quarta-feira, junho 09, 2010

Dia de Camões

Quantos, dentre as muitas centenas de convidados que hoje encherão os salões desta nossa Embaixada em Paris, por ocasião do dia nacional português, saberão que a data corresponde àquela que a História assinala como sendo a da morte do poeta que, mais do que ninguém, nos simboliza?

Quantos saberão que, a partir do ano em que essa morte ocorreu, Portugal passaria, por seis imensas décadas, a ver a sua vida tutelada por um rei vindo de fora? E que soube sair dessa situação, com dignidade e coragem?

Poucos se lembrarão dessas duas circunstâncias, sendo verdade que as receções comemorativas não são, seguramente, os locais mais convenientes para convocar temas de solenidade histórica. Mas talvez fosse útil, em especial em tempos que mobilizam algum pessimismo, que aos portugueses fosse lembrado que, desde há cerca de 900 anos, eles constituem uma entidade nacional própria e autónoma, com fronteiras que praticamente permaneceram idênticas desde então. Que lhes fosse dito que, no passado, muitas crises chegaram e de todas elas soubémos sair. Que passámos por períodos de ferozes lutas internas e de resistência a invasões e agressões externas. Que tivemos bons dirigentes e outros a que a História nos podia ter poupado. Que cometemos barbaridades e que fizémos coisas magníficas. Que criámos um imenso império e que, ao fim de alguns séculos, regressámos, pela ordem natural da História, à origem geográfica desta bela aventura que continua a chamar-se Portugal. E que aqui estamos, reconciliados com o mundo e com tudo o que fomos e somos, para continuar esse mesmo caminho.

Quando alguns portugueses contemporâneos por aí andam, com ar de patética gravidade, a espalhar o desânimo e o derrotismo, apetece-me lembrar-lhes que, por muito importantes que se considerem, por muito que se queiram arvorar em vedetas incontornáveis de mais um ciclo de culto da finis patriae, eles são apenas a triste decantação masoquista da sua própria impotência e mediocridade. E que este país vai continuar, malgré eux.  

terça-feira, junho 08, 2010

Filosofia portuguesa

Com esta bela foto de Helena Almeida na capa (que, estou certo, vai fazer as delícias do Criativemo-nos), foi ontem apresentado, ao fim da tarde, no Centro Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, aqui em Paris, o nº 68 da revista Rue Descartes, dedicada ao tema "Philosopher au Portugal aujourd'hui".

Os cultores dessa escola de autoflagelação que hoje domina o sentimento comum português - uma linha teórica que poderíamos apelidar de "comentar e lamentar" - dirão que o título deste volume é um contrasenso. Deixemo-los a falar sozinhos, nos seus blogues e nas suas colunas de padecimento biliar.

Para o que nos interessa, este número do Rue Descartes é um retrato sobre o pensamento filosófico contemporâneo em Portugal. Foi um gosto ouvir falar especialistas franceses e portugueses, em hora e meia de interessante reflexão e escalpelização dos textos, sob a condução de Maria Filomena Molder, sobre alguns dos percursos da nossa filosofia. O texto de Fernando Gil que sobressai nesta publicação - "O hospital e a lei moral" - serviu de eixo para uma análise fascinante de Jean Petitot.

E, já agora, para os visitantes de Paris recomendo, até Outubro, a magnífica exposição de pintura inglesa dos anos 60 que enche as salas do edifício da Gulbenkian na avenue d'Iéna - "Ainsi font les rêveurs/As dreamers do". Verão que não se arrependem. 

"Crisófilos"

O meu colega e amigo Alexander Ellis, que representa o Reino Unido em Portugal, e que partilha com todos nós a utilização da língua portuguesa e com todos os sportinguistas o sentimento da amargura ("Things can only get better"), deu uma curiosa entrevista ao jornal "i" em que qualifica os portugueses de "crisófilos", considerando Portugal "um país viciado na crise".

Vale a pena lê-lo aqui.

O véu

Laurence Ferrari é a imagem de serenidade que, de segunda a sexta-feira, apresenta o telejornal de TF1. "Utilizo-a" para sossegar o espírito, preparando-me assim, cerca de uma hora antes, para o trauma diário do "pacote" de acidentes, crimes & desgraças correlativas, do continente e ilhas, que os nossos jornais televisivos nos irão servir logo de seguida.

