Naquele primeiro dia de abril de 2005, na embaixada de Portugal em Brasília, anunciaram-me uma chamada telefónica de Lisboa, do jornalista Jorge Rodrigues, que dirigia e estava em direto no programa cultural "Ritornello", da Antena 2, nesse dia transmitido simultaneamente pela Rádio Cultura brasileira, uma iniciativa com a amável colaboração do então secretário da Cultura, Pedro Bório.
A questão que me era colocada, enquanto embaixador, tinha alguma delicadeza política.
Segundo Jorge Rodrigues me informava, a editora francesa Gallimard havia decidido publicar, na sua prestigiada coleção "La Pléiade", as obras completas dessa imensa figura que foi Augusto Maria de Saa.
A questão que me era colocada era saber se havia algum conflito, de natureza político-cultural, entre Portugal e o Brasil, que pudesse justificar que, até àquela data, o importante espólio de escrita de Saa não tivesse merecido, em qualquer dos dois países, um tratamento editorial à altura da magnitude da contribuição daquele escritor para a cultura luso-brasileira.
A minha resposta foi perentória: que eu soubesse, não havia a menor conflitualidade, mas também eu desconhecia a estranha razão pela qual uma recolha, exaustiva e organizada, da extensa obra de Saa não havia sido feita, até agora, num dos dois países de língua portuguesa a que ele havia estado fortemente ligado.
Como era comummente sabido, Saa nascera em Portugal em 1854, filho de uma aia de dona Carlota Joaquina e de um padre miguelista. Anos mais tarde, partira para o Brasil em busca de uma melhor vida, mas, curiosamente, viria a perdê-la tragicamente, num regresso a Lisboa, em 1908, no quadro de uma visita fortuita ao seu país natal.
É que Augusto Maria de Saa, para quem não saiba, embora a História teime em iludi-lo, acabou por ser dos cadáveres que ficou no chão da rua do Arsenal, no cenário do regicídio: na realidade, havia sido a rainha dona Amélia, ao afastar com o ramo de flores, que levava na mão, o braço armado do Buiça ou do Costa, quem, inadvertidamente, acabou por apontar a arma fatal à cabeça de Saa, que ali ficou.
Os republicanos tentaram explorar o acontecimento espalhando, imagine-se!, que “a rainha matou o Saa”, tentando transformar este num inesperado herói da sua causa. Ora Augusto Maria de Saa era um monárquico “de carteirinha” (como se diz no Brasil), como toda a investigação biográfica a seu respeito deixou patente. A interessante obra a seu respeito de José Malhão Fernandes “Augusto Maria Saa, a reencarnação de Crabtree e outros ensaios um pouco a propósito” (Edições Eróticas, Santa Maria, Rio Grande do Sul, 1918) confirma isso em pleno.
Toda a magna obra de Saa fora escrita em terras brasileiras e era aí, com naturalidade, que o essencial dos estudos saaianos se desenvolviam. A razão pela qual a "Aguilar", no Brasil, não tinha editado Saa em papel bíblia mantinha-se para mim como uma questão nebulosa. Do mesmo modo, era incapaz de perceber o motivo que levara a nossa "Lello" a nunca empreender, em Portugal, tarefa semelhante, a exemplo do que fizera para Eça, Pessoa ou Saramago. Acaso Saa lhes ficava atrás?
Agora, em prestigiada edição francesa, a obra de Saa passaria a estar disponível ao mundo. E que obra!
Lembrámos, na conversa, os "Prolegómenos à teoria dinâmica do conflito", um trabalho de ciências políticas e antropológicas, publicado por Saa ao tempo em que dirigia a Gazeta Democrática de Paranoá. Hoje, que se saiba, há apenas uma edição coreana dessa obra.
Igualmente, seria acessível ao grande público francófono o "Olhai a Europa!", opúsculo-manifesto onde, pela primeira vez e premonitoriamente, se refere uma possível "carta constitucional" europeia.
