quinta-feira, março 15, 2018

Ai Brasil!


As estranhas condições em que teve lugar a morte da vereadora do Rio de Janeiro, atentas as tarefas de contestação da presença militar na cidade a que se dedicava, suscitam sérias interrogações.

O Brasil é uma das maiores democracias do mundo. A imprensa é absolutamente livre, não há presos políticos, os órgãos constitucionais funcionam. Há quem conteste o modo de funcionamento do sistema político e judicial? Claro que sim, mas quem o faz fá-lo sempre com total liberdade. É isso uma democracia.

Por isso, porque a democracia brasileira tem de estar acima de toda a suspeita, e antes que renasçam por ali velhos fantasmas, é muito importante para o bom nome do Brasil que este assunto seja esclarecido com a maior brevidade.

Autónoma


Nos últimos dias tem-se falado por aí da Universidade Autónoma de Lisboa. Prolonguemos essa fala.

Durante quase dez meses, em 2017/2018, o Ministério dos Negócios Estrangeiros organizou um concurso para admissão de 30 novos diplomatas. Inscreveram-se inicialmente para esse concurso 1800 candidatos.

A Universidade Autónoma de Lisboa organizou um curso intensivo de preparação para esse concurso, a exemplo do que outras universidades também fizeram. Coube-me dirigi-lo, com a colaboração de um grupo selecionado de professores, que cobriam todo o espetro de matérias das diversas provas: de Português a Inglês e Francês, de Economia Política a Direito Internacional, de assuntos europeus a temas de segurança, etc. 

Cerca de 20 candidatos escolheram o curso ministrado pela Autónoma. E, desse número, foram admitidos três. Isto é: 10% dos candidatos admitidos pelo MNE foram preparados por nós. Como já no anterior concurso, há dois anos, havíamos tido o gosto de ajudar aquele que viria a ser então o primeiro classificado.

É muito bom ouvir boas notícias sobre a minha Universidade. Onde ainda hoje irei dar aulas de Diplomacia e Negociação Internacional, na excelente licenciatura de Relações Internacionais.

quarta-feira, março 14, 2018

Dietas

Aquele núncio apostólico, o embaixador da Santa Sé num determinado país, apesar de um comportamento irrepreensível, mantinha uma imagem exterior de “bon vivant”, que não se importava de deixar explorar. 

Um dia, entrou numa receção acompanhado por duas belas mulheres, uma de cada lado. Os amigos não tardaram em mandar-lhe umas “bocas”, conhecedores que eram do seu poder de encaixe. 

E ele revelou-se, com esta resposta: “O facto de ter de fazer dieta não impede ninguém, num restaurante, de poder ler e apreciar o menu”...

terça-feira, março 13, 2018

O papel do DN

Por razões que não vêm à liça, não vou aqui falar, como me apetecia, do papel que o “Diário de Notícias” representa, nos dias de hoje, no panorama mediático português.

Mas, como habitual ”consumidor” (pode dizer-se isto?) do jornal, acho que tenho o direito a perguntar: o papel em que o DN anda a ser impresso, nos dias que correm, é o quê? 

A gente pega naquilo, naquelas folhas já a caminhar para o leve cinza, com a consistência dos apertos de mão sebosos e sem garra, e pergunta-se: não há um papel decente onde imprimir o “diário da Moagem” (como lhe chamava Artur Portela Filho)? Não estou a pedir folhas de gramagem quase “almaço”, daquelas em que o fascistóide “A Rua” era impresso nos anos ”da brasa”, mas um papel consistente, que adira ao tato, em que o mudar a folha não nos dê a ideia de estar a enrolar um charro.

Eu sei que o “Le Monde” hebdomadário também nos chega naquele género desvirilizado de folhas, uma versão mixuruca e subdesenvolvida de papel bíblia, mas isso é para poder ser enviado pelo correio, um sistema de distribuição que, como alguns se recordarão, foi também utilizado em Portugal - quando por cá havia Correios! E ninguém hoje confia nos “nossos” Correios, nem para cartões de boas-festas, quanto mais para enviar o DN do dia! 

E o DN não é o “Le Monde”! Mudem-me esse papel, antes que todos nos tenhamos que perguntar qual é, afinal, o papel do DN na imprensa que aí anda.

A noite arménia



“Pede uma mesa no andar de cima, junto à janela. Já não está tempo para se jantar na esplanada”, foi o conselho que dei, pelo telefone, de Lisboa. 

Aquele meu colega chegaria a Yerevan, na Arménia, ido de uma bela cidade europeia, um dia antes de mim. Eu iria daqui. Foi há cinco anos. Ao tempo, eu era diretor-executivo do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa. Ambos intervínhamos numa determinada Conferência internacional. Combinámos jantar juntos no dia da minha chegada. Eu tinha-lhe recomendado um restaurante local.

“Como é que se pode saber, de fonte segura, onde jantar decentemente, lá em Yerevan? Se perguntarmos no hotel dizem-nos uma espelunca qualquer", tinha-se ele questionado.

“Onde se come quase sempre bem é no Ai Leoni. E não fica muito longe do nosso hotel”, respondi.

“Mas tu conheces Yerevan?”, surpreendeu-se ele.

“Conheço lá eu outra coisa! Marca uma mesa no Ai Leoni e vais ver que não te arrependes. O Bruno cozinha lindamente!"

O meu colega tomou nota e, com lógica, levou a minha sabedoria da restauração arménia à conta da minha consabida "mania" dos restaurantes e também dos tempos que eu tinha passado na OSCE - essa organização de segurança sedeada em Viena, cuja representação portuguesa eu tinha chefiado por alguns anos, e que tinha as confusões do Cáucaso, em particular a velha crise entre a Arménia e o Azerbaijão, por virtude do território do Nagorno-Karabakh, na sua agenda prioritária de interesses.

Dias depois, após umas viagens atribuladas, cada um ido do seu lado, lá nos encontrámos no hotel de Yerevan. E, perto do jantar, partimos, com um amigo francês comum, para o “Ai Leoni”, onde a nossa mesa estava devidamente reservada.

Não era muito longe, aí uns dez minutos a pé. Fui indicando o trajeto. “Conheces bem isto”, comentavam, à medida que eu apontava a direção do restaurante, pelas ruas da capital arménia. Eu servia de cicerone, até para as estátuas que íamos cruzando.

Entrámos finalmente no restaurante, a nossa mesa lá estava, chegaram os menus. O nosso amigo comum, francês, pediu conselho: “O que é que recomendas?” Desfiz então o embuste: “Eu? Sei lá! É a primeira vez que venho à Arménia!” 

E, entre gargalhadas, expliquei. Tinha descoberto o restaurante num guia que comprara em Londres. Depois, na internet, vi as fotografias do lugar, bem como o nome do “chef”. Com o mapa da cidade, identifiquei (e decorei) facilmente o trajeto, "apimentando" a história com uns monumentos que também vinham assinalados no guia. 

Contei-lhes então a história de um jornalista americano que tinha escrito um guia sobre um país da América Central, sem nunca lá ter posto os pés. Nos dias de hoje, tudo é possível!

segunda-feira, março 12, 2018


Gastronomia & escritas



Foi em 2010 que a revista “Sábado” me desafiou, através de Edgardo Pacheco, para escrevinhar um conjunto de textos de análise da oferta gastronómica em alguns restaurantes portugueses. Fazia-o sob pseudónimo, tal como o haviam feito, cada um durante um semestre, outros companheiros daquela “aventura”: Daniel Proença de Carvalho, Paula Teixeira da Cruz, Miguel Esteves Cardoso e Ruben de Carvalho. A tarefa ficou concluída no ano seguinte, precisamente como ficara acordado desde o primeiro dia.

Anos mais tarde, regressado de vez a Portugal, a revista “Epicur”, na sua nova versão, publicada quatro vezes por ano, desafiou-me para uma aventura idêntica, através de Mário Rui de Castro.

Também a revista “Evasões”, dirigida por Catarina Carvalho, publicada semanalmente com o “Diário de Notícias” e o “Jornal de Notícias”, me fez idêntico convite.