A jornalista francesa, cuja delicadeza pessoal verifico ser compatível com um jornalismo rigoroso e acutilante, mas isento de histeria e agressividade medíocre, foi objeto de vários comentários  na imprensa, por ontem ter sido vista a entrevistar o presidente iraniano, usando na cabeça um véu que cobria os seus cabelos loiros. Nada que, como já vi no passado, seja incomum a prestações similares, por parte de colegas suas, em idênticas situações. 

Porém, como a questão do uso de vestuário feminino em ambientes islâmicos (convém notar, para alguns menos atentos, que os iranianos são islâmicos mas não são árabes) está aqui muito presente em França, o tema não deixou de ser especulado por alguns comentadores. Em resposta, Ferrari limitou-se a dizer, e bem: "respeito as regras dos países onde vou". 

Estes são temas polémicos e, nos tempos que correm, acabam por ser dramatizados e às vezes caricaturados. A meu ver, devemos abordá-los com sentido de respeito pelos usos e costumes de cada um, atendendo, em especial, às sensibilidades culturais e religiosas que convocam. Temos o dever de não ser "eurocêntricos" na sua abordagem, embora devamos cuidar em que as nossas próprias formas de estar devam ser objeto de idêntico respeito. Aprendi nesta vida diplomática que o bom-senso, nisto como em tudo, resolve muitos problemas.

A relação com os iranianos levanta uma outra questão protocolar, por vezes desconhecida: os homens iranianos não cumprimentam as senhoras com a mão, porque entendem que, por razões religiosas que não vem ao caso analisar, não devem com elas ter um contacto físico, na esfera social. Assim, para saudar as senhoras que lhes são apresentadas, levam apenas a mão ao peito e fazem uma leve saudação com a cabeça. Já tenho visto muitas senhoras ocidentais, desconhecedoras desta prática, ficarem de mão estendida...

Há cerca de uma década, em Portugal, tive uma experiência curiosa, num pequeno-almoço de trabalho que organizei, num hotel, com uma delegação do Irão, chefiada por um membro do respetivo governo. Fui para esse encontro acompanhado de quatro senhoras, diplomatas e técnicas do MNE, que estavam bem conscientes desse costume. Ao ver-nos entrar, fiquei com a sensação, pela cara dos nossos interlocutores, que a delegação iraniana terá, por alguns instantes, ficado com a impressão de estar a ser vítima de uma provocação, pela quantidade de senhoras que me acompanhava, pouco comum no seu país.  Saudaram-nas ao seu jeito, mas permaneceram estranhamente silenciosos.

Como o ambiente me parecia algo tenso, decidi passar de imediato à mesa. Aí, tudo ficou bem claro: apresentei a minha chefe de gabinete, a diretora do serviço para a política exterior europeia, a responsável pelo departamento que cobria a área do Médio Oriente e a chefe do serviço para as relações económicas internacionais. Todas essas qualificadas funcionárias ali estavam, por direito próprio das funções que exerciam. Os iranianos ter-se-ão assim dado conta, julgo que com alívio, traduzido em alargados sorrisos e na imediata contribuição para um ambiente distendido, que era a lógica do saudável equilíbrio de género, na área diplomática portuguesa, que justificava tão forte presença feminina do nosso lado da mesa. E toda a reunião correu muito bem.

Vinho do Porto

Desde há 14 anos que tem lugar, aqui em França, promovido pelo "Sindicat des Grandes Marques de Porto", com o apoio do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, um prestigiado concurso que agora envolve cerca de 1000 escanções franceses, intitulado "Master of Port". Trata-se de apurar o melhor especialista em Vinho do Porto, um produto para o qual a França é hoje o primeiro mercado internacional - já bem antes do tradicional destino britânico. 

Decidi, este ano, acolher na Embaixada a entrega desse prestigiado prémio, pelo que ontem nela se congregaram, para além dos escanções finalistas, mais de duas centenas de personalidades ligadas à enologia, às revistas da especialidade e a vários outros setores franceses que ajudam a que o Vinho do Porto seja uma das grandes marcas de qualidade do nosso país em França.

Como padrinho da organização, esteve presente o ator de teatro e cinema francês Claude Brasseur, "estrela" da festa, que me falou com saudade de idas antigas a Portugal, que incluíram noitadas de fado em companhia de António Lopes Ribeiro.

segunda-feira, junho 07, 2010

Mocidade

A notícia de que algumas escolas vão vestir crianças com fardas da Mocidade Portuguesa é , a meu ver, reveladora de duas coisas.

A primeira é que parece haver, em Portugal, quem não tenha aprendido nada com a História. A segunda, bem pior, é que o facto disto se passar sem um sentimento público de forte rejeição revela um preocupante estado de anemia cívica. 