Também passava a ser consultável o opúsculo “As volteaduras da musicalidade recorrente", texto de teoria musical, tema central de um seminário interdiscipinar realizado pelo professor holandês Schopp Innkop, em Hobbart, na Tasmânia, organizado pelos "Círculos Musicais Heineken", com apoio da prestigiada "Fundação Foster". O pianista Adriano Jordão, profundo conhecedor da obra, teceu sobre ela comentários muito profundos.
Finalmente, "O equilíbrio da ruptura no voltâmetro de potência suspeitada", obra no domínio da física que tinha uma edição em servo-croata, infelizmente esgotada, passaria finalmente a ser de fácil acesso.
Nessa conversa com Jorge Rodrigues falou-se também dos trabalhos sobre a vida e obra de Saa, em curso no Departamento de Linguística do polo experimental de Taguatinga, dependente da Universidade Católica de Abadiânia Leste (UCAL).
Além disso, foi referida a conhecida dedicação do Professor Romário Ibirapuera, da Universidade Espírita de Rondónia, figura incontornável da investigação saaiana, em especial depois da iniciativa da reedição desse marco linguístico, há muito esgotado e há muito objecto de especulação nos alfarrabistas, que era a "Recolha crítica de interjeições tupi", que Saa publicou, em edição do autor, em 1887, com uma tocante dedicatória à sua irmã Efigénia, que em Lisboa padecia de sífilis.
Esse memorável programa da RDP 2 e da Rádio Cultura brasileira contou com outros intervenientes, durante mais de uma hora de recolha de depoimentos.
Um professor universitário brasileiro leu dois inspirados poemas do tempo tropical de Augusto Maria de Saa.
Uma sobrinha bisneta do autor residente na Rondónia deu conta de como a sua memória continua a ser acarinhada na família índia que criou na Amazónia.
Também revelações sobre correspondência entre Saa e Eça de Queiroz, existente nos arquivos de São Petersburgo, foram feitas por Carlos Fino, que as respigara ne investigações em tempos soviéticos.
Figuras conhecidas do meio académico brasileiro sublinharam a explosão crescente de estudos saaianos que então atravessava o Brasil, quiçá (melhor diria, "quissáa"...) premonitória da abertura próxima de um cátedra.
O programa e algumas das revelações nele feitas não deixaram de ter consequências.
Um conhecido especialista de Eça de Queiroz telefonou de Marrocos a Jorge Rodrigues, alertado para a nova contribuição que seria necessário acolher em futuras recolhas epistolares
Um outro autor, com obra sobre o Regicídio de 1908, em cujo cenário de tragédia a morte de Saa tem lugar, inquiriu de imediato sobre o tema, consciente da lacuna que, com os factos relatados no programa, se abria na temática.
Eu próprio fui contactado, pouco tempo depois, por uma muito conhecida jornalista e apresentadora televisiva portuguesa, que pretendia fazer um trabalho sobre essa figura luso-brasileira que, lamentavelmente, "conhecia muito pouco".
Meses mais tarde, ao recordar Augusto Maria de Saa, à mesa da embaixada em Brasília, num jantar oferecido a um intelectual português de visita, recordo bem uma convidada dizer, com ar bem sério e compenetrado: "já li coisas dele, mas é uma tristeza a sua obra ser tão pouco divulgada". E claro que tinha toda a razão!
Nesse repasto tomava assento aquele que, tempos mais tarde, viria a ser o nosso embaixador na Etiópia. E quero deixar-lhe aqui um preito de gratidão pelo facto dele ter tentado, embora sem visível sucesso, mobilizar os círculos intelectuais de Adis Abeba para a necessidade de se fazer uma edição bilingue, etíope-português, do conhecido estudo de Saa sobre "As origens alentejanas do Preste João". A diplomacia não é só economia!
Foi um belo programa radiofónico! Está gravado num CD e deu origem ao importante blogue “Memória de Saa” (www.memoria-de-saa.blogspot.pt). Quem diria que já passaram 13 anos!
Foi no 1° de abril de 2005. À distância, até parece tudo mentira...