão que ninguém explicava, o presidente e o rei continuavam na sala VIP e o avião não arrancava. Não era, com certeza, uma questão de “slot” aéreo, porque este tipo de voos têm prioridade, em especial num aeroporto tão pouco intenso de movimento, como era o de Fornebu. Seria falha de comunicação entre os dois serviços de Protocolo? A verdade é que estava tudo parado.

Enquanto Manuela Eanes, num sofá, falava com a princesa, nora do rei, Eanes, de pé, ao lado do monarca, estava visivelmente enervado. No estranho eclipse dos intérpretes, ambos quase se limitavam a sorrir um para o outro. Nestas ocasiões, os minutos parecem muito longos - e aqueles estavam a sê-lo. 

Constatando o constrangimento do nosso presidente, acerquei-me dele e disse-lhe, discretamente: “Senhor presidente, se quiser que eu traduza alguma coisa...” Como o rei falava um excelente inglês, eu podia facilitar uma interlocução, numa conversa de circunstância, por uns minutos.

O presidente olhou-me, estático e, num tom militar, mas bem compreensível em face daquele impasse que o estava a irritar, disse-me: “O que eu quero é ir-me embora!” 

Não sei se Olavo V, provavelmente tão farto de esperar como Eanes, percebeu o sentido daquilo que interpretei como uma ordem. Fui ter com o chefe do Protocolo norueguês, que estava num canto a “fazer sala” com o nosso embaixador e, para espanto do meu chefe, disse-lhe que era imperioso apressar as coisas. 

Como por milagre, tudo entrou em movimento. Aparentemente, estava toda a gente à espera que alguém tomasse uma iniciativa. E Eanes e a senhora lá embarcaram.

Quando o avião descolou (a regra é o pessoal da embaixada esperar para ver o avião “rodas no ar”), o meu embaixador, Cabrita Matias, lançou uma frase que eu ouviria muitas vezes durante o tempo em que com ele colaborei, sempre que algum visitante oficial português partia: “Mais uma lebre corrida!” E lá íamos à residência do embaixador beber uma taça de champanhe, com que ele sempre fazia questão de celebrar o regresso ao nosso “business as usual” na terra dos fiordes.

domingo, outubro 13, 2019

As saudades de um poeta


O antigo ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, também diplomata e poeta, escreveu este soneto delicioso à Geringonça que agora nos deixa:

Geringonça infiel que te partiste
tão cedo desta vida, de repente,
faz reviver em nós o amor ardente
do fulgor que nos deste e a que fugiste.

Se dos paços perdidos que correste
os passos refizeres, novos, frementes,
não esqueças que a nós já não consentes
o calor da esp’rança que acendeste.

E se achas que pode merecer-te
alguma coisa o eco que ficou
desta voz que pudemos of’recer-te,

vê que tudo o que o teu brilho nos deixou
durará mais que o tempo de perder-te,
pois no nosso futuro já pousou”

Negociação


Foi numa sala do Altis, em Março de 1976. 

Frente-a-frente, estavam delegações de Portugal e de S. Tomé e Príncipe, país recém-independente. O tema era o chamado "contencioso financeiro" e, no caso específico, os arranjos necessários para garantir a transferência dos descontos para a segurança social feitos pelos funcionários públicos portugueses, durante os últimos meses do regime colonial, que se encontravam depositados no Banco central de S. Tomé.

As conversas estavam a decorrer bem, até que um zeloso membro da nossa delegação, que estava no uso da palavra, decidiu suscitar, sem conhecimento do secretário de Estado que a chefiava, o seguinte tema: haveria cerca de 800 contos de descontos feitos pelos agentes da Direcção Geral de Segurança (novo nome dado à PIDE), a polícia política do regime derrubado no 25 de Abril. Portugal pretendia que o Governo santomense entregasse esse dinheiro.

No cômputo geral do que estava em jogo, o montante era perfeitamente irrelevante e só um espírito "picuínhas" e burocrático, sem o menor sentido diplomático, teria tido a peregrina ideia de solicitar a respectiva restituição. Tecnicamente, o problema poderia ter algum sentido, mas, politicamente, num tema tão delicado, era uma atitude completamente desastrada. E aquela era uma discussão também política.

Antes que o chefe da delegação portuguesa pudesse aperceber-se da dimensão da patetice que acabara de ser dita pelo burocrata, o seu homólogo santomense levantou-se e declarou que, perante uma atitude deste teor, que considerava como ofensiva, o seu país abandonava as conversações.

Ficámos todos em sobressalto. As relações com o novo governo santomense eram excelentes e um incidente destes era mais que escusado. A delegação de S. Tomé e Príncipe seguiu, naturalmente, o seu chefe, e levantou-se da mesa. Do lado português, ainda um pouco aturdidos, fizémos o mesmo.

Todos? Não! O governante português que dirigia a nossa delegação não só não se levantou como, para grande surpresa de quem o olhava como o possível salvador da situação, esperando que ele alcançasse rapidamente o seu homólogo santomense, que já abandonava a sala, e o convencesse a retomar o diálogo, foi-se "enterrando" na respectiva cadeira, com metade do corpo a deslizar mesmo sob a mesa das negociações. Que diabo era aquilo?!

O espectáculo era surreal e ninguém percebia o comportamento do nosso político - um homem competentíssimo, que mais tarde iria ter uma carreira destacada no Portugal democrático. A sua cara denotava embaraço e, pouco a pouco, fomo-nos dando conta de que, afinal, procurava algo debaixo da mesa.

A explicação foi dada em segundos: o nosso governante havia tirado os sapatos durante a reunião de trabalho. Com os momentos precipitados que tinham acabado de suceder, ao procurar calçá-los, terá acabado por lhes dar um pontapé e enviado ainda para mais longe, pelo que toda a sua estranha coreografia não representava senão o seu denodado esforço para se calçar, antes de ir tentar uma "démarche" diplomática. De facto, em peúgas, seria um pouco estranho estar a promover um diálogo político...

Tudo acabou em bem, os sapatos apareceram, os santomenses regressaram à mesa negocial e lá descalçámos mais essa bota...

sábado, outubro 12, 2019

Agora, foi-se o Chico


O Chico era um pouco mais velho do que eu. No liceu, a diferença de idades era um fator decisivo na formação dos círculos de amigos. O Chico, contudo, simpatizava comigo e, com os anos, fui-me aproximando daquele tipo divertido, que morava na rua Central e namorava então com a Astride, filha da dona Judite, senhora que tinha trazido meia Vila Real ao mundo, comigo incluído. O namoro com a Astride, que foi coisa séria, acabou por não durar, como é da lei da vida, e cada um foi para seu lado. O Chico, diga-se, era homem para afivelar, por vezes, um ar carrancudo. Era temível nas sessões de pancadaria, por exemplo, quando uma qualquer excursão, vinda de Chaves ou de algures (mas, em especial, de Chaves, claro), desaguava na avenida algum pessoal atrevido, que se metia com as pequenas da Bila. Aí, o Chico passava-se! Mas havia nele um outro Chico, também “gentleman”, de um outro modo. Ainda o estou a ver, elegantíssimo, cabelo brilhante, vestido de presidente da Academia, de capa-e-batina, faixa ao peito, nos efe-erre-ás gritados dos degraus da Capela Nova. Ah! Já me ia esquecendo! Ao Chico, toda a gente chamava Chico “Pança”, por razões mais do que óbvias de avantajamento abdominal. Mas sempre nas suas costas, claro! É que constava que ele ia aos arames com a designação, coisa que nunca corri o risco de testar, não fosse dali voar um bufardo dos antigos. Quando fui para a tropa, em Mafra, dei um dia de caras, num corredor do quartel, com o Chico, que ali era oficial. Demos os abraços da praxe, como se estivéssemos na esquina da Gomes. Ele tinha, entretanto, “metido o chico”, que é como quem diz, no jargão da época, tinha saído de miliciano para o quadro profissional. E logo fomos, creio que nessa mesma noite, fazer um jantar, a recordar o Bertelo, o padre Henrique e a Cardoa, ao “Frederico”, um restaurante em frente ao convento, então tido pelo melhor bife da região. Depois, com os anos, perdi o Chico “Pança”, Martins de seu nome, de vista. Para sempre. Falavam-me que estava na GNR. Nunca tive a sorte de o encontrar nas tertúlias onde alguns vilarrealenses, em que às vezes me incluo, se emborracham de nostalgia e de histórias de outras eras. Há muito que o sabia doente. Agora, dizem-me que o Chico morreu. Deixo-lhe aqui o abraço possível, do tamanho do (velho) Circuito, que, lá por Vila Real, era, no nosso tempo, a medida de todas as coisas e o espaço por onde, em noites cálidas, circulavam em conversas muitos dos nossos sonhos.