Só falta que ponham as crianças a fazer a saudação romana/nazi...

Israel e Portugal (2)

Com a ocorrência do 25 de Abril, Israel aproveitou para informar as autoridades portuguesas que "reconhecia" a Junta de Salvação Nacional. Prudente, o nosso MNE registou então, numa nota interna, que Portugal nunca tinha expressamente reconhecido Israel, razão porque o respetivo governo não fora incluído na comunicação geral através da qual dera conta ao mundo do novo regime.

Porque os tempos corriam a favor de um posicionamento prioritário de abertura da diplomacia portuguesa face ao então chamado "Terceiro Mundo", em que os países árabes tinham um papel predominante, e de que decorria naturalmente uma atitude mais pró-palestiniana, o período pós-Revolução não parecia muito favorável a uma aproximação com Tel-Aviv. Melo Antunes, ministro dos Negócios Estrangeiros, assumiu então posições  públicas desfavoráveis aos desígnios israelitas e abriu caminho a que, nas Nações Unidas, num voto que viria a ser considerado muito polémico, o nosso país se ligasse a uma resolução que equiparou o sionismo ao racismo (72 votos a favor, 35 contra e 32 abstenções), afastando-se, neste caso, da posição de vários países ocidentais.

Julgo que se pode considerar que, tendo sido este o gesto anti-israelita mais extremado assumido pela diplomacia portuguesa, ele acabou por criar, paradoxalmente, um ambiente propício a uma viragem na atitude futura de Portugal face a Israel. 

Foi o Partido Socialista quem esteve no centro desta nova atitude portuguesa. Com efeito, estando o Partido Trabalhista no poder em Tel-Aviv, a lógica de apoios dentro da Internacional Socialista acabou por favorecê-lo e Mário Soares veio a mostrar-se crescentemente aberto a favorecer uma maior aceitação de Israel no quadro internacional,  com a contribuição de Portugal. Ao mesmo tempo - e lembremo-nos que estávamos no tempo tenso de 1976 -, esta orientação socialista marcava também, no plano interno, o seu claro afastamento da linha "terceiro-mundista" que o PS considerava ter marcado o consulado diplomático de Melo Antunes. Aliás, o ministro militar teve o cuidado de desenvolver bem o seu ponto de vista no seu discurso de despedida do MNE, largamente citado pela minha colega Manuela Franco, no artigo em cuja factualidade me tenho vindo a apoiar neste e no anterior post e cuja consulta recomendo.

Assim, logo no programa do I Governo constitucional, em 1976, referem-se, embora sem sentido claro de decisão, "as questões do estabelecimento de relações diplomáticas com a China Popular e Israel". Esta clara inflexão fora precedida de visitas partidárias a Israel de Jaime Gama e de Salgado Zenha. Porém, como bem refere Manuela Franco, dentro do MNE essa nova predisposição socialista não apenas não provocou efeitos sensíveis como terá mesmo suscitado algumas surdas resistências. Basicamente, e para o que contava em termos de atitude prática, a política manteve-se a mesma, mesmo sendo já Medeiros Ferreira o novo ministro. 

Embora não disponha, de momento, de datas exatas comigo, recordo que, algures em 1977, uma missão técnico-diplomática que eu integrava, destinada a finalizar um promissor processo de contratação de obras públicas, iniciado no ano anterior, foi sujeita a uma espécie de "quarentena" em Tripoli, na Líbia, durante quase uma semana. Isolados num hotel nos arredores da capital, sem comunicações com o exterior, com os passaportes e bilhetes nas mãos dos nossos anfitriões, verificávamos, com surpresa, uma diferença radical de atitude face à simpatia com que, menos de um ano antes, aí havíamos sido recebidos. Ao final de um período de perplexidade e mesmo de alguma angústia, viémos a ser informados que estávamos a ser "vítimas colaterais" do anúncio da decisão, por parte de Portugal, de que Lisboa e Tel-Aviv iriam estabelecer relações diplomáticas a nível de Embaixada. "For the record", assinale-se que tudo se compôs e os contratos com os líbios acabaram por ser assinados, tendo aberto caminho a uma ininterrupta presença da indústria portuguesa de construção e obras públicas naquele mercado, que ainda se mantém.

A decisão de elevação das relações para o nível de Embaixada (Israel transformaria em Embaixada, logo em 1977, o Consulado-geral que mantinha em Lisboa; Portugal só em 1988 acreditaria o seu embaixador em Roma como não residente; um embaixador residente português em Tel-Aviv apenas se instalou em 1991) poderá ter sido um dos factores de conflito entre Medeiros Ferreira e Mário Soares, com a saída do primeiro de MNE, substituído interinamente pelo segundo. Com esta decisão favorável a Israel, a nossa diplomacia passou então por momentos de grande dificuldade com os países árabes, que chegou a ameaçar os nossos fornecimentos petrolíferos, tanto mais que estávamos em campanha na candidatura a um lugar de membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU. 

No ano seguinte, por insistência do governo de Tel-Aviv, aquela que julgo ser a primeira missão governamental portuguesa visitou Israel. Fui nela integrado e, dessa forma, julgo ter sido o primeiro funcionário diplomático português a deslocar-se oficialmente a Israel (curiosamente, creio que havia sido também o primeiro a ir à Líbia, em 1976, enquanto representante do MNE, se não se contar a deslocação de Manuel Sá Machado, a acompanhar Mário Soares, para coonversas exploratórias, logo em 1974, na qualidade de seu assessor diplomático). Nessa deslocação, no aeroporto de Ben Gurion, em Tel-Aviv, os vários carimbos libios no meu passaporte causaram visível perturbação e atrasaram a nossa entrada. 

Em Portugal, viviam-se os tempos do Governo PS-CDS, sendo Victor Sá Machado, deste último partido, ministro dos Negócios Estrangeiros. Antes da partida da missão, o jovem terceiro secretário de embaixada que eu era foi levado à presença do ministro, acompanhado do chefe de repartição, Queirós de Barros. Foi-me explicado que o ministro da Agricultura, o socialista Luis Saias, que eu acompanharia, tinha uma missão exclusivamente técnica e que estava, em absoluto, fora de causa assumirem-se quaisquer posições políticas, quer com impactos bilaterais, quer relativamente ao conflito do Médio Oriente. Assim se fez, com pormenores curiosos que só o tempo permitirá revelar, não obstante o contraparte do nosso governante, que nos acompanhou grande parte do tempo, o então ministro israelita da Agricultura, se chamar... Ariel Sharon! 

Como atrás se disse, a nossa Embaixada em Tel-Aviv só viria ser aberta em 1991, a tempo de poder acompanhar a nossa segunda presença no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A partir daí, as relações entraram num registo de normalidade, com Portugal a assumir sempre uma posição de grande equilíbrio que, basicamente, tentava conciliar o direito à criação de um Estado palestiniano e a necessidade de preservação de um Estado de Israel com fronteiras reconhecidas.

Em fins de 1995, teve lugar a primeira visita de um chefe de Estado português a Israel. Então já no exercício de funções políticas, acompanhei Mário Soares nessa viagem, em substituição do ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama. Era um tempo de grandes esperanças para o processo de paz no Médio Oriente, posterior aos acordos de Oslo e Washington. Mário Soares era um interlocutor respeitado pelo primeiro-ministro Yitzhak Rabin e pelo MNE Shimon Peres. Nas várias conversas que ambos tivemos com estes responsáveis israelitas, fomos estimulados a ajudar, nomeadamente no âmbito europeu, aos esforços de reconstrução económica que a Autoridade Palestiniana tinha em curso na Cisjordânia e, em especial, em Gaza. Estávamos precisamente com Yasser Arafat, líder da Autoridade Palestiniana, depois de jantar, em Gaza, na noite de 5 de Novembro de 1995, quando nos chegou a notícia do assassinato de Rabin. Com quem tínhamos almoçado.

Nada seria igual, naquela parte do mundo, depois dessa data. O processo de paz ruiu, a unidade palestiniana rompeu-se, Israel evoluiu internamente por caminhos diversos. Como hoje se vê pelas imagens de tragédia que se juntam às notícias que nos chegam.

Com este post termina este bosquejo que fiz sobre as relações entre Israel e Portugal. Admito possa ter erros e aceitá-los-ei de bom grado nos comentários. 

domingo, junho 06, 2010

Dário Castro Alves (1927 -2010)

Acabo de saber da morte, em Fortaleza, de Dário Castro Alves.

Antigo embaixador brasileiro em Portugal e, mais tarde, cônsul-geral no Porto, Dário Castro Alves era um grande amigo do nosso país, onde criou forte prestígio e deixou uma marca de profunda ligação à nossa cultura. Autor de extensa bibliografia, tinha um particular fascínio por Eça de Queirós, tendo sido convidado de honra nas comemorações dos 160 anos do nascimento do romancista, que a Embaixada portuguesa em Brasília levou a cabo em 25 de Novembro de 2005.

Em fins de 2008, organizei, também em Brasília, e em associação como Instituto Rio Branco, uma homenagem a Dário Castro Alves, que contou com testemunhos e a presença de muitos dos seus amigos, de antigo colaboradores e de simples admiradores (ver aqui e aqui). Na altura, editámos também uma sua completa biobibliografia.

Dário Castro Alves, um verdadeiro embaixador luso-brasileiro, era um amigo pessoal. Com a sua morte, desaparece uma figura marcante de uma geração brasileira que cultivava uma relação muito forte com Portugal.

Leia mais aqui e aqui.

O Hino

Agora que nos aproximamos do Dia Nacional português, vale a pena notar o triste facto de que ainda há muitos portugueses, mais em Portugal do que no estrangeiro, que não conhecem a letra do Hino Nacional. Verdade seja que o nosso hino não "ajuda" muito, pelas fórmulas arrevezadas que utiliza, tributárias da sua linguagem oitocentista, marcada pela indignação exaltada contra as perfídias britânicas do "mapa cor-de-rosa".

Aliás, e a talhe de foice, vale a pena explicar que aquele suicidário e algo masoquista "contra os canhões, marchar, marchar", presente no refrão, é uma versão retificada da letra original, onde se lia "contra os bretões, marchar, marchar" - porque o hino tinha sido construído para reagir à afronta de Londres.

E, para quantos não saibam, aqui deixo duas outras partes da antiga e longa versão oficial de "A Portuguesa", cujo conteúdo remete claramente para o espírito original anti-ultimatum:

Desfralda a invicta Bandeira,
À luz viva do teu céu!
Brade a Europa à terra inteira:
Portugal não pereceu
Beija o solo teu jucundo
O Oceano, a rugir d'amor,
E teu braço vencedor
Deu mundos novos ao Mundo!

e ainda

Saudai o Sol que desponta
Sobre um ridente porvir;
Seja o eco de uma afronta
O sinal do ressurgir.
Raios dessa aurora forte
São como beijos de mãe,
Que nos guardam, nos sustêm,
Contra as injúrias da sorte.

A primeira versão oficial do hino, que surgia no "Diário do Governo", tinha aquelas três partes, além de três repetições da estrofe (Às armas...). Por isso, não é raro ser essa a versão utilizada por uma orquestra ou banda estrangeira, na receção a um dignitário português.

Recordo-me de um embaraço por que passei, em 1980, na Noruega, aquando da visita de Estado do presidente Ramalho Eanes. Embora fosse o organizador da visita, não me passou pela cabeça verificar a partitura que ia ser usada pelos noruegueses, isto é, saber se seria a versão curta ou a longa, até porque sou "nulo" em matéria de pautas de música.

No início de um almoço oficial no Rådhus (câmara municipal) de Oslo, acabada que foi a execução da primeira parte do nosso hino (a que é vulgarmente utilizada), os portugueses presentes iniciaram uma salva de palmas, arrastando consigo os noruegueses. Com surpresa, verificaram que a orquestra "arrancou" para uma segunda parte, repetindo a primeira. Chegada ao fim desta, os presentes avançaram então, mais decididos, para nova salva de palmas. E não é que a orquestra "atacou", de novo, com mais uma repetição?!

Por jeito próprio ou como quem "connait la musique" (expressão aqui apropriada), o nosso presidente mantinha-se impávido. O resto dos portugueses mostrava alguma perplexidade, com Fernando Reino, chefe da casa civil de Belém e até há pouco embaixador em Oslo, a fuzilar-me interrogativamente com o olhar. Só sosseguei quando os músicos noruegueses se aquietaram, por fim...

Depois desta cena, e tal como tem acontecido a muitos meus colegas, já me tem sido dado ouvir esta "tripla" versão do hino pelo mundo fora. Nessas ocasiões, o único problema é quando há portugueses a cantar alto a letra do hino. Coitados, lá repetem mais duas vezes o "Heróis do mar...". É que ainda estou por encontrar alguém que saiba a versão completa.

sábado, junho 05, 2010

O Português

Em Grenoble e em Lyon concluiu-se nos últimos dois dias, um périplo que o embaixador português em França  tem vindo a fazer por todas as Secções Internacionais Portuguesas em liceus franceses, onde se ensina a língua, a cultura, a história e a geografia. Trata-se de núcleos existentes (infