A minha relação com os livros, em férias, é muito complexa. E, invariavelmente, frustrante, embora eu disfarce isso perante mim mesmo, com relativo sucesso.
Em miúdo, em casa da minha avó, lá por Viana do Castelo, durante as férias, passei a dormir, por vários anos, num divã colocado na biblioteca. De três grandes armários envidraçados surgiam-me as lombadas de uma imensidão de livros, na maioria encadernados, numa escolha que não era muito óbvia mas que correspondia aos interesses culturais de um tio por afinidade - o tio Túlio - que morrera antes de eu nascer e cuja biblioteca ficara como a sua imagem póstuma. (Às vezes penso que é possível fazer um perfil bastante aproximado de alguém através dos livros que deixou ao longo da vida). Durante alguns anos, olhava para aquilo como cenário. Depois, com artes, acedi à chave e, sem o menor critério, ou melhor, com critérios erráticos de quem não tinha para isso a menor orientação, lá fui lendo (às vezes só algumas páginas de) livros um pouco ao acaso. Era o tempo em que a banda desenhada me ocupava quase obsessivamente as horas - e nunca me perdoei disso.
Noutro cenário de férias, na casa do meu avô, em Bornes de Aguiar, ao lado das Pedras Salgadas, o ambiente da disponibilidade bibliográfica tinha a caraterística de ser mais eclético, mais caótico e muito mais contemporâneo (bastante fornecido por um tio que vivia em Lisboa e era dado à curiosidade pela literatura). Havia de tudo por ali, mas, estupidamente, não me lembro de ter aproveitado devidamente muito de bom que podia ter lido, que poderia ter ajudado fortemente a colmatar falhas graves que permanecem na minha cultura no terreno da ficção. O que eu por ali então li, em grande prioridade, foram livros sobre a Segunda Guerra mundial, sobre as relações Leste-Oeste ou artigos das Seleções do Reader's Digest. De romances, apenas alguns Camilo e Redol, ou romances da guerra, de Leon Uris ou Erik Maria Remarque. Ou então uma coisas chatíssimas, mas informativas, de Fernando Namora, sobre uns encontros de debate internacional a que assistira, na Suíça.
Um dia, para todos nós, as férias passam a ser da nossa exclusiva conta. E os livros que para elas levamos também. De início, havia muito "whishful thinking": livros que "havia que ler" mas que, durante o ano, nos não apetecia ler. Se eram coisas "pesadas", menos razão havia para ir carregado com esses monos, muitas vezes coisas "essenciais" mas ai damais impossíveis de digerir em ambiente estival. (Recordo-me que o mais próximo que estive de ficar deprimido alguma vez na vida foi, numas férias algures na Beira, quando dei por mim a soçobrar a meio do segundo volume do "Traité d'Economie Marxiste", de Ernest Mandel. Talvez por essa razão, senti um imenso alívio, há dois anos, quando ofereci os três volumes dessa obra do pensador trotskista belga à Biblioteca de Vila Real, para integrar o espólio de milhares de livros meus que para aí vão caminhando com o tempo).
Desde há muitos anos que, incluída na bagagem para as férias, há a chamada "saca dos livros". Tem sempre entre 30 e 50 volumes e, não raramente, alguns deles transitam de ano para ano. Por lá figuram obras "virgens", compradas num momento de inconscinte otimismo num dia bem disposto numa livraria, de que nunca abri um página. Outros são livros que comecei a ler, que ascenderam à pilha sobre a minha mesa de cabeceira, mas que foram lentamente submergidos por outros. Um dia, aí de três em três meses, quando a resma começa a inclinar-se, qual "torre de Pisa", são retirados alguns para uma estante de apoio, também estategicamente existente no quarto de dormir, que funciona como uma espécie de "banco de suplentes". Aí se vão acomodando, sem o menor critério temático, à espera de melhores dias, isto é, das férias. A sua inclusão na "saca dos livros" (de longe, a mais incómoda peça da nossa bagagem, ou, como diz a munha mulher, que "a que pesa como chumbo") é uma espécie de rebate de consciência, de autocrítica subliminar, de ilusão de que posso vir a fazer a devida justiça a essas obras que, numa noite, foram friamente desprezadas, trocadas por uma qualquer novidade editorial mais apelativa e prometedora.
Há mais de duas décadas, por uma razão pontual, fui obrigado a fazer férias sozinho. Estive quase duas semanas numa já desaparecida pousada alentejana e, logo no dia da chegada, arrumei mais de meia centena de livros por todo o quarto. Nos dias seguintes, notei que o pessoal me olhava com uma inusitada curiosidade. A notícia devia ter circulado. Eu não tinha, humanamente, a menor hipótese de ler aquilo tudo, ainda por cima (mas julgo que não chegaram a esse ponto de análise) eram obras muito díspares, sem a menor coerência entre si. Ao final de alguns dias, com um estatuto já meio "da casa", à conversa com a jovem diretora da pousada, o assunto derivou para livros, para o que se quer (e deve) ler e o que é realisticamente é possível. Ela não podia assumir que sabia que o meu quarto estava estranhamente atulhado de livros, pelo que fez uma conversa "à volta", perguntando se eu estava a escrever algum. Matei-lhe a curiosidade, mas perdi de caminho boa parte do mistério criado, quando lhe expliquei que, das dezenas de livros que sempre levava comigo para todas as férias, só em anos muito excecionais eu conseguia ler mais do que um quinto de todos os títulos. Na vida, expliquei-lhe, o que é bom é podermos ter à disposição, à "mão de semear", em abundância, o que nos pode trazer prazer, com a total liberdade da escolha a fazer parte integrante desse mesmo gozo. Não sei se ela ficou com a impressão de que eu estava a "fazer-lhe a folha" quando, juro!, só estava a tentar reproduzir, por outras palavras, o dito batido de Pessoa: "Ai que prazer / não cumprir um dever. / Ter um livro para ler / e não fazer!"