Nos três casos que referi, as crónicas eram pagas, bem como o custeio de uma refeição para duas pessoas. 

Nenhuma das publicações - e isto é pura verdade - me deu alguma vez a menor dica sobre restaurantes que desejassem que eu escrutinasse. Todas as escolhas foram sempre minhas, com completa liberdade.

Como referi, o meu trabalho para a “Sábado” acabou em 2011. Chegou agora a hora de pôr um ponto final nas outras duas colaborações que mantinha. 

Embora não fosse uma atividade muito intensa, escrever sobre 16 restaurantes diferentes em cada ano, procurando ser rigoroso e justo nas apreciações, constituía já uma tarefa algo pesada. Tivémos assim dois “divórcios amigáveis”, porque com bons amigos fiquei sempre em todas as revistas com as quais colaborei.

Aqui entre nós, devo dizer que sinto uma sensação de recuperação de alguma “liberdade”. Já não vou precisar de fotografar com o iPhone os menus dos restaurantes, pedir à pessoa que partilha a refeição comigo para pedir coisas diferentes das minhas, estar atento e anotar os pormenores do ambiente e do serviço, escrevinhar umas notas para não me esquecer do que pensei de certos pratos. Isto é, vou comer com total à vontade, sem a obrigação de escrita no “day after”. (E também, é verdade, sem me pagarem as refeições e os escritos - mas a liberdade tem o seu preço!)

Significa isto que vou deixar de mandar “dicas” sobre restaurantes? Longe disso! O meu blogue “Ponto Come”, esse lugar errático onde, há bem mais de uma década, tenho deixado notas sobre esta coisa importante que é saber onde se pode comer com satisfação, por aí continuará. Não terá a regularidade do “Duas ou Três Coisas”, mas posso assegurar que continuará a ser “alimentado” - destino natural de um blogue de gastronomia..

Elogio do protocolo


Faz parte de uma certa forma de olhar a vida ter, para com as regras do protocolo, uma atitude de sobranceria e até de algum escárnio. Para essas pessoas, o protocolo não é mais do que um conjunto de picuinhices a que alguns snobes dão importância, mas que, no fundo, são perfeitamente dispensáveis. Quem assim pensa está fortemente errado e, confesso, já deixei de perder com eles o meu tempo e o meu "latim".

Com a profissão que tive por décadas, aprendi que essa "liturgia" e esses rituais de entendimento constituem uma espécie de "código da estrada social" - um conjunto de regras, marcadas pela educação e pelo bom-senso, que facilitam a vida em sociedade e, muito em especial, no seio das organizações. No terreno oficial, uma evidência impõe-se: muitas vezes, o protocolo só se "nota" quando falha... Na vida privada, nomeadamente da empresas, a inobservância de um certo normativo básico pode criar constrangimentos, afetar a imagem dos interlocutores e gerar um ambiente desfavorável para um entendimento.

O protocolo pode variar de país para país, quer se trate do protocolo oficial do Estado, quer das regras, mais ou menos consuetudinárias, que regulam as relações sociais. Com o tempo, muitas dessas regras evoluem - e é importante estar atento a essa mesma evolução, caso contrário as pessoas e as instituições ficam presas a "coreografias" datadas e obsoletas. Mas aprendi que há um conjunto quase permanente e generalizado de modos de comportamento que, se forem observadas com um mínimo de atenção, nos servem um pouco por todo o mundo e são, em geral, bastantes resistentes às modas e ao tempo. No fundo, trata-se de regras de respeito pelos outros, de educação e de bom senso, que acabam por facilitar a vida de todos.

Isabel Amaral é, ao que julgo, a figura portuguesa que mais se tem dedicado a este assunto, fora do mundo oficial do Protocolo do Estado. Com uma diversificada experiência, que também passou já por áreas oficiais, coletou em livro, felizmente agora reeditado, essas suas notas e reflexões, feitas de uma decantação inteligente dessa multiplicidade de contactos e vivências.

"Imagem e Sucesso - guia de protocolo para pessoas e empresas" é um trabalho que eu recomendo francamente a quem tenha interesse ou responsabilidades nesta área. É um livro bem escrito, de leitura fácil, muito claro e com uma componente pedagógica forte.

Como sabe quem por aqui me lê, não é frequente eu recomendar livros, pelo que, quando o faço, é porque tenho para isso boas razões. Como é este caso.

domingo, março 11, 2018

Lembrando o Piorrilha


Marx faz 200 anos no dia 5 de maio. À sua sombra construiram-se belas utopias, tendo-o como pretexto fizeram-se algumas barbaridades. Marx acertou e ainda acerta em muitas coisas, enganou-se noutras. Nada afeta o facto de ter sido, como hoje um consenso de quem se dedica à história das ideias reconhece, uma das maiores figuras de sempre do pensamento económico. 

Como é que cheguei a Marx? Tarde, só aos 20 anos, de forma quase caricatural. Dele tenho (tive, porque já dei muito à biblioteca que acolhe os meus livros) tudo o que escreveu. De que só li parte, claro. Desisti a meio de “O Capital” (Fidel fez o mesmo) e entretive-me com as suas coisas bem mais simples. Fiz parte de uma geração que acompanhou os grande debates, como entre o “Marx jovem” e o outro, atulhei-me de bibliografia marxista e marxiana. Tive sempre uma imensa curiosidade pela personagem. Estive na casa onde nasceu, em Trier, visitei quase todos os locais onde viveu, no pub londrino que frequentava. E, claro, estive, bem cedo, no cemitério de Highgate, onde repousa, depois de ter colocado o mundo em reboliço. Tenho as suas biografias, conheço as histórias da família, sou um fã desse seu excelente “doctor Watson”, que se chamou Friedrich Engels.

Um dia, nos anos 70, a minha mãe veio de Vila Real conhecer uma casa que eu alugara, em Santo António dos Cavaleiros. Numa parede, colada num platex, estava uma imensa fotografia de Marx, que tinha comprado numa loja de Nova Iorque, em finais de 1972. “Então tens por aqui um retrato do Piorrilha?” Não percebi. Ela sabia que o retrato era de Karl Marx e sabia por que ali estava. Quem era o Piorrilha? Fiquei a saber, nesse instante: era um homem, com um imenso cabelo e barba, que, na infância dela, nos anos 20 do século passado, surgia pelas feiras, nas Pedras Salgadas, e que metia medo às pessoas. Pelos vistos eram parecidos. Ambos metiam medo. Marx ainda mete.

sábado, março 10, 2018

Ambições


Assunção Cristas, a quem a catastrófica (falta de) estratégia de Passos Coelho nas eleições autárquicas deu um conjuntural ”vento” na Câmara de Lisboa, diz que quer ser primeira-ministra e que o seu verdadeiro adversário é hoje António Costa. Está no seu pleno direito.

Em política, não existe ridículo. Para quem não saiba, o CDS continua, nos dias de hoje, nas sondagens para umas futuras eleições legislativas, abaixo do Bloco de Esquerda e do PCP, a anos-luz do PSD e, claro, sem conseguir sequer ver à distância o PS.

Se não vive em Lisboa, onde essas coisas são mais difíceis (mas não impossíveis) de medir, convido o leitor a olhar em volta e a inquirir, na sua terra, por onde anda e o que representa o CDS. É que esse partido, em termos práticos, significa muito pouco, a nível nacional. Basta atentar no facto de, nas últimas eleições autárquicas, o CDS, em 308 câmaras municipais existentes, ter obtido apenas 6 presidências, tendo, a nível nacional perdido votos e mandatos, face aos resultados de 2013 - um dado habilmente escondido.

O CDS não deixa, por essa razão, de ser historicamente um partido importante da nossa democracia. Há 44 anos, deu valiosa guardida institucional à direita tresmalhada, enquadrou democraticamente os retornados, foi sendo composto por quadros bem preparados, tem hoje alguns nomes de muita qualidade, foi cooptado (pelo PSD) para o governo, mas é ... o que é! 