“I’m back!”


Sexta-feira à noite. “Jantamos em casa?” Era só o que faltava! 

Antes, havia sido uma semana de hospital, de tabuleiros cinzentos, talheres em envelopes de papel, sopas sempre iguais (ou era eu que as via como tal), pratos sem pinta de graça, que chegavam cobertos por uns “pudins” de plástico translúcido, sobremesas em que o mais sexy que nos era oferecido era uma maça assada. Eu bem me tentava convencer que não estava ali como crítico da “Evasões” ou da “Epicur” (que já deixei de ser) ou de júri do “Lisboa à Prova” (que atribui “garfos”, função onde ainda faço uma “perninha”) ou de membro da direção da Academia Portuguesa de Gastronomia, mas, muito prosaicamente, para tratar de um joelho. Mas qual quê! A certa altura, dentro daquelas quatro paredes, perdi mesmo o apetite. Como sou um bocado hipocondríaco (nem só o Marcelo tem esse direito, ora bem!), pensei logo que, para além da camoeca na articulação, me tivesse “dado alguma”. Olhava de viés os tabuleiros, tirava uma peça de fruta e mandava o resto para dentro. Com mais quinze dias, como alguém me dizia com ironia estética, estaria com o peso ideal. (Verdade seja que seria a mais cara dieta de Lisboa - e mais não digo).

Regressado finalmente a casa, com uma canadiana de cada lado, também regressou logo o apetite: afinal, era o ambiente do hospital o culpado pelo fastio. Retomei as vitualhas correntes do lar, só não indo mais vezes à cozinha pela noite (ao pão, ao chocolate, às bolachas, ao queijo, ao salpicão) porque ela fica no andar de cima e as canadianas, até lá chegar, fazem pela escada um restolho que denuncia o meu caminho de Damasco para o pecado da gula. E logo eu, que sou, por natureza, muito envergonhado com os meus pecados. Diferentemente do hospital, tenho de admitir que as coisas, em casa, começaram a ter o seu sabor próprio. Mas, claro, continuavam ainda a ser diferentes do ambiente dos restaurantes, um vício pessoal antigo. 

Até ontem! Ontem, passava já das oito da noite, Portugal já vencia o Luxemburgo, enterrado num sofá, deu-me um “vaipe” e telefonei para um restaurante. Um dos bons, claro, porque só se vive uma vez e, segundo alguns amigos, esta é mesmo a última! Estava cheio! Era sexta à noite! Como quem não quer a coisa (mas quer), “deixei cair” o meu nome na conversa. Porque, do outro lado, estava gente conhecida e simpática, logo uma mesa surgiu, como por milagre. Foi um “golpe” algo anti-democrático? Talvez, mas assumo-o, em “estado de necessidade”. Arranjou-se mesmo uma excelente mesa. Chegado ao restaurante, bem instalado, com duas canadianas e uma portuguesa ao lado, “desbundei” (isto diz-se?): pão, patés, manteigas (tudo aquilo de que o meu colesterol gosta), umas boas entradas, um prato magnífico, um belo vinho “à maneira”, um queijo da serra no ponto, acabando com um bom whisky, para “desinfetar” e tirar o gosto ao café. 

Pronto! Vinguei-me de duas semanas em que me senti quase “recluso”. No final, no ar já frescote da noite lisboeta, lembrei-me da última frase de Paul Newman no “The colour of money”: “I’m back!”. Já não era sem tempo, caramba!

sexta-feira, outubro 11, 2019

Da bandeira e outras coisas

O tempo está para temas quentes. Começou com a gaguez da nova deputada do Livre, agora é tempo de se falar da bandeira da Guiné-Bissau que, para escândalo de alguns, surgiu nas comemorações da sua eleição. Vamos a isso, sem receios. Não vou utilizar o léxico do politicamente correto, vou dizer as coisas com a linguagem da conversa comum, que é a minha.

Começo por notar que, se Portugal estivesse em conflito político aberto com um qualquer país, eu sentir-me-ia chocado que surgisse uma bandeira desse Estado num ato público português. Era, no mínimo, um gesto agressivo, por muito que preze a liberdade de expressão. E indignar-me-ia.

A Guiné-Bissau, porém, é um país amigo, de onde tem vindo para Portugal muita e boa gente, que aqui ajuda à nossa diversidade, que aqui honestamente trabalha, que aqui continua a habituar os portugueses a viverem com a diferença, o que muito contribui para a nossa riqueza cultural - embora, pelos vistos, ainda não o suficiente para convocar a tolerância em muitas cabeças.

Que uma cidadã oriunda da Guiné-Bissau consiga singrar na sociedade portuguesa e, para além de uma carreira académica de relevo, tenha conseguido ser uma das 230 pessoas que os portugueses escolheram para os representar, isso deveria, na minha modesta opinião, constituir um orgulho nacional, um preito à nossa política de integração. Um país que andou pelo mundo tem obrigação de ficar contente que esse mundo, onde também se fala a sua língua, aqui se acolha e viva.

Não necessito que um cidadão deixe de sentir-se e dizer-se guineense quando adquire nacionalidade portuguesa, como não espero que um luso-descendente, dos muitos milhares que encontrei na minha vida diplomática, bem integrados e que hoje são também orgulhosos brasileiros ou franceses, “esqueça” de onde veio. Ficaria triste se isso acontecesse.

Faço parte de um Portugal que gosta de ver as ruas cheias de gente “de fora” - negros, indianos, asiáticos ou brancos. Gosto muito de ouvir um caboverdeano ou um timorense ou um brasileiro dizerem “tenho a nacionalidade portuguesa”. Sou de um país que tem uma “alma” nacional muito larga, que não vive em trincheiras de um nacionalismo serôdio.

Que uma cidadã da Guiné-Bissau - ou de Angola, ou de Timor ou do Brasil - sinta orgulho em exibir a bandeira do país de onde é originária, sublinhando que mantém carinho pelas suas origens, isso pode escandalizar alguém? Suspeito, aliás, que se a nova deputada fosse branca (e, em especial, se fosse um homem) e a bandeira exibida fosse a do Brasil todo este sururu não tinha surgido.

Se um português eleito para um qualquer cargo nos Estados Unidos, na França ou na Sildávia, exibir a bandeira da terra dos seus pais ou onde ele próprio nasceu, destacando assim a sua fidelidade afetiva ao lugar de onde vem, o que pode isso soar a estranho? É alguma deslealdade face ao país que o elege um cidadão assinalar de onde veio e o carinho que continua a sentir por esse lugar?

Dirão alguns: mas essa cidadã critica publicamente o racismo que existe na sociedade portuguesa. “And so what?” E se acaso fosse um deputado branco, aqui nascido, a constatar, alto e bom som, essa realidade - a de que, entre nós, há racismo, discriminação e xenofobia? Era mais aceitável? Só por ser uma cidadã originária de um país africano já não o pode fazer? Há algum “capitis diminutio”, como se se dissesse “já bastou ser aceite como deputada em Portugal, não tem o direito de criticar o país que lhe deu esse estatuto”?

Cheira-me que todo este escândalo em torno da deputada do Livre acarreta, atrás de si, muito preconceito, bastante xenofobia e algum racismo. Posso estar enganado, mas acho que esta polémica e todo este debate vão acabar por ser salutares, porque vão deixar muito claro que o Portugal velho, do patriotismo primário, que andava escondido nas graçolas discriminatórias, mesquinhas e medíocres, vai ficar exposto de uma vez por todas.

Joacine Katar Moreira pode vir a fazer muito bem ao arejamento das cabeças deste país. Eu, apesar de tudo, acredito sempre na vitória das luzes sobre as trevas.

Adeus, Geringonça!


Quando António Costa, naqueles dias tensos de 2015, deu indícios de poder vir a fazer um acordo parlamentar com o Bloco de Esquerda e o PCP (e com essa ficção chamada PEV), deu um passo maior do que muitos estavam à espera. Eu, por exemplo. 

Para um país cuja credibilidade perante os credores era então muito frágil, com o exemplo grego a não ajudar à imagem do “sul”, temi que o “espetro” da esquerda radical na soleira do poder em Lisboa pudesse vir a provocar sobre nós uma onda negativa, com efeito nesses mercados que, por muito diabolizados que sejam, existem mesmo e têm de ser tidos em conta. 

Trazer a “esquerda da esquerda” para um “programa comum” (o que isto lembra, a quem tem boa memória!), ainda que limitado, era uma aposta bastante arriscada. 

Mas António Costa tinha razão: era possível estabelecer uma plataforma que, simultaneamente, garantisse poder vir a utilizar uma margem do crescimento previsível da economia, para recuperar rendimentos perdidos durante os tempos tristes da “troika” e dos seus amigos, e, simultaneamente, cumprir o essencial dos compromissos que o país (porque era o país e não um qualquer governo em especial) tinha com a Europa e com o FMI.

Os eleitorados da “esquerda da esquerda” gostavam da ideia da Geringonça, parte deles ainda traumatizados com as consequências de as suas direções partidárias terem votado, em 2011, ao lado da direita, o derrube de um PEC IV que, viesse a ter o destino que tivesse, era contudo uma esperança que, politicamente, lhes não cabia a eles pôr fim. É que, como imediata consequência, saiu-lhes na má rifa Passos Coelho e a vontade de ir além da dieta da “troika”. A abertura para a Geringonça, do lado dessa esquerda, foi isso mesmo: tudo menos a direita!

A Geringonça foi o que foi. O principal usufrutuário, a grande distância, foram os portugueses, o bem-estar de muitos, em especial de quantos antes tinham sido mais vitimados pela política desumana da direita. Como partido, o PS foi quem mais ganhou com o “negócio”, embora muito menos do que estaria à espera, creio eu. O PCP foi o principal perdedor. O Bloco ficou ela-por-ela. 

Agora, para o futuro, cumprido já pelo PS o máximo que poderia fazer sem colocar em causa os seus princípios - e o seu equilíbrio interno, de que Costa continua a ser o único garante -, partimos para um tempo novo: acordos caso-a-caso. É um cenário muito mais complexo para gerir, mas não é de todo impossível de levar a cabo com êxito. Se a conjuntura externa se não degradar, se a direita se não reencontrar em torno de pretextos internos para explorar, as coisas podem caminhar bem, pelo menos até depois das presidenciais, onde se espera que o coração de Marcelo - um “padrasto” da Geringonça - continue a bater no sentido do interesse do país.

A Geringonça, essa, acabou. A situação está agora mais imprevisível, mais perigosa para António Costa. Mas o que é a vida política sem riscos, não é?

Adeus, Geringonça! Vamos ter saudades tuas.

Para o que der e vier


No Palácio das Necessidades de outros tempos, havia umas curiosas figuras, uns diplomatas com carreiras pouco notáveis, a quem, por prudência, nunca tinham sido atribuídas especiais responsabilidades ou que, tendo-as algum dia tido, não haviam estado à altura daquilo que lhes fora pedido. Colocados por isso, no seu regresso a Lisboa, em repartições secundárias, pouco tendo que fazer, pairavam pelas salas para belas conversas, contando histórias e alimentando a curiosidade dos neófitos recém-chegados à casa. 

Era aquilo a que alguns chamavam os “velhos ministros de segunda”, isto é, funcionários que tinham categoria hierárquica de “ministro plenipotenciário de segunda classe“, a mínima para chefiarem uma embaixada, mas que o bom-senso recomendava que fossem mantidos, tanto quanto possível, pela “secretaria de Estado”, nome pelo qual os serviços lisboetas no MNE são conhecidos no jargão diplomático. Um dia, num qualquer “movimento”, lá iriam para uma sinecura periférica, graças ao apelido ou a um diretor-geral amigo.

Nesse entretanto, as geografias lúdicas de eleição dessas figuras eram uns sofríveis sofás de napa clara que abrilhantavam as nossas salas de trabalho. Tratava-se, quase sempre, de gente muito simpática e agradável. Abancavam por ali, fumando às vezes o seu cachimbo ou a sua boquilha, saltitando a conversa entre os cinco ou seis colegas que, à sua revelia, procuravam trabalhar. Eles “faziam sala”, lembravam episódios, tentavam ser pedagógicos com os jovens colegas que lhes ouviam, fascinados, histórias apimentadas ocorridas em postos bizarros, locais onde às vezes tinham criado a fama que acabara por transformar o seu currículo num cadastro profissional que traziam colado ao nome.

Uma dessas personagens, um dia, resolveu teorizar sobre política externa. No tema, o nosso homem era um elaborado cultor da inércia. Desenvolvia uma teoria segundo a qual a ação era quase sempre o caminho para o erro. “Em política externa”, dizia ele, “as mais das vezes a atitude mais prudente é nada fazer”. E explicava porquê: “Quase nada depende de nós. Quem decide as coisas que importam no mundo não é sensível a uma voz fraca como a do nosso país”. Alguém cuidou então em inquirir, já no limiar da ousadia : “Mas, nesse caso, o que é que andamos aqui a fazer?” O nosso homem não se desmanchou: “Estamos aqui para o que der e vier”. E, com o sorriso esfíngico e bigode de coronel das Índias, fechou atrás de si a porta e deixou-nos a digerir a, seguramente sábia, metáfora.

Tenho por aí visto os cultores da máxima “menos Estado, melhor Estado” - a que quase sempre se esquecem de acrescentar “e o que sobrar que seja para nós” - proporem uma redução da estrutura diplomática, talvez por que também achem que são os outros que, no fundo, decidem a nossa vida. Se um país como Portugal tivesse ficado à espera da História, a sua capacidade de autodeterminar a sua vida estaria hoje reduzida a zero. A diplomacia é o contrário da inércia, é o risco da ação, pela avaliação constante do modo de defender os nossos interesses na teia dos interesses globais. Numa coisa o meu velho colega tinha razão: a nossa diplomacia aí está, desde sempre, para o que der e vier.

quinta-feira, outubro 10, 2019

Da bandeira e outras coisas


O tempo está para temas quentes. Começou com a gaguez da nova deputada do Livre, agora é tempo de se falar da bandeira da Guiné-Bissau que, para escândalo de alguns, surgiu nas comemorações da sua eleição. Vamos a isso, sem receios. Não vou utilizar o léxico do politicamente correto, vou dizer as coisas com a linguagem da conversa comum, que é a minha.

Começo por notar que, se Portugal estivesse em conflito político aberto com um qualquer país, eu sentir-me-ia chocado que surgisse uma bandeira desse Estado num ato público português. Era, no mínimo, um gesto agressivo, por muito que preze a liberdade de expressão. E indignar-me-ia.

A Guiné-Bissau, porém, é um país amigo, de onde tem vindo para Portugal muita e boa gente, que aqui ajuda à nossa diversidade, que aqui honestamente trabalha, que aqui continua a habituar os portugueses a viverem com a diferença, o que muito contribui para a nossa riqueza cultural - embora, pelos vistos, ainda não o suficiente para convocar a tolerância em muitas cabeças.

Que uma cidadã oriunda da Guiné-Bissau consiga singrar na sociedade portuguesa e, para além de uma carreira académica de relevo, tenha conseguido ser uma das 230 pessoas que os portugueses escolheram para os representar, isso deveria, na minha modesta opinião, constituir um orgulho nacional, um preito à nossa política de integração. Um país que andou pelo mundo tem obrigação de ficar contente que esse mundo, onde também se fala a sua língua, aqui se acolha e viva.

Eu não necessito que um cidadão deixe de sentir-se e dizer-se guineense quando adquire nacionalidade portuguesa, como não espero que um luso-descendente, dos muitos milhares que encontrei na minha vida diplomática, bem integrados e hoje também orgulhosos brasileiros ou franceses, “esqueça” de onde veio. Ficaria triste se isso acontecesse.

Faço parte de um Portugal que gosta de ver as ruas cheias de gente “de fora” - negros, indianos, asiáticos ou brancos. Gosto muito de ouvir um caboverdeano ou um timorense ou um brasileiro dizerem “tenho a nacionalidade portuguesa”. Sou de um país que tem uma “alma” nacional muito larga, que não vive em trincheiras de um nacionalismo serôdio.

Que uma cidadã da Guiné-Bissau - ou de Angola, ou de Timor ou do Brasil - sinta orgulho em exibir a bandeira do país de onde é originária, sublinhando que mantém carinho pelas suas origens, isso pode escandalizar alguém? Suspeito, aliás, que se a nova deputada fosse branca (e, em especial, se fosse um homem) e a bandeira exibida fosse a do Brasil todo este sururu não tinha surgido.

Se um português eleito para um qualquer cargo nos Estados Unidos, na França ou na Sildávia, exibir a bandeira da terra dos seus pais ou onde ele próprio nasceu, destacando assim a sua fidelidade afetiva ao lugar de onde vem, o que pode isso soar a estranho? É alguma deslealdade face ao país que o elege um cidadão assinalar de onde veio e o carinho que continua a sentir por esse lugar?

Dirão alguns: mas essa cidadã critica publicamente o racismo que existe na sociedade portuguesa. “And so what?” E se acaso fosse um deputado branco, aqui nascido, a constatar, alto e bom som, essa realidade - a de que, entre nós, há racismo, discriminação e xenofobia? Era mais aceitável? Só por ser uma cidadã originária de um país africano já não o pode fazer? Há algum “capitis diminutio”, como se se dissesse “já bastou ser aceite como deputada em Portugal, não tem o direito de criticar o país que lhe deu esse estatuto”?

Cheira-me que todo este escândalo em torno da deputada do Livre acarreta, atrás de si, muito preconceito, bastante xenofobia e algum racismo. Posso estar enganado, mas acho que esta polémica e todo este debate vão acabar por ser salutares, porque vão deixar muito claro que o Portugal velho, do patriotismo primário, que andava escondido nas graçolas discriminatórias, mesquinhas e medíocres, vai ficar exposto de uma vez por todas.

Joacine Katar Moreira pode vir a fazer muito bem ao arejamento das cabeças deste país. Eu, apesar de tudo, acredito sempre na vitória das luzes sobre as trevas.

A Turquia, a Síria e os curdos


Em 2013, ao tempo já reformado do serviço ativo, fui oficialmente convidado para ir à Turquia representar Portugal numa conferência e, de caminho, em plena articulação com o nosso embaixador em Ancara, efetuar uma determinada diligência junto das autoridades turcas.

Numa das noites que passei na capital turca, o nosso embaixador teve a gentileza de convidar para jantar um dos responsáveis oficiais que me tinha recebido e um meu velho amigo turco, figura destacada do principal partido da oposição. Ambos se conheciam, embora estivessem em polos políticos opostos.

Viviam-se então dos mais dramáticos momentos do fluxo de refugiados sírios, fugindo da guerra interna nesse país para a Turquia. Os números eram impressionantes e as dificuldades de acomodação desses refugiados eram imensas, com a comunidade internacional pouco presente na ajuda a Ancara, o que era muito ressentido pelos turcos. 

Nesse dia, numa conversa havida com um diretor-geral no MNE turco e numa outra na sede do AKP, com o vice-presidente do partido do governo, dei-me conta do fortíssimo impacto político interno do problema, nesse tempo ainda pouco evidente à escala da imprensa mundial.

No jantar, como não podia deixar de ser, a questão veio à baila. E foi curioso constatar que, entre duas figuras que representavam posições políticas tão contrastantes no plano da política interna turca, se verificava uma identidade total de pontos de vista sobre um tema que ontem se tornou candente à escala internacional: a alegada necessidade da Turquia conseguir estabelecer uma “zona tampão” dentro do território sírio. 

O argumento, naquele momento, era o controlo do fluxo de refugiados, embora no “não dito” da conversa ficasse claro que a questão curda era verdadeiramente o cenário de fundo, em termos de real objetivo político.

A questão curda é um tema identitário muito forte na Turquia, que atravessa transversalmente a vida política do país. Agora, com os Estados Unidos a deixarem cinicamente à sua sorte os curdos que os tinham ajudado na luta contra o Daesh, com uma Europa inexistente na região, apenas com a Rússia como “broker” do problema, o eterno drama curdo só pode vir a agravar-se.

quarta-feira, outubro 09, 2019

E agora?


Tenho todo o respeito por esta senhora - ainda há dias falei de Andrew Duff, um deputado britânico gago e imensamente competente - mas temos que ser realistas: um partido que só tem esta voz no parlamento vai ter imensas dificuldades para ser eficaz no debate político.

O papel selado


Naquele declinar da tarde, vi Délio Machado assomar a uma das portas da Gomes, a pastelaria de Vila Real onde, a todas as horas desses dias, abancávamos em morna conspiração política.

Estávamos em outubro de 1969, há precisamente 50 anos. Desde agosto, organizávamos no distrito a candidatura oposicionista às eleições para a Assembleia Nacional.

Délio Machado era uma figura importante da luta oposicionista local, uma espécie de lugar-tenente de Otílio de Figueiredo, o médico que era a grande referência democrática na cidade. Aproximou-se da mesa e disse-me: “O dr. Otílio quer fazer uma reunião urgente connosco”. 

O trajeto era curto. O escritório da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) de Vila Real ficava num terceiro andar (na imagem), que nos fora cedido gratuitamente, no mesmo prédio da pastelaria. 

À subida da escada (o elevador nunca funcionou), a cada patamar, lá os víamos em frente, encostados “casualmente” à parede da Brasileira - os pides ou os bufos que informavam os pides de quem entrava no antro oposicionista. Nós sabíamos quem eles eram, eles sabiam que nós sabíamos quem eles eram e tudo assim funcionava naquela pequena e abafada cidade de província.

Entrámos na sala, onde Otílio de Figueiredo nos aguardava. Ficámos aí umas seis pessoas, basicamente o “núcleo duro” da CDE. Havia mais uma presença, um velho oposicionista de uma vila próxima, que tratava por tu Otílio de Figueiredo, gente de toda a confiança, daqueles que já tinham “feito o Delgado”, um ou outro mesmo “o Norton”. Pessoas que, sem falta, reapareciam quando era necessário reapelar às hostes contra o regime.

Otílio de Figueiredo deu-nos conta de que Sottomayor Cardia, da estrutura da CDE de Lisboa, nos perguntava se podíamos dar o nosso apoio a uma determinada posição comum, que se pretendia tão alargada nacionalmente quanto possível. A delicadeza do tema não tornava a decisão fácil.

A discussão começou. A certo passo, o velho democrata, um tanto inopinadamente, dado que não tinha funções na organização, decidiu intervir. Fê-lo um pouco fora do tom geral da conversa e, essencialmente, sem o menor sentido construtivo para a decisão que tinhamos de tomar, com relativa urgência. Espraiou-se em considerações, e nunca mais se calava. Nós olhávamos para os relógios, com o fim da tarde e a hora limite para a resposta a aproximarem-se.

Vi Otílio de Figueiredo começar a perder a paciência, a ficar nervoso, em silêncio. Sabedores da relação entre os dois, nenhum de nós ousava interromper a litania do velho democrata.

Num certo momento, Otílio olhou fixamente para ele, com ar sério, e perguntou-lhe: “Olha lá! Tu sabes a que horas fecha o Bragança?”. O Bragança era uma tabacaria que se via ao longe, a umas dezenas de metros. O outro, surpreendido, respondeu, sem certeza: “Lá para as sete e meia, creio eu”.

“Ainda temos algum tempo! Tu fazias-nos era um grande favor se, enquanto nós resolvemos aqui este assunto, fosses ali ao Bragança comprar já meia folha de papel selado para um requerimento urgente, de que já me tinha esquecido!”. O homem, sentindo-se útil, respondeu “Vou já!”, levantou-se e, prestimoso, saiu pela porta fora. Deve ter deduzido que íamos requerer algo importante ao Governador Civil.

Fechada a porta, saído o homem do “reviralho”, Délio Machado, interpretando a nossa curiosidade coletiva, inquiriu de Otílio de Figueiredo: “O requerimento é sobre quê?” O bigode do dr. Otílio sorriu, ao responder: “Sobre nada! Não há requerimento nenhum. Mas assim ganhamos algum tempo para tomar uma decisão, sem a presença daquele chato!”.

Terá sido nesse momento que eu percebi, realmente, que o velho “reviralhismo” deixara de ter a menor importância na luta da oposição à ditadura.

Lateralização ideológica

Um dos truques para tentar normalizar politicamente o Chega é equiparar simetricamente a extrema-direita a todo o espetro político à esquerda do PS.

Só gente mal informada, que não regula bem ou que está de má fé pode comparar André Ventura a Rui Tavares ou Catarina Martins.

O deputado das caixas da comentários



Somos um país ingénuo. Recordo-me de que, durante anos, nos fomos auto-sossegando pelo facto de não existirem vozes parlamentares que ecoassem os ódios da extrema-direita. Uns, mais líricos, diziam que éramos diferentes, que o racismo e a xenofobia não existiam por cá. Outros achavam que o trauma, relativamente recente, de uma ditadura imunizara o país contra apelos autoritários ou populistas. 

E, agora, ele aí está: um deputado, um eleito do povo, com um discurso onde muitos leem o apelo à discriminação, um tom racista, xenófobo e autoritário, que cavalga, de forma demagógica e populista, medos e sentimentos mesquinhos, os mesmos que atravessam a lixeira moral das caixas de comentários dos jornais e dos “sites”, onde se alimenta a linguagem acre sobre “eles” – sobre os “pretos”, a “ciganada”, os “mouros”, os “monhés”, os estrangeiros, os imigrantes, os refugiados, enfim, sobre o diferente. Agora, já não são apenas “skinheads” e patrioteiros caricatos, abusando a bandeira verde-rubra. Será alguém engravatado, do alto da sua imunidade parlamentar, com direito regular a tribunas mediáticas, a espaços para fomentar proselitismo, junto desse Portugal de frustrados e de raivosos, do “isto é tudo um bando de gatunos e corruptos”. 

Esse deputado demorou a chegar, mas chegou. A extrema-direita aí está, pronta a concitar politicamente receios, a explorar a criminalidade num dos países mais seguros do mundo, a rejeitar a abertura humanista aos refugiados, a pôr em causa a imensa riqueza que é vivermos hoje num país da diversidade, nesta bela praça de diferenças, feita de gentes vindas de um mundo por onde um dia outro Portugal andou.

Não me apetecia lembrar isto, mas não me posso furtar a fazê-lo: lamento que tenha sido Pedro Passos Coelho, alguém de quem discordo profundamente mas por quem tenho consideração pessoal, que tenha cometido o gravíssimo erro político de proporcionar, através do PSD, um palco a uma figura deste jaez.

Estarei a exagerar? Não será isto um mero epifenómeno, controlável e contível nas suas proporções? A história recente da Europa mostra-nos que esta é uma nódoa que alastra com grande facilidade, porque se apoia em sentimentos primários, em caricaturas fáceis, em reações epidérmicas. Quando vozes que ganham um estatuto institucional surgem a dizer alto aquilo que muitos, envergonhadamente, pensam ou murmuram, o mal está feito. É a democracia, dirão alguns. Prouvera que a democracia tivesse boas armas para combater a mentira. O facto é que, muitas vezes, não tem.

terça-feira, outubro 08, 2019

Verdes anos


A deputada "verde" Heloísa Apolónia foi, nos últimos anos, uma cara muito em evidência nas televisões, por virtude do seu trabalho parlamentar. Sai agora, por não ter sido eleita.

Ao tempo em que estive no governo, os “Verdes”, que já então aí ocupavam dois lugares, tinham como sua figura mais proeminente a minha amiga Isabel Castro, a par com Heloísa Apolónia. Isabel Castro já saiu há muito tempo da Assembleia da República.

Um dia, em 1998, a Isabel e eu fizemos parte da comitiva do presidente Jorge Sampaio, durante uma visita de Estado à Polónia. Estávamos a almoçar numa cervejaria em Gdansk quando, para surpresa de toda a delegação, que incluía representantes de todos os partidos, eu atirei, de chofre, a meio de uma conversa: "Pensando bem, acho estranho que a Isabel faça parte desta delegação".

Ficou toda a gente a olhar para mim, a começar por Jorge Sampaio, seguramente surpreendido pela dureza a minha frase, mas que, estranhamente, foi dita com um largo sorriso.

Isabel Castro era uma deputada respeitada, mantinha com todos nós uma grande cordialidade e companheirismo, pelo ninguém estaria à espera, da minha parte, de uma atitude tão pouco cavalheiresca. A começar pela própria Isabel, com quem eu tinha uma excelente relação pessoal, que ficou estupefacta.

Antes que alguém reagisse, esclareci logo: "Então não seria muito mais natural ter vindo a Heloísa 'à Polónia’ ?!'"

Acabou tudo a rir, o que era o meu objetivo, naquele grupo bem simpático de gente.

Manuela Silva


“Creio que ainda não nos conhecemos pessoalmente. Acompanho-o, à distância, há muitos anos. Gostava de lhe dizer que o oiço e leio sempre com muita atenção e agrado, mesmo quando às vezes posso não concordar consigo”. Guardo no meu álbum afetivo de memórias esta frase que, um dia, já há muitos anos, ouvi de Manuela Silva, ao vir ter comigo, com um sorriso simpático, no início de um colóquio na Gulbenkian, organizado pela “Comissão Nacional Justiça e Paz”, para o qual eu fora convidado por José Manuel Pureza. 

Não sei o que lhe respondi, para além do óbvio agradecimento. Mas, apanhado pelo inesperado do gesto, muito provavelmente não soube então expressar-lhe a grande admiração que, desde sempre, mantinha por aquela senhora, que, partindo de uma postura religiosa que sempre a motivava a intervir civicamente por causas nobres, como a luta contra a pobreza e a busca da paz, me habituara a respeitar como uma figura com uma imensa dignidade na sociedade portuguesa.

Manuela Silva, que depois vim a cruzar em diversas outras iniciativas, e com quem cheguei a subscrever posições públicas conjuntas sobre alguns temas, morreu agora, aos 87 anos. Professora catedrática do ISEG, fez parte do primeiro governo constitucional e manteve-se sempre como uma relevante voz nos meios católicos portugueses.

segunda-feira, outubro 07, 2019

Quem me dera!


Quem me dera poder ir ao Grémio Literário, ali na rua Ivens, ao Chiado, pelas 18.30 da próxima quarta-feira, dia 9 de outubro, ouvir Nuno Júdice e Fernando Rosas falarem sobre “O Modernismo e a Primeira República”, em mais um encontro da série de debates que Luís Castro Mendes ali está a realizar. Mas infelizmente não posso!

A entrada, dizem-me, é livre, mas a escassez de lugares recomenda reserva (o telefone do Grémio, já agora, é 213 475 666). Depois do colóquio há um jantar (pago, claro), mas sobre as inscrições para o dito nada sei. Só sei que, graças à intervenção da “expertise” de José Bento dos Santos, a pedido do presidente António Pinto Marques, se está a comer cada vez melhor no Grémio.

America! America!


Digam lá se não é mesmo um imenso privilégio histórico viver num tempo em que um presidente dos Estados Unidos da América publica um “tweet” com este teor:

As I have stated strongly before, and just to reiterate, if Turkey does anything that I, in my great and unmatched wisdom, consider to be off limits, I will totally destroy and obliterate the Economy of Turkey (I’ve done before!).

“It’s the economy, stupid!”


Há quase uma década, no auge da nossa crise financeira, enquanto embaixador em Paris, chegado ao escritório, a primeira coisa que fazia era abrir o “Financial Times”, pela página do segundo caderno onde vinham os “spreads” da nossa dívida pública, referenciada face ao tratamento que os mercados davam à dívida alemã. Esse diferencial era a medida da nossa tragédia.

De seguida, baixava o olhar umas linhas e comparava o nosso “spread” com o da Espanha. Não me movem emulações peninsulares (a boa diplomacia portuguesa não usa a palavra “ibérico”), mas ia constatando que os nossos vizinhos tinham sempre uma melhor aceitação nos mercados. Não havia nenhuma conspiração contra nós ou algum conluio da imprensa financeira para favorecer Madrid. Aplicava-se apenas a famosa expressão que um assessor de Bill Clinton consagrou um dia para sempre: “It’s the economy, stupid!”

A Espanha continuou a ter um diferencial favorável face a nós, até hoje. Hoje mesmo! Leio num “alerta“ no iPhone que, nesta data de 7 de outubro de 2019, Portugal igualou o “spread” da Espanha. Olé!

Santana


Já quase tudo foi dito sobre Santana Lopes. Mas o que ontem se passou veio acrescentar uma linha triste a um percurso, pessoal e político, de alguém que parece não ter percebido - nisso não tendo sido ajudado pelos seus amigos - que a má gestão de uma ambição, por não ser acompanhada por um mínimo de bom-senso, pode debilitar, quiçá definitivamente, pelo caricato de algumas situações que arrasta, um perfil público que chegou a ter aspetos de assinalável relevância nacional. 

Limitemo-nos ao essencial: é deprimente ver alguém que um dia chefiou a principal autarquia do país e até, episodicamente, um governo, embora nas condições em que este último facto aconteceu, tendo-o feito em nome de um partido axial do nosso sistema, surgir ao final da noite de ontem com o patético resultado que teve. Vê-lo, há dias, diluído no debate televisivo dos “pequenos”, já havia sido um espetáculo lamentável. 

Dirá a sua “claque”, que aparentemente vive cega pela amizade e lealdade, que Santana foi apenas corajoso, que tudo isto faz parte das leis da democracia, que há por ali empenhamento cívico, humildade política e até uma saudável ousadia. Os amigos de Santana Lopes podem acreditar no que quiserem, até no Pai Natal, mas, com grande sinceridade, acho que fariam melhor se o ajudassem a defender-se de si mesmo. E mais não digo.

O Partido Socialista



O PS ganhou. Não foi uma vitória pírrica, mas foi um resultado que ficou claramente aquém daquilo que a sua governação, nestes quatro anos, justificaria, em termos de reconhecimento político por parte dos portugueses. 

Pela qualidade daquilo que executou, pela sua solidez no plano financeiro e europeu, pela estabilidade “feliz” que proporcionou ao país, num diálogo construtivo à esquerda e com o presidente da República - tudo isso deveria ter conduzido a uma maioria robusta e, mesmo, absoluta. 

O que é que falhou? Muita coisa. Há na imagem que o PS projeta alguns toques que são interpretados como de arrogância, sendo que essa alegada arrogância tem mesmo algumas caras e nomes. É também isso que leva a que todos tivéssemos encontrado, nos últimos meses, muita gente, que se dizia apoiante de António Costa e do PS, a afirmar que preferia que o partido não tivesse uma maioria absoluta, num reflexo quase masoquista só compreensível pela falta de confiança naquilo que o PS faria com essa maioria.

Os socialistas também alienaram, nestes tempos, setores importantes de algumas corporações - médicos, enfermeiros, professores, etc - ou induziram dúvidas noutras, como a magistratura. E isso também se contou ontem em termos de votos. Se o fator incêndios já havia sido relativamente reabsorvido, o escândalo de Tancos foi gerido pessimamente e deu uma imagem muito negativa ao governo, com impacto evidente nas urnas, com os habilidosos “timings” do Ministério Público a ajudarem à festa. 

O PS é um partido que parece não perder uma oportunidade para conseguir perder uma oportunidade, e esta era verdadeiramente única: com a direita em frangalhos, nenhuma conjuntura, nacional e internacional, nos tempos mais próximos, dará ao PS melhores condições para conseguir uma maioria absoluta como as que teve na sua mão, no caminho para estas eleições. 

Agora, nenhuma Geringonça será viável exatamente nos mesmos termos, sendo que um apoio eventual do Bloco de Esquerda, auto-excluídos que os comunistas parece estarem do cenário, a vir a ser conseguido, poderá ter um impacto negativo na identidade ideológica do PS, muito para além do efeito que algumas reversões de 2015 circunstancialmente acarretaram. Resta ainda a incógnita do PAN, cujo apoio também pode ter um custo, em termos de credibilidade e de moderação social, bastante elevado. Não vai ser fácil negociar o futuro.

Porque vivi (com António Costa) num governo que teve de fazer penosas alianças “ad hoc” para se sustentar, não esqueço os abalos, na coerência global do executivo, em que tudo isso resultou, até com registo eterno no anedotário político nacional.

Tenho grande esperança que o instinto de sobrevivência não suplante, no PS, o sentido de rigor e fidelidade ao seu programa. Por mim, com toda a sinceridade, tenho extrema confiança no sentido de responsabilidade de António Costa.

domingo, outubro 06, 2019

Têvês

Ter representantes dos partidos como convidados pelas televisões é sempre uma “seca”: nenhuma novidade sairá da boca de nenhuma daquelas caras, que vão para ali debitar “tempos de antena”, dizendo o óbvio. Uns irão “explorar o sucesso”, outros irão disfarçar as derrotas.

Queremos ouvir a sua voz!


O voto é o momento mais democrático da vida de uma sociedade. O voto de cada um é igual ao voto de qualquer outro.

Intimamente, há ainda muito quem ache que o seu voto, por ser mais informado ou educado, não deveria valer o mesmo que o de pessoas menos conhecedoras ou desinformadas. Esse elitismo, de quantos entendem o seu voto mais “qualificado”, reflete um vetusto sentimento anti-democrático, que, entre nós, esteve subjacente à ditadura, que reservava o direito de voto a uns “happy few”.

Ora é precisamente o saldo de diversidade de perspetivas e sentimentos o verdadeiro “barómetro” da sociedade e do país.

Posso perceber que alguém chegue à urna de voto e decida não escolher entre as opções que lhe são propostas, por não gostar de nenhuma delas ou por se considerar menos informado para escolher. Percebo o voto em branco.

Posso perceber quem, numa reação mais afirmativa, decide riscar a globalidade do boletim ou deixar nele expresso, tornando-o inválido, o que lhe vai na alma (seria, aliás, pedagógico estudar esses ditos), num qualquer gesto expressivo de revolta. Percebo o voto nulo.

Mas não consigo perceber o abstencionista. O abstencionista é um irresponsável e um inconsciente. Não percebo quem, não tomando deliberadamente posição (o voto em branco ou nulo representam, apesar de tudo, uma expressão de respeito mínimo perante o sistema, ao levarem o cidadão a ir ao local de voto), se acha depois no direito de vir protestar pelo andamento das coisas públicas.

Há cidadãos que não gostam daquilo que os que estão (pela vontade coletiva anterior) na gestão do Estado fazem ou não fazem? Então escolham outros em quem tenham confiança de que podem vir a fazer diferente. Ao não votarem, entregam o país àqueles que votam. Repito: depois não têm a menor legitimidade para se queixarem!

O abstencionista é um pária cívico, alguém que, no fundo, acaba por ser indigno da liberdade pela qual alguns lutaram, para que todos tivessem a mesma voz, por forma a, em conjunto, decidirem o futuro do país.

No dia de hoje, apenas me apetece dizer, a quem é de direita ou de esquerda ou de qualquer outro lado: Vote! Queremos ouvir a sua voz!

sábado, outubro 05, 2019

Dia de reflexão


Lisboa, 2012

Ferreira de Oliveira


Estes dias complexos, com acontecimentos mediáticos acumulados, não podem fazer-nos esquecer aqueles que, de uma forma discreta, durante eles se vão afastando da vida. 

Manuel Ferreira de Oliveira, que agora desaparece, foi um grande gestor português, uma figura de destaque do nosso mundo empresarial. Professor catedrático de Engenharia, tinha um impressionante currículo profissional, em especial na área dos petróleos.

Conheci-o no Brasil, há bem mais de uma década, num tempo em que ele presidia à GALP. Graças à sua prestimosa ajuda, e também a sua sensibilidade para as questões culturais, foi-me possível garantir uma interessante participação portuguesa nas comemorações dos 200 anos da ida da corte portuguesa para o Brasil, a qual, de outra maneira, não teria sido viável levar a cabo. Não esqueço isso, como não esqueço a sua permanente cordialidade e simpatia.

Há uns anos, nas Pedras Salgadas, falando com pessoas ligadas ao desenvolvimento que a companhia “Vidago, Melgaço e Pedras Salgadas” havia prometido para a vila e que viria a frustrar, ouvi da boca de um responsável local: “Nem imagina as saudades que nós temos de Ferreira de Oliveira!” Eram as saudades do modo humano e compreensivo como Ferreira de Oliveira tinha, no passado, gerido a Unicer, proprietária daquela companhia.

Deixo aqui uma muito sincera nota de pesar aos familares do engº Ferreira de Oliveira.

O cardeal


Nunca falei com Tolentino de Mendonça, e só esporadicamente fui leitor do que dele vi escrito por aí. Desse pouco que li, somado a boas opiniões a seu respeito que me têm chegado, resulta uma imagem muito positiva da figura daquele que é o novo cardeal português. 

Olhando as coisas de fora, sinto que a instituição religiosa a que ele pertence, cuja importância continua a ser muito significativa na sociedade portuguesa, sai prestigiada por esta escolha do papa.

Viva a República!


Calem-se ou pagam multa!


Hoje, dia "de reflexão", não se pode falar das eleições na comunicação social. Nem nas redes sociais, presumo. Um país que acreditasse na maturidade dos seus eleitores já teria posto termo a esta ridícula política de "faz-de-conta", que trata os portugueses como crianças.

O meu voto

(“Nunca digas em quem vais votar! O voto é secreto!”, dizia-me alguém um dia, equivocado com o sentido da frase. O voto ser “secreto” significa que ninguém deve ser obrigado a revelá-lo, mas não impede que o anunciemos, se assim quisermos fazer).

Votei sempre ao sabor do meus humores políticos. A liberdade e a independência são isso mesmo.

Votei na CDE durante a ditadura. Depois, nas primeiras eleições livres, em 1975, votei MES (uns gloriosos 1,02%), claro! Repeti o voto no MES em 1976 (“progredimos” para 0,57!). Podíamos ter ido longe, se tivéssemos continuado!

Nas presidenciais desse ano votei Otelo (sim, esse mesmo!), tal como fez Jorge Sampaio e muito boa gente, sabendo bem que não ia ganhar (teve 16,5%), mas para afirmar a minha distância face ao pré-bloco central que avançara com Eanes (em quem vim a votar, com toda a naturalidade, em 1980, menos por ser então a seu favor e, muito mais, por contra Soares Carneiro e a AD que eu detestava).

Em autárquicas, lembro-me de que cheguei a votar APU, porque, tendo vivido em Santo António dos Cavaleiros, agradou-me a gestão municipal de Severiano Falcão, em Loures.

Nas eleições legislativas e autárquicas seguintes, creio que sem exceção até hoje, depois dos “gestos” no MES em 75/76, sempre que votei, votei no PS, ou no seu bizarro e falhado heterónimo FRS. Mas, algumas vezes, nem sei bem porquê, abstive-me.

Em presidenciais, votei sucessivamente em Salgado Zenha (na segunda volta, em Mário Soares), em Mário Soares, duas vezes em Jorge Sampaio, de novo em Soares (estando Manuel Alegre na contenda), depois em Alegre e, finalmente, em Sampaio da Nóvoa.

Constato que nunca votei à direita, mas costumo dizer que, em presidenciais, poderia tê-lo feito se o candidato fosse Francisco Pinto Balsemão (e desde que não me agradasse o nome da esquerda) e não excluo poder vir a votar na reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa, se o seu comportamento e equidistância se mantiverem de um modo que continue a apreciar.

Esta minha “transparência” (que percebo não ser muito comum) serve de prólogo a uma banalidade: no domingo, vou votar PS. Vou votar, essencialmente, em António Costa, porque é alguém que demonstra ser, a grande distância, a pessoa mais bem preparada para dirigir o país.

Teve a arte de escolher Mário Centeno, soube fazer uma opção inteligente pelo respeito pelos compromissos internacionais do país, ganhou respeitabilidade na Europa e (contra a minha opinião, mas quem estava errado era eu) fez uma aliança parlamentar com a “esquerda da esquerda”, sabendo repor justiça e humanidade nas políticas públicas, depois de uns anos para esquecer.

O PS de António Costa (e sublinho ser “este” PS, e não, necessariamente, um outro qualquer) é, na minha perpetiva, o partido mais equilibrado do nosso espetro político, combinando um forte sentido social com uma visão moderna da sociedade. Tem defeitos? Imensos! Mas acho que tem muito menos do que os outros.

Por isso, embora pessoalmente não o subscrevendo, gostava que alguns amigos mais relutantes seguissem o lema de Alexandre O’Neill: “Ele não merece, mas eu voto PS”.

sexta-feira, outubro 04, 2019

Freitas do Amaral - a solidão política

Diogo Freitas do Amaral foi sempre muito enfático ao refutar a ideia de que o seu percurso político tivesse sido marcado por qualquer incoerência ou ziguezaguear ideológico. Na sua perspetiva, a realidade envolvente é que foi mudando, tendo ele permanecido rigorosamente no mesmo lugar, o que acabou por alterar, aos olhos exteriores, a sua posição relativa face a alguns dos principais atores políticos. Não é claro que as coisas tivessem sido exatamente assim, mas há alguma verdade nisso.

É que há algo que parece evidente: no plano estrito das ideias, há que convir que a evolução de Freitas de Amaral se fez sempre num quadro de razoabilidade e moderação, que eram a sua indiscutível imagem de marca. Mas, obviamente, creio que ele próprio sempre entendeu que ser visto num dia ao lado de Durão Barroso e no outro de José Sócrates não deixava de ser impressivo, e chocante, para o observador externo. E essa era talvez a razão porque sempre sentia necessidade de se justificar.

A presidência

Tenho para mim que Freitas do Amaral sempre considerou que o seu imenso capital de experiência política era mal aproveitado pelo país. Tendo chegado à soleira de Belém em 1986, para depois ser tratado de forma vil por uma família partidária próxima por quem dera a cara, Freitas terá considerado que a hipótese de um “remake” com sucesso não estava afastada por completo.

Posso estar errado, mas acho que Mário Soares foi sempre o grande “culpado” pelo alimentar desse sonho. Como nas grandes batalhas militares em que os generais opostos acabam por gerar a estranha afetividade dos contrários, Soares e Freitas conseguiram ultrapassar a ferocidade, até verbal, da contenda de 1986, vindo a estabelecer entre si uma espécie de “entente”, mais do que cordial, que, na minha perspetiva, tinha a fidelidade comum à ideia da bondade do projeto europeu como o cimento de união.

O sonho da Presidência da República, a meu ver, esteve presente em Freitas do Amaral até à sua entrada, como independente, como ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates. O seu regresso às Necessidades, onde estivera quase duas décadas antes, criava-lhe um estatuto que ele entendia poder ser um degrau potencial para proporcionar a hipótese do acesso a Belém. Freitas terá medido mal duas coisas: a desafetação que o setor conservador do país tinha criado em torno do seu nome, visto como alguém que se “mudara” para o campo contrário, e o escasso apelo que uma sua candidatura poderia suscitar à esquerda, que nem o apoio de Soares e Sócrates era capaz de ultrapassar.

O partido

Difícil e dolorosa foi a relação de Freitas do Amaral com o partido que criou em 1974. O CDS havia sido um ato de coragem cívica, ao permitir um espaço institucional de acolhimento de quantos se não reviam no tropismo socializante da Revolução. Do mesmo modo, havia sido corajosa, e coerente, a decisão de fazer o partido quebrar o unanimismo na aprovação da Constituição, em 1976. O CDS e Freitas do Amaral pagaram, com essa atitude, um preço pesado, em termos de estatuto no campo democrático.

Limitado, desde o início, pela lógica de proselitismo eleitoral no campo da direita (recordo que a semântica política era outra, à época), Freitas cedo percebeu que a capacidade de afirmação política do seu partido, em termos de governação, obrigava a delicados jogos de aliança. Se não tinha votos, o CDS tinha pessoas, era esse o seu património e era por aí que poderia consagrar-se. E Freitas fê-lo, exemplarmente, num acordo com Sá Carneiro.

A morte de Sá Carneiro e de Amaro da Costa, alter ego de Freitas, viria a decapitar um certo projeto da direita portuguesa, que a frustrada candidatura presidencial de Soares Carneiro potenciaria. Freitas afastar-se-ia mais tarde do CDS e o partido, nas suas diversas encarnações, passou a exorcizá-lo, através do endeusamento de Amaro da Costa, cuja memória passou a ser arremessada, com regularidade, contra a imagem de Freitas. A retirada do retrato do fundador do partido das paredes da sede, um ato de falsificação da História cometido no consulado de Paulo Portas, representa talvez o ponto mais baixo dessa “vendetta”, cuja ingratidão muito terá ferido Freitas do Amaral.

O Estado

Freitas nasce para o Estado com o 25 de Abril, ao ser convidado, sob o sobrolho cerrado de alguns, a integrar o Conselho de Estado. O seu estatuto académico, a imagem madura “avant la lettre” e uma certa “gravitas” concederam ao trintão Diogo Freitas do Amaral um estatuto que acabou por induzi-lo a criar um partido conservador democrático, explorando a necessidade que os militares sentiam de, feita a Revolução, construir o Estado, em moldes equilibrados que permitissem a aceitabilidade externa do regime.

O CDS de Freitas de Amaral não conseguiu, contudo, integrar qualquer dos governos provisórios, ao contrário do PPD (hoje PSD) e do PCP, bem como do partido heterónimo deste, o MDP-CDE. Só a vitória da direita, na viragem da década, levará Freitas e o CDS ao governo.

Freitas do Amaral mostrou, em todas as funções políticas que desempenhou, uma forte dedicação ao serviço público, um elevado sentido de Estado e uma qualidade de intervenção que nunca ninguém disputou com seriedade, para além das naturais divergências políticas. Refiro as duas passagens pela pasta dos Negócios Estrangeiros, de que fui testemunha próxima, mas igualmente no exercício do cargo de presidente da Assembleia Geral da ONU, um lugar que, não sendo executivo, tem uma delicadeza em termos de exercício que Freitas do Amaral soube interpretar com sabedoria, inteligência e uma forte cultura que era a sua, para prestígio de Portugal - afinal, o seu grande desiderato nos lugares por que passou.

O homem

Só bastante tarde, na minha vida, vim a conhecer pessoalmente Freitas do Amaral. Foi em 1999, em Nova Iorque, onde ambos tínhamos ido em trabalho. Depois de um jantar, pelas ruas, confessei-lhe que, nas presidenciais de 1986, eu chegara a temer que, a coberto da sua candidatura presidencial, “viesse por aí o fascismo”. Freitas do Amaral riu-se e disse esperar que eu tivesse ficado, entretanto, definitivamente convencido de que ele não era “um fascista”. Não era, disse-lhe que achava que ele era uma espécie de conservador inglês, nos tempos em que a maturidade já me permitia ter isso como um elogio. Nos dias de hoje, já nem sei...

Seria de novo em Nova Iorque, para onde eu entretanto fora viver, dois anos depois, que nos reencontraríamos. Alguns amigos políticos de Diogo Freitas do Amaral estavam furiosos com ele, por ter editado uma peça de teatro que foi lida como uma “deslealdade” face à memória de Marcelo Caetano. No almoço que lhe ofereci, revelou-me alguma mágoa com essas atitudes, que via como injustas.

Cruzámo-nos depois, uma ou outra vez, em Lisboa. Depois, em Brasília, em 2005, com ele já de novo como ministro, apreciei o modo assertivo como expunha a política externa do novo governo que integrava, numa atitude que mostrava, simultaneamente, um grande à-vontade no exercício do cargo mas também uma perspetiva muito nacional da função, diria mesmo que um pouco dissonante com o modelo “formatado” de diplomacia que prevalecia numa União Europeia, onde a máquina obedecia a uma linguagem cada vez mais comum. Fiquei curioso em ver o impacto futuro do estilo, mas Freitas do Amaral acabaria por ser obrigado, por razões de saúde, a abandonar o executivo.

Faz hoje precisamente uma semana, voltámos a coincidir, na mesma sala do serviço de um hospital, onde eu estava por uma coisa simples e onde ele tentava recuperar de um último esforço para superar a nova doença que agora lhe poria um ponto final na vida. Já não falámos.

(Texto escrito a convite da SAPO no respetivo site)

A solidão política


A “Sapo” pediu-me um texto sobre Diogo Feitas do Amaral, por ocasião da sua morte. Pode lê-lo aqui.

Portugal


Há pouco mais de uma semana, num debate com Rui Ramos do Círculo Eça de Queirós, procurei sublinhar o caráter atrativo do nosso país para o investimento estrangeiro. 

Aqui está um retrato jornalístico dessa realidade, que só não vê quem não quer.

A brigada do Júlio de Matos ataca de novo

Pronto! Lá começaram os maluquinhos do costume a criar uma teoria da conspiração sobre a coincidência temporal nos acidentes aéreos de hoje....