Assunção Cristas quer ser primeira-ministra? Também o Sport Club de Vila Real ainda um dia há-de vencer as Champions!

sexta-feira, março 09, 2018

O título e o texto


O passado, hoje


Há dias, no parlamento, o CDS não se associou a um voto de pesar pela morte de Varela Gomes, um militar que combateu, de armas na mão, a ditadura salazarista. Imagino que o pretexto tenham sido as atitudes dessa figura, no período mais conturbado do pós 25 de abril. 

Alguma direita portuguesa passa o tempo a queixar-se de que a esquerda a acusa de colagem ao regime anterior mas, como se vê, perde ensejos preciosos para afastar esse estigma. Isso acontece tanto na ação política como na produção intelectual. Alguma nova historiografia edulcora os crimes do regime salazarista, carregando os tons, em contraponto ácido, nos malefícios da República que o antecedeu. O que esses historiadores dizem de Afonso Costa e correligionários não diverge muito da versão diabolizada que nos foi impingida pelos “historiadores” da ditadura. Depois, não se queixem! 

A eleição de Marcelo Rebelo de Sousa deixou alguma esperança de que, com o tempo, ele pudesse ajudar a direita portuguesa a sair desse seu complexado “guetto”. Nada era expectável de Cavaco Silva, por razões que escuso de desenvolver. Mas seria muito interessante que o segundo presidente civil oriundo da direita política usasse da sua autoridade para ajudar esse mesmo setor a distanciar-se do regime que vigorou até 1974.

Marcelo Rebelo de Sousa nasceu no seio de uma família do Estado Novo. O seu pai, governante com Salazar e Caetano, esteve, contudo, longe do perfil radical de algumas figuras desse tempo. Foi mesmo um governador colonial dotado de abertura de espírito e dimensão social na ação. O jovem Marcelo, ainda em ditadura, revelou-se moderadamente crítico do fechamento do regime, enquanto jornalista do “Expresso”. Mais de quatro décadas depois, o presidente Marcelo já teve gestos muito louváveis na denúncia de barbaridades coloniais e da escravatura.

Na morte de Varela Gomes, o presidente da República qualificou contudo o regime ditatorial com uma bizarra “trouvaille” semântica - uma “ditadura constitucionalizada”. O professor Marcelo prevaleceu sobre o chefe de Estado. Ora a ditadura foi “apenas” uma ditadura: com censura, polícia política, perseguições, prisões, torturas e mortes. 

Alguns dirão, em abono do presidente, que a personalidade de Varela Gomes não ajudava a uma generosidade no gesto. O militar foi um revoltoso no 25 de novembro e era defensor de um modelo de sociedade política muito diferente daquela em que hoje vivemos.

A dimensão das figuras de Estado mede-se precisamente pelo modo com sabem elevar-se acima das polémicas do passado. Esta foi, manifestamente, uma oportunidade perdida. Outras haverá. Esperemos o que o presidente dirá um dia ao país numa visita ao Aljube, a Peniche ou ao Tarrafal. 

quinta-feira, março 08, 2018

RTP


A RTP fez ontem 61 anos.

Desde há algum tempo, passei a integrar o Conselho Geral Independente (CGI) da empresa. Sou, como todos os outros cinco membros, inamovível até ao final do meu mandato de seis anos, salvo em circunstâncias muito excecionais. É o que a lei prevê, como forma de preservar a independência do órgão, procurando isentá-lo dos ciclos políticos.

Ao longo dos últimos meses, tenho acompanhado, com os meus colegas, a vida interna da RTP, tendo falado com todos os responsáveis da rádio e da televisão públicas, tomando conhecimento dos respetivos problemas e anseios. Foram algumas dezenas de horas de estudo de dossiês e de análise da situação interna da empresa.

(Quando se fala de RTP, há a tendência de se pensar apenas na televisão. Ora a RTP, que hoje já não é "Radiotelevisão portuguesa" mas sim "Rádio e Televisão de Portugal", abrange também importante realidade que vive sob a sigla RDP).

Executo esta tarefa “pro bono”, isto é, sem receber a menor compensação financeira. Aceitei o cargo por um mero dever cívico, pela importância que pessoalmente atribuo à necessidade de um serviço público de rádio e de televisão de qualidade e à possibilidade de, à medida dos meus conhecimentos e experiência profissional e de vida, poder para isso dar o meu contributo.

As funções do CGI são “simples”: nomear e exonerar as administrações da RTP e definir, através da fixação de “linhas estratégicas”, o quadro de referência do trabalho da administração para o seu triénio de mandato, velando, em permanência, pela sua execução e verificando, muito em particular, o modo como a televisão e a rádio públicas executam as obrigações de serviço público que decorrem do respetivo contrato de concessão.

Contrariamente ao que alguns possam pensar, não cabe ao CGI nomear, para além da administração, quaisquer outras pessoas no quadro diretor da empresa, nem, naturalmente, intervir na orientação dos programas ou da informação dos canais. 

O dia-a-dia da empresa é-nos relevante no seu todo - seja nos conteúdos, seja nos recursos humanos e financeiros, seja no equipamento - mas o CGI não está vocacionado para o “micro-management” da empresa, que cabe à sua administração, a qual responde perante ele. 

Ao final destes meses, em que passei a estar bastante mais atento às várias dimensões da RTP e da RDP, devo dizer que cheguei a uma conclusão clara: é notável o trabalho que vem sendo realizado pelos profissionais da empresa, em especial se atentarmos os meios de que dispõem e as muitas limitações que hoje afetam a funcionalidade da empresa. Que se impõe que sejam corrigidas, a bem da qualidade do seu "produto".

A minha experiência no CGI tem sido muito interessante. Seis pessoas com “background” muito diverso, oriundas de vários e diversificados setores da sociedade portuguesa, que respondem apenas perante o currículo que levou à sua seleção, sem a menor agenda para além do seu interesse em servirem o interesse público, decidem com uma total liberdade e independência, no quadro de um modelo de governação pouco comum.

As decisões do CGI, porque têm implicações fortes no espaço público, não são necessariamente consensuais, isto é, correm sempre o risco de serem lidas de modo diferenciado pelos múltiplos agentes que atuam nesse mesmo espaço público. É da lei da vida e assim tem acontecido - quer por parte de quantos se preocupam legitimamente com o futuro da RTP, quer no tocante aos detratores da empresa, mais ou menos vinculados a interesses que combatem o serviço público. 

Alguns desses agentes colocam também em causa a bondade do modelo de governação, em vigor desde há três anos, isto é, a legitimidade da própria existência do CGI. Cada um tem o direito de pensar o que entender. Essa é, contudo, uma questão que apenas compete a quem tem a responsabilidade de “desenhar” o quadro normativo e regulatório da RTP, isto é, os poderes públicos democráticos, em especial a Assembleia da República. O CGI limita-se a atuar no quadro legislativo que lhe foi criado e que o regula.

A RTP fez 61 anos. De Camilo de Mendonça, o seu primeiro presidente em 1957, a Gonçalo Reis, que atualmente preside ao seu Conselho de Administração, a RTP (e também a RDP e a sua antecessora Emissora Nacional) passou já por tempos muito diversos, alguns bem convulsos, grande parte deles extremados pela polarização político-partidária. Em tempos revolucionários, mas não só.

Tenho a desvantagem de olhar hoje a realidade da empresa sem grande distância, mas atrever-me-ia a dizer, à luz do que tenho ouvido, que raramente nela se viveu um tempo, como foram os últimos três anos, em que a empresa pôde funcionar com tão grande autonomia e a ausência de indevidas pressões externas. Se há um objetivo que julgo legítimo ter para o futuro esse será o de garantir que a RTP se mantém nessa mesma linha.

quarta-feira, março 07, 2018

Regresso ao passado


Já ali não entrava desde 1955. Como é que eu sei a data? É simples. Foi a primeira vez que vim a Lisboa, no “Foguete”, e fui, com o meu pai, ver um Portugal-Suécia. no Jamor, que o Google me diz que foi em 1955.

(O resultado não foi famoso: perdemos 6-2, com dois golos de José Águas a compensar os 6-0 que Costa Pereira “encaixou” logo na primeira parte. Ah! E jogámos com Matateu, para quem sabe quem foi. É claro que eu não recordo rigorosamente nada do jogo, a não ser, vagamente, o lugar do estádio em que estive).

Voltando à fotografia. Mostra a janela de canto de uma sala de um restaurante da moda, no Camões, aqui em Lisboa, onde hoje almocei. 

Como disse, a última vez que ali tinha entrado foi em 1955. Para uma consulta médica. Eu estava com icterícia. Fiquei “de molho” uns dez dias, em casa de uns primos, na Rua da Paz, entre bifes e um “Mecano” que me enchia os dias. Não faço ideia se a consulta foi naquele andar, se o ”Litrison” terá sido receitado (para o fígado era sempre “Litrison”, não era?) naquela mesma sala.

Mas por que diabo ele vem agora com esta não-história?, perguntará o leitor enfadado deste post. Porque isto são redes sociais, lugar geométrico de tudo aquilo que nos vem à mona e nos dá na veneta contar. E vão com muita sorte em eu ainda ter uma fotografia do dia cinzento. É que podia empanturrá-los com florzinhas ou pensamentos profundos de filósofos da auto-ajuda. Por isso, não se queixem, está bem?

(Nota para curiosos: uma das varandas que a fotografia mostra pertence àquele que é, porventura, o mais “secreto” clube privado de Lisboa. Estive lá há dias, como convidado, mas não posso dizer o nome, desculpem lá!)

O triângulo patético

Será que algum dia os portugueses terão possibilidade de se libertar do triângulo mediático obsessivo a que os noticiários televisivos reduzem o país: política, futebol e “o que corre mal”? 

Será que, afinal, não se passa mais nada neste nosso canto da Europa? 

Regresso em força do “whataboutism”

Já por aqui se falou do “whataboutism”, um conceito anglo-saxónico criado na Guerra Fria mas que, com o tempo, passou a merecer uma utilização bem mais alargada.

Em que consiste? É muito simples: alguém acusa alguém da prática de um determinado ato e este, ou uma pessoa por ele, vai logo buscar, como resposta, outros casos tidos por comparáveis (“and what about...?). A questão já nem é desmentir em absoluto o facto praticado. Tenta-se “absolvê-lo” com a invocação de outros casos de natureza equiparável, procurando com eles gerar um ambiente atenuante para o primeiro caso.

Em português, é quando, perante uma determinada acusação, surge o “Ai é? E então no caso do...?”. Mais linearmente: “Sou vigarista por ter feito isso? Mas tu não disseste nada no caso do...” É sempre uma resposta pobre e basicamente retaliatória, logo desonesta, como argumento. 

Perante uma acusação, a medida da gravidade de um ato deve ser encontrada nesse ato e não numa espécie de “jurisprudência” de delitos. 

Por estes dias, nesse mundo sinistro do pessoal do futebol, o “whataboutism” está a ter horas gloriosas.

terça-feira, março 06, 2018

A asa do Letra



Entre nós, o aeromodelismo foi, por muitos anos, uma atividade com bastantes cultores. Mas não faço ideia como é que as coisas de passam nos dias de hoje. Em Vila Real, recordo-me de que os “furiosos” da construção desses pequenos aviões de madeira, forrados a papel muito fino, trabalhavam numa sala à esquerda de quem entrava no edifício da Mocidade Portuguesa, onde é hoje o Arquivo Distrital, ao fundo da rampa do Calvário. 

O cheiro das longarinas de madeira de balsa, somado com o das colas, ainda vive arquivado na minha memória odorífera. Esse era um trabalho que implicava grande persistência e atenção. Recordo-me de os ver serrar a madeira com instrumentos muito delicados, com precisão milimétrica, tudo depois afinado com lixa e limas muito bem ordenadas, com as delicadas peças a serem depois preservadas com muito cuidado, para a montagem final, feita de encaixes rigorosos, com um total equilíbrio do modelo.

Por um tempo, até porque vivia nas imediações, também andei por lá, fiz uns ensaios, mas, rapidamente, desisti: a precisão, a paciência, o tempo, o cuidado necessário a este tipo de trabalho não “rimava” com a minha proverbial e eterna inconstância. Tinha “mais que fazer”, nessas horas que teria de alocar àquela tarefa, para fazer qualquer coisa de jeito. Mas, devo confessar, senti sempre uma grande admiração por quantos se dedicavam ao aeromodelismo, com uma pena eterna por não ser um deles. (Há duas outras atividades que lamento nunca ter tentado: radioamadorismo e encadernação - fica feita a confissão).

Um dia do final dos anos sessenta, embarquei na “carreira” do Cabanelas, em direção ao Porto, cuja universidade frequentava. Já sentado, vi entrar um colega de liceu, o Letra, com um avantajado avião na mão, fruto do seu trabalho de aeromodelismo, lá pela Mocidade. Ia, com toda a certeza, a caminho de uma competição. Os olhos de todos os passageiros convergiam na “aeronave”, de cores berrantes, que, com todo o cuidado, o Letra fez “voar” com a mão sobre os bancos, até chegar ao seu lugar. Os autocarros não eram, à época, muito confortáveis nem espaçosos, pelo que a tarefa do Letra, para garantir que o avião chegava incólume ao Porto, não se presumia fácil nem cómoda.

À época, as minhas relações pessoais com o Letra não eram as melhores. Num dia de neve, no pátio do liceu, ele tinha-me atirado uma bola de neve que me deixaria um olho negro, levando, da minha parte, a uma reação violenta, que acabou numa troca de socos. O episódio já fora há três ou quatro anos, mas tínhamos deixado de falar. Mas, nem por isso, aquela aventura “auronáutica” do Letra deixava de me ser simpática. Era, de facto, um belo aeromodelo!

Mais de três horas passaram, com as curvas do Marão de permeio, seguidas da paragem tradicional no Arquinho, em Amarante, para “meter alguma coisa”, no Príncipe. A trombuda mulher das regueifas, com o seu bigode de marca, fizera entretanto a sua rotineira passagem pelo corredor da camioneta, na venda à passagem em Valongo. Estávamos, finalmente, a chegar ao Porto. À entrada na garagem, à chegada à Batalha, ainda o autocarro não estava estacionado e já quase toda a gente se tinha levantado dos lugares, retirando as sacas e outros pertences, morta por colocar um ponto final naquela longa e cansativa viagem. 

Foi então que o pior acabou por acontecer: ao tirar uma saca, do espaço para bagagens sobre os bancos, completamente desastrado, passei uma “secante” à asa do avião do Letra, rompendo-a da carlinga e deixando-a pendente pelo papel vegetal a que estava colada. O Letra rugiu uma imprecação audível em toda a camioneta e o seu olhar fuzilou-me, com (compreensível) ódio, vendo talvez no meu gesto um desproporcionado desforço ao pretérito episódio da bola de neve. 

Eu estava mais do que embaraçado. Tudo não passara de um infeliz azar. Balbuciei umas desculpas atrapalhadas, que era tudo o que me saía. Não tinha havido, da minha parte, a menor intenção no gesto descuidado que tivera. Isso não impediu que tivesse saído do autocarro dabaixo de sobrolhos carregados de alguns passageiros, bem chocados com a minha indesculpável incúria. Imagino como reagiriam se soubessem do meu anterior conflito com o pobre aeromodelista! 

Dele, do Letra, que muito provavelmente falhou o campeonato por minha causa, guardo uma última imagem: o seu ar desencantado, dentro da camionete, através dos vidros, olhando o resto do avião pousado nas suas mãos.

Saí “de fininho” da garagem do Cabanelas, rumei ao Lar Universitário onde me alojava e nunca mais na vida voltei a ver o Letra. E nunca lhe pedi suficientes desculpas. Mas o rebate de consciência ficou-me para sempre.

segunda-feira, março 05, 2018

Renzi


Ainda há escassos meses Matteo Renzi era uma imensa “esperança” para a Europa do futuro.

Demitiu-se, há pouco.

Isto anda tão depressa...

‘Investimento público”



“Investimento público” é uma expressão que convoca sentimentos interessantes. E contraditórios.

Por muito tempo, quem nisso falasse era colado a despesismo, dívida pública, resgate, Sócrates e outros “diabos” recorrentes.

Um dia, chegou a S. Bento António Costa. E, afinal, o “diabo” não veio. A pergunta, feita pelos mesmos que antes se alimentavam politicamente da tragédia, anda aí agora: “Então não há investimento público?”.

“Quem lhes atasse um arado!”, como se dizia na minha terra para certas “aves”...

Os nossos Óscares


Não foi há muitos anos, mas já lá vai muito tempo, “if you know what I mean”. No bar Procópio, essa ímpar instituição lisboeta de copos, conversas & companhias, um seleto júri decidia anualmente a atribuição de uma mão cheia de “Procópios”, oferecidos a figuras que se destacavam no teatro, no cinema, no jornalismo, na literatura, na televisão, etc. E até na política. Havia uma festa, sem passadeira vermelha, onde eram entregues esses prémios. Eram belos, esses dias! 

“Sedona” Alice Pinto Coelho: agora que o turismo sopra o seu vento de cifrões, fazendo andar o barco na boa direção, não seria de se arranjar um “sponsor” (eu trato disso!) para se voltarem a fabricar as estatuetas da autoria do nosso genial António Antunes? Back to business? 

Democracia na Europa


Há poucas horas, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, integrei um grupo que discutiu o tema “Fortalecer a Democracia na Europa”, sob a moderação de Vitor Martins, antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

Foram cerca de três horas de excelente e útil debate, sobre um tema nada fácil, muito polémico, mas essencial.

Do painel de convidados faziam parte Pieyre-Alexandre Anglade, deputado francês especialista em assuntos europeus, Miguel Poiares Maduro, professor universitário no Instituto Europeu de Florença e antigo ministro, e Laurent Cohen-Tanugi, vice-presidente do Instituto Jacques Delors. 

A Conferência foi aberta por Isabel Mota, presidente da Gulbenkian, seguida do vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans, tendo sido encerrada pelo antigo PM italiano e atual presidente do Instituto Jacques Delors, Enrico Letta, e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.

O tema central da Conferência prendia-se com os desvios aos princípios europeus - em matéria de democracia, Direitos Humanos, respeito pelo Estado de direito, liberdade dos media, etc, que hoje se verificam crescentemente em alguns Estados da União, refletindo sobre o modo como este tema deve ser tratado a nível europeu e nacional.

Foi uma bela discussão. Devo dizer, com franqueza, que raramente dei por tão bem empregue o meu tempo.

domingo, março 04, 2018

A novidade


No dia de hoje, fala-se muito da fórmula de governo encontrada para a Alemanha, para os próximos quatro anos: será uma coligação entre os conservadores da CDU e os social-democratas do SPD.

Tenho a sensação de que, depois de todos estes meses de discussões, há muita gente que já nem se recorda de qual é a “coloração” do governo que continua no poder na Alemanha, há bem mais de quatro anos. Eu lembro: CDU-SPD...

O acagaçado


  

Naquele ano de 1984, o embaixador de Portugal em Angola, António Pinto da França, decidira fazer uma deslocação oficial a Benguela, onde tínhamos um consulado e uma significativa comunidade. Eu acompanhá-lo-ia. Ao saber dessa ida, um empresário português, de seu nome Pena, proprietário de uma avioneta, piloto com grande experiência desde o tempo colonial, ofereceu-se para nos levar na viagem de ida, sendo o regresso feito num voo regular pela TAAG. A paisagem única que esse voo privado proporcionava era o principal aliciante. 

Em regra, não tenho o menor medo de viajar de avião. Já experimentei companhias aéreas bem “sinistras”, já usei cintos de segurança que se apertavam com um nó, vi portas de aeronaves que fechavam com mecanismos improvisados, durmo que nem um anjo com turbulência. O meu grande receio é sobreviver num acidente, pelo “estado” em que posso ficar depois de “aterrar”. Mas aquela ida a Benguela não me estava a “cheirar bem”.

O Arlindo era um piloto de helicópteros da Força Aérea portuguesa, que eu conhecia dos tempos do MFA e que, por esses anos, estava a trabalhar em Angola. Numa das noites anteriores à viagem, tive-o a jantar na minha casa de Luanda. Quando lhe contei a aventura em que estava prestes a embarcar, alarmou-se: “O quê! Num monomotor? Sobre a ‘banheira’? Vocês são malucos!”

Não percebi o que ele queria dizer com aquilo da “banheira”. Com um mapa de Angola em frente, explicou-me. Um avião daquele tipo voava a uma altitude relativamente baixa. Porque, na zona entre Luanda e Benguela, havia várias regiões com forte presença da Unita, cujos guerrilheiros podiam ser tentados a mandar umas rajadas de metralhadora para o aparelho, o mais provável era o piloto decidir “cortar” pelo caminho mais curto, pelo meio do mar, pela “banheira”. Ora isso seria muito arriscado, porque um monomotor, se acaso tivesse uma avaria, despenhava-se, sem apelo nem agravo, no Atlântico. “Eu, se fosse a ti, nem ia nem deixava que o embaixador fosse”.

No dia seguinte, procurei convencer o António Pinto da França da insensatez da viagem. Qual quê! O seu espírito aventureiro estava já mobilizado e nada o demovia. E riu-se das minhas preocupações.

Nessa tarde, por um acaso, o Pena vinha ver-me ao meu gabinete, por um outro assunto. Decidi então inventar uma mentirola inocente. Disse-lhe que o embaixador se me mostrara algo preocupado com um eventual trajeto sobre o mar, mas que não lhe queria dizer isso diretamente, para não parecer que estava a pôr em causa o seu sentido de responsabilidade. Assim, tanto quanto possível, e para o sossegar, pedia-lhe que a viagem fosse sempre feita sobre a linha de costa. (Eu, cá por mim, “preferia” um tiro da Unita aos dentes dos tubarões). Mas pedia-lhe que o assunto ficasse “entre nós”. O Pena acedeu, sem especial reação e eu fiquei menos ansioso.

Dias depois, o embaixador e eu, com as respetivas mulheres, bem como a adida comercial da embaixada, Élia Rodrigues, lá fomos no pequeno avião do Pena, a caminho de Benguela. Eu ia ao lado do piloto, com os quatro passageiros atrás. A viagem corria normalmente, com ele a mostrar-me, divertido, umas praias onde, no passado, tinha aterrado de emergência... Comecei, contudo, a inquietar-me, e mais nervoso fiquei, quando, a certa altura, o vi guinar bem para cima do mar, distanciando-se da costa, provavelmente para evitar alguma zona tida como perigosa em matéria de segurança.

“Ó senhor Pena! Veja lá não se afaste muito!”, alertei. Ele então voltou-se e, falando sobre a barulheira do motor, berrou, lá da frente, para o António Pinto da França: “O senhor embaixador importa-se que eu fuja um pouco da costa, por uma meia hora?”. Eu estava furibundo e mais fiquei quando ouvi o meu embaixador responder: “O amigo Pena é que sabe! Tenho plena confiança em si.”

O Pena percebeu, nesse segundo, quem é que, na realidade, tinha dúvidas sobre a opção do trajeto. E voltando-se para mim, disse: “Afinal, parece que o ‘acagaçado’ aqui é o senhor doutor...”

Olhar o mundo


No “Olhar o Mundo” desta semana falo sobre a corrida armamentista, analiso uma entrevista do ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sérgio Lavrov, com notas sobre as eleições na Itália, os problemas do Brexit, o governo futuro na Alemanha, as confusões na Casa Branca de Trump, os dissídios entre os EUA e o México, a guerra no Iémen, os desafios do novo presidente sul-africano Ramaphosa, o recrudescer de atividade do Boko Haram na Nigéria, a concentração do poder na China e a intervenção militar na ordem pública no Brasil.

O programa pode ser visto clicando aqui.

sábado, março 03, 2018

Regresso


Há precisamente 50 anos, abandonei o curso de Engenharia Eletrotécnica, na Universidade do Porto, que tinha frequentado durante dois anos. Aquela não era, decididamente, a minha vocação.

Hoje, em Vila do Conde, “regressei”: a convite da direção da Faculdade de Engenharia, fiz uma palestra, integrada num seminário de reflexão estratégica, sobre os desafios globais, europeus e nacionais. Falei aos quadros superiores daquela Faculdade sobre as interrogações que se colocam ao nosso futuro coletivo. 

Comecei por dizer que nem sempre prever o futuro é uma arte assim tão difícil: por exemplo, sei muito bem qual vai ser o destino do (meu) Sporting na Liga...

sexta-feira, março 02, 2018

CDS


Tenho alguns bons amigos (poucos, mas mesmo bons!) que são militantes do CDS. Tenho também - é pura verdade! - um reconhecimento sincero ao CDS pelo facto de, no pós-25 de abril, ter dado acolhimento pré-constitucional a alguma direita que a Revolução deixara tresmalhada e que então se sentia tentada a desvios violentos à nova ordem. 

(Alguns dos meus amigos políticos dirão que algum CDS acabou por consumar essa deriva. E têm razão. Mas, nesse caso, para serem coerentes, terão de contabilizar os setores do PPD, e até do PS, que se deixaram levar nessa onda, do MDLP político ao bombismo assassino. E, já agora, nesse mesmo “barco”, devem incluir alguns incensados militares de abril. É melhor não abrirmos o livro, está bem?)

Hoje, no voto parlamentar de pesar pela morte do coronel Varela Gomes, quatro deputados “centristas” (adoro este eufemismo; melhor só o impagável conceito de “centro-direita”) abstiveram-se. (Ironia: o número “quatro” parece ligado historicamente ao CDS, desde o “partido do taxi”...). Os restantes votaram contra.

Com toda a sinceridade, quero saudar os deputados que votaram contra. Da mesma forma que, em 1976, tive admiração pelos parlamentares do CDS que se opuseram à aprovação de uma nova Constituição que apontava para o socialismo. Esses deputados do CDS de hoje, com toda a certeza, entendem que um revolucionário como Varela Gomes, conspirador contra Salazar e conspirador comprometido com quem tentou impor uma certa ordem no dia 25 de novembro, não merece um voto de pesar, na hora da sua morte. Foram coerentes, melhor, tiveram coragem para o serem. Coisa que outros, como os "abstencionistas" da mesma bancada (e talvez outros, noutras bancadas) não tiveram.

Posso estar enganado (e nunca saberei se o estou), mas tenho um pressentimento, no quadro de um óbvio paradoxo: se acaso João Varela Gomes ainda fosse vivo, teria bastante mais apreço pelos deputados que recusaram “chorar” a sua morte do que por quantos (e foram alguns, podem crer!) que a lamentaram apenas num gesto de mera hipocrisia.

Na Casa Branca?

Algures no ano de 1999, ao tempo em que era secretário de Estado, fiz uma deslocação de trabalho aos Estados Unidos, no quadro da preparação da presidência portuguesa da União Europeia, quer teria lugar no ano seguinte. Como é da natureza destas coisas, foi uma correria, com reuniões em Washington e Nova Iorque. 

Com o subsecretário de Estado para os Assuntos Políticos americano, Thomas Pickering, fui surpreendido pelo convite para encontrá-lo no Waldorf Astoria, em Nova Iorque, onde estava envolvido em contactos no âmbito da ONU. Aprendi então que o governo americano alugava ali sazonalmente uma ala para reuniões. Já não recordo a agenda dessa conversa, apenas tendo a certeza que foi limitada a questões europeias, que eram o meu “fonds de commerce”. 

Mas recordo bem uma palestra que então proferi a convite da New York University. Na presunção de um auditório generalista, eu tinha preparado uma apresentação num tom tecnicamente leve. Qual não foi o meu espanto quando deparei, nas perguntas, com uma audiência académica que sabia muito mais sobre as questões internas da União do que eu pensava ser comum por ali, o que deu origem a um debate bem estimulante.

Em Washington, as questões económicas, nesse tempo de arranque da Organização Mundial de Comércio, foram, ao que recordo, o centro das conversas. Havia também uma agenda de algum contencioso bilateral que não posso precisar. 

Por muito que isto possa hoje surpreender algumas pessoas, a coordenação que então fazíamos, na preparação da futura presidência, com os gabinetes do primeiro-ministro António Guterres e do ministro Jaime Gama, era levada à prática de um modo muito informal mas, há que convir, bastante eficaz. Viajávamos com total à vontade, estabelecíamos os contactos necessários, dentro das competências definidas, e tudo se passava sem problemas, com troca de notas. Tudo informado a posteriori.

Num desses dias de Washington, o programa incluía um encontro com um responsável económico da presidência americana. 

Minutos antes da reunião, o correspondente da RTP, Carlos Fino, que eu viria a encontrar como conselheiro de imprensa em Brasília, seis anos mais tarde, fez-me uma curta entrevista numa rua de Washington. Numa das perguntas, inquiriu o que é que eu ia “discutir na Casa Branca”. Lá respondi o que tinha de responder, mas aquele “Casa Branca” alertou-me.

O conceito, no jargão político-mediático de Washington, equivale a Presidência. Eu ia reunir com um departamento técnico dentro da presidência. Mas fiquei a pensar: à noite, no telejornal da RTP, ao ouvir-se o Carlos Fino referir que eu ia “Casa Branca”, lá por Lisboa, o ministro Jaime Gama, que provavelmente nem sabia que eu estava em Washington, ficaria a pensar que eu me tinha “passado”... E liguei-lhe. Jovial, Jaime Gama desejou-me bom trabalho “na Casa Branca” e... recomendou-me uma livraria de Washington que tinha visitado na sua última ida por ali.

Da conversa na tal “Casa Branca” retive uma história. A certo passo, respondendo a um qualquer comentário crítico do meu interlocutor sobre a União Europeia, acusada de dualidade de critérios em matéria de condicionalidade democrática, eu ironizei com o facto dos EUA serem muito estritos com o respeito pelos Direitos Humanos com alguns países e muito menos exigentes com outros, por razões de realpolitik. “Está a referir-se a Cuba?”, perguntou. “Sim, por exemplo. Não se vê idêntico rigor no tocante à Indonésia”. A resposta: “A geopolítica explica isso". E, talvez porque estivéssemos no departamento comercial da Casa Branca, acrescentou: "E há uns milhões de consumidores de diferença”.

Fiquei com esta nota de flexibilização de princípios, por virtude de interesses quantitativos de negócio, no ouvido. Anos mais tarde, num almoço em Ashgabat, no Turquemenistão, tive a falsa ingenuidade de perguntar ao embaixador turco por que razão não se juntava, como tinha acabado de saber, aos seus colegas da União Europeia, para protestar contra as arbitrariedades da ditadura local. A resposta: “Nenhum dos países deles tem negócios significativos por aqui. Há centenas de empresas turcas para as quais o Turquemenistão é um mercado muito importante”.

O pingo azul


Há uns tempos, contei por aqui uma historieta “com barbas”, sobre um pingo de solda. Hoje, vem de novo a propósito.

Uma senhora queixara-se à polícia de que dois trabalhadores, que tinham ido fazer um trabalho elétrico a sua casa, se tinham envolvido numa acesa disputa, com agressões e insultos mútuos, até que a senhora entendeu por bem chamar a polícia. Foram levados para a esquadra. Os visados estiveram muito longe de confirmar a versão da senhora. E um deles explicou, cândido: "As coisas não se passaram assim. O que ocorreu é que o meu colega, o Alberto, que estava no alto de uma escada que eu segurava, soldava uns fios. Inadvertidamente, sem a menor intenção, deixou escapar da máquina com que trabalhava um pingo de solda, incandescente, que me caiu no pescoço. Confesso que isso me incomodou um pouco! Daí que eu tivesse exclamado: "Ó Alberto! Vê lá se, para a outra vez, tens mais cuidado! Nada mais!" ".

Lembrei-me da óbvia plausibilidade desta história ao ouvir há pouco o “public relations” do Futebol Club do Porto a explicar a curiosa “coincidência” do clube ter liquidado quase 800 mil euros (que estavam “em atraso”, claro!) à distinta equipa do Estoril-Praia, precisamente uma semana antes da disputa do resto do jogo deste clube com o Porto. 

De vitoriosos na primeira metade do jogo (que havia sido interrompido), os jogadores do Estoril deram ares de estar na Praia a descansar, nesses segundos 45 minutos em que, com toda a ética de comportamento desportivo, se sacrificaram à vitória “andrade”. 

Mas isto tem graça, não tem? O Porto lembrar-se de que tinha uma dívida ao Estoril, precisamente nessa oportuna semana! Mas só a mentes malévolas e adeptas das “teorias da conspiração” ocorreria sugerir que os “estorilenses” foram ”oleados” e comprados para perder, não é? E se, na próxima época, houver jogadores dispensados do Porto a rumarem ao Casino, perdão, ao Estoril, a preços de saldo, é, com certeza, uma nova coincidência.

Esta é uma história do Pingo Azul ou sem pingo de vergonha! 

Tempos



Ontem de manhã,  numa aula numa universidade em Lisboa, arrependi-me de ter citado o nome de Valéry Giscard d’Estaing. Porque fiquei com a clara sensação de que, entre aquelas dezenas de jovens, muito poucos teriam ouvido falar do antigo presidente francês. E, de certo modo, dei comigo a achar normal que isso assim fosse.

Há dias, numa rádio, ouvi alguém contar que, tendo falado de Raul Solnado a um jovem, este perguntou de quem se tratava. Duvido que haja uma única pessoa que leia este meu texto que não conheça Solnado. Mas há que ser realista: isso também significa que quem o não conhece também não lê este tipo de artigos.

Há duas décadas, ao chegar a uma capital europeia, em conversa com o jovem diplomata que me tinha ido buscar ao aeroporto, perguntei se um antigo primeiro-ministro desse país ainda era vivo. Respondeu-me, sem rir: “Não sei, não é pessoa do meu tempo”. Passei a falar-lhe da recente transferência de um médio-ala de um clube de futebol local. Não era a sua especialidade. Também.

Fiz parte de uma geração que se interessava um pouco por tudo. Para além daquilo que o meu pai designava como “cultura de almanaque” (capitais, reis, rios, Estados dos EUA e coisas assim), não nos eram indiferentes outras dimensões culturais, como a história das ideias, embora tenha consciência de que esse “renascentismo” de trazer por casa, que nos fazia falar de cinema ou de literatura, de música à política, do futebol aos assuntos do dia-a-dia, tinha muito de informação “pela rama”.

Não tenho o direito de exigir aos setores supostamente educados das novas gerações que sigam esse mesmo padrão de conhecimento. Alguns dirão que é ridículo saber de cor o nome da moeda da Samoa, tendo o Google à mão. São seguramente os mesmos que, colocados perante a questão sobre “quantos são” nove vezes sete, subtraídos de 18, sacam logo da calculadora, porque já há maneira de evitar “contas de cabeça”. 

Seria útil colocarmo-nos a questão: valerá a pena saber essas coisas, quando temos cada vez mais informação acessível? É que, por muito que a internet possa ser enganadora, que as “fake news” abundem nas redes sociais, “está lá tudo” e, com algum cuidado, é sempre possível separar o trigo do joio.

Durante décadas, num tempo em que não havia internet, fiz parte de uma tertúlia onde às vezes se levantava uma discussão em torno do nome de uma atriz do filme X, do autor de um determinado texto, se um tal político tinha ou não ocupado um certo cargo. E, sem consenso, íamos para casa confirmar. O que tempo que perdíamos! Ou ganhávamos, não sei bem.

Os tempos mudaram? Claro. Mas ainda hoje gosto tanto de discutir se a falta do Gelson nos vai ser trágica logo à noite no Dragão, como saber quem era Zaratustra sem ir à net ou dizer de cor o nome antigo da capital da Gâmbia. Manias!

quinta-feira, março 01, 2018

Rios


“Há lá coisa mais bonita do que o marulhar deste rio!”, dizia-me o meu pai, enlevado com o mexer das ondas e eternamente convencido de que absorver a maresia que elas traziam era um eficaz antídoto contra os males invernais. 

Isto era dito lá por Viana do Castelo, em dias de clima zangado, com o rio Lima quase a atrever-se a chegar ao Hotel Aliança. 

Mas é claro que há coisas mais bonitas! 

Esta fotografia é de há pouco, de outro marulhar de ondas, à beira Tejo, um rio que ali se autoqualifica de mar, embora, ironicamente, “da palha”.

“Crónicas da Visão”




Tive o gosto de ver um texto meu - “O tempo e o medo” - incluído numa antologia de crónicas publicadas pela revista “Visão”, entre 1993 e 2018, numa edição comemorativa dos 25 anos da revista, que foi hoje distribuída.

Surjo nessa coletânea em belíssima companhia: José Saramago, Manuel António Pina, António Lobo Antunes, Eduardo Lourenço, Manuel Alegre, Dinis Machado, Eduardo Prado Coelho também Mário Soares, Jorge Sampaio, Marcelo Rebelo de Sousa, Maria de Lourdes Pintasilgo, Adriano Moreira e Ricardo Araújo Pereira, entre alguns outros.

Teresa Salgado



De Teresa Salgado não encontro nenhuma fotografia no Google. Tenho assim pena de não poder deixar aqui a imagem do seu belo e elegante sorriso. Soube pelo Lusojornal que morreu, há uma semana, em Paris, e que vai hoje para o Père Lachaise (onde está esta simbólica estátua).

Foi uma mulher que dedicou a sua vida à promoção da língua e da cultura portuguesa, em França. Trabalhou no Centro Gulbenkian em Paris desde 1967, vindo a ser diretora da respetiva biblioteca - a mais completa existente no estrangeiro, depois da do Real Gabinete, no Rio de Janeiro. Dirigiu cursos de português, dedicando-se à Association Culturelle pour les Études Portugaises.

Maria Teresa Salgado era transmontana, de Duas Igrejas, onde nasceu em 1945. Durante os anos que passei em Paris, era uma presença constante nas iniciativas da embaixada, com a qual colaborou ao longo dos anos, sempre num registo de grande simpatia e educação que era o seu.

Deixo-lhe uma sentida homenagem.

quarta-feira, fevereiro 28, 2018

Khadafi, a Madeira e nós

Rui Tavares conta hoje, no “Público”, alguns aspetos da questão suscitada, em 1978, por declarações do líder líbio Mouhamar Khadafi, ao ter apelado à “descolonização” da Madeira, no contexto de uma reunião da Organização da Unidade Africana.

Lembro-me bem do problema que isso suscitou no âmbito do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A Líbia, onde o regime do rei Idriss tinha há pouco sido derrubado, fora, por muito tempo, um país algo distante para nós. Mas, no Portugal pós 25 de abril, um regime autoritário ser derrubado por um grupo de jovens militares suscitava naturalmente alguma simpatia...

Mário Soares, nos seus périplos diplomáticos para desbloquear o processo negocial com as colónias em transição, havia passado umas horas por Tripoli, em 1974. E haviam sido estabelecidas, através da nossa embaixada em Paris, relações diplomáticas bilaterais, embora sem embaixadores mutuamente acreditados.

Em 1976, na sequência dessa aproximação, a Líbia enviou uma delegação a Lisboa, a um congresso do PS. Coube-me organizar, como jovem diplomata com esse pelouro geográfico que então era, um conjunto de contactos técnicos para o ministro dos Municípios líbios, que chefiava a delegação, Abuzaid Dorda.

(Em 2001, vim a encontrar e a conviver com Dorda, então meu colega nas Nações Unidas. Havia sido, entretanto, primeiro-ministro do seu país. Viria a ser condenado à morte pelo novo regime, em 2015, mas, aparentemente, continua preso, com a sentença por executar). 

Escassos meses depois, e como consequência direta dessa visita, com vista a explorar as imensas possibilidades de cooperação económica que se abriam com um país rico em petróleo como era a Líbia, integrei uma delegação técnica no domínio da construção civil e obras públicas que deslocou àquele país. 

A minha participação na delegação - ainda nenhum diplomata português fora oficialmente à Líbia - foi explicitamente decidida como forma de dar um primeiro sinal (a nível deliberadamente “baixo”, como foi então assumido, o que não alimentou o meu ego...) de aproximação política oficial ao novo regime. Fomos recebidos de forma principesca e tudo apontava para excelentes hipóteses de negócio para as nossas empresas.

Mas nem tudo iria correr bem, no imediato, nesse “namoro” com a Líbia. 

Logo ano seguinte, em dezembro de 1977, quando uma nova delegação técnica, de que igualmente fiz parte, se aprestava para concluir alguns dos contratos negociados, esperava-nos uma surpresa desagradável: fomos praticamente “sequestrados” à chegada a Tripoli, retiraram-nos os passaportes e os bilhetes de avião e confinaram-nos, sem contactos, num hotel miserável, na periferia de Tripoli, durante quase uma semana. (À época, procurou-se "esconder" da imprensa este incidente sofrido pela nossa delegação, que era presidida pelo engº Guimarães Lobato, administrador da Gulbenkian).

O que se teria passado? Muito simplesmente, os líbios reagiam assim a uma declaração feita por Mário Soares, horas antes, numa reunião da Internacional Socialista, em que o então primeiro-ministro português havia anunciado o estabelecimento de relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel. Nós havíamos sido apenas as vítimas “colaterais” desse desagrado. 

Kadhafi não esqueceria a afronta da aproximação portuguesa a Israel. E é assim que, meses depois, surge esta “boutade” sobre a Madeira que, oportunamente, Rui Tavares vem recuperar, quarenta anos mais tarde.

Para o que também importa, convirá registar que as coisas acabaram por compor-se. A presença empresarial portuguesa reforçou-se imenso na Líbia, muitos trabalhadores portugueses por lá estiveram a ganhar bastante dinheiro, muitos bons negócios beneficiaram por ali Portugal, por muito tempo, até à queda de Kadhafi. Depois, foi o que foi...

Da cobardia

Há coisas difíceis de dizer a um amigo: uma delas é que essa pessoa tem mau hálito e que isso se torna incómodo para os outros. Mas temos que fazê-lo, porque, por menos cómodo que isso possa ser, estamos a poupar essa pessoa a situações desagradáveis, até de rejeição, de que ela própria, porque não tem consciência disso, será o principal prejudicado. Uma vez disse isso a um colega nosso. No primeiro instante, pareceu-me ligeiramente perturbado mas, no fim, acabou por me agradecer.”

A fala reproduzida no parágrafo anterior não é minha: foi-me dita por um prestigiado embaixador, bem mais velho do que eu, num café de uma capital europeia. A conversa tinha-nos conduzido, sei lá bem porquê, àquele estranho tema. Eu ia dizendo que sim com a cabeça, seguindo o raciocínio do homem. Por um lado, dava-lhe razão: deve ter-se a coragem de avisar os amigos desse aspeto desagradável. Mas, por outro, pesavam mais as razões que me levavam a coibir-me de dizer ao meu interlocutor que, também ele, tinha um odor insuportável a sair-lhe da boca.

terça-feira, fevereiro 27, 2018

O grande rebelde




Foi há quase cinco anos. Tocou à minha porta. Era praticamente nosso vizinho. Eu não estava em casa. A quem o atendeu, entregou um livro para mim, com uma amável dedicatória. Disse querer agradecer o que eu tinha por aqui escrito. O facto de eu ter, mais uma vez, reposto a verdade.

E o que é que eu tinha escrito? Pela enésima vez, tinha contado algo que tem mais de duas centenas de (quase todas silenciosas) testemunhas: naquela que ficou conhecida pela “assembleia selvagem” do MFA (porque não foi convocada nos moldes formais), na noite de 11 de março de 1975, o coronel João Varela Gomes não apelou ao fuzilamento dos conspiradores dessa manhã. 

Mas houve ou não alguém que fez esse apelo, nessa tensa reunião que durou quase até às sete da manhã de 12 de março? Claro que sim. Houve por ali uma voz que fez essa insensata proposta. Não interessa agora quem foi. Para o que me importa, que fique claro que essa voz não foi a de João Varela Gomes. Os seus inimigos e detratores, recorrentemente, em livros e artigos, espalham essa miserável insídia. Eu, que nunca fui seu amigo, mas fui testemunha ativa dessa noite revolucionária, repetirei, tantas vezes quantas for necessário, essa simples verdade.

João Varela Gomes foi um oficial do Exército que, com imensa coragem, combateu a ditadura. Foi a figura mais importante da tentativa revolucionária de derrube do regime, ocorrida na noite de 31 de dezembro de 1961, no frustrado assalto ao quartel de Beja. Gravemente ferido nessa intentona, esteve preso durante uma década.

Poucos meses depois de ter deixado a prisão, em 1972, fui-lhe apresentado, bem como a sua mulher - Maria Eugénia Varela Gomes, uma grande figura antifascista -, pelo meu amigo Lino Bicho, num almoço em Colares, na “Casa dos Frangos”, um célebre restaurante dirigido por um casal de comunistas, o Gil e a sua mulher, uma “roja” que participara na Guerra Civil espanhola. 

Voltaria a encontrar Varela Gomes dois anos depois, nos dias do 25 de abril, no palácio da Cova da Moura. Eu era adjunto da Junta de Salvação Nacional, fazendo parte da “comissão de extinção” da Pide, e Varela Gomes era a figura mais marcante da famosa 5ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, que funcionou, por algum tempo, numas salas no topo do edifício. Era tido como um militar muito próximo do PCP. 

Em 11 de março de 1975 e nos dias seguintes, cruzei-me bastante com Varela Gomes, desde um encontro no Palácio de Belém até à tal Assembleia do MFA, bem como à volta da organização da Assembleia do Exército, para nomear o Conselho da Revolução, que teve lugar 24 horas depois, em que ele viria a ter um sério confronto, quase físico, com Vasco Lourenço. 

O papel central de Varela Gomes na chamada “esquerda militar” - isto é, os militares próximos do PCP - era então mais do que evidente. Eu não andava por essas “águas” e algumas coisas se passaram, em reuniões e conversas de corredor, que não ajudaram a tornar muito aberta a nossa relação. Mas ainda voltámos a falar algumas vezes, embora sempre sem grande empatia, durante esse Verão quente de 1975. Depois, em agosto, saí do serviço militar e, por muitos anos, perdi-o de vista.

Varela Gomes voltaria, entretanto, a estar em evidência no 25 de novembro desse ano de 1975, movimento militar após o qual se refugiou durante alguns anos em Angola. 

Regressaria mais tarde a Portugal. Éramos vizinhos. Cruzávamo-nos às vezes na rua, conversávamos por alguns minutos. Notei que estava atento à minha vida, citando-me coisas que eu publicava e lugares que eu ocupava.

Nesses nossos encontros aperiódicos, nunca falámos de política. Mas julgo que não tinha mudado as suas ideias, continuando a ter uma profunda repulsa pela “democracia burguesa” em que vivemos - com a qual eu estava confortável e ele não.

Não creio ser necessário estar de acordo com as ideias de João Varela Gomes, a quem, nesse entretanto, morreram um filho e a sua mulher, para podermos sentir admiração por esta notável figura de grande rebelde, lutador denodado por “amanhãs” que dificilmente algum dia cantarão, mas que, talvez por isso, têm para muitos a beleza única das coisas inatingíveis.

João Varela Gomes morreu ontem. A equação é simples. O 25 de abril deve-lhe muito. Eu devo muito ao 25 de abril. Logo, eu devo muito a Varela Gomes. Portugal também.

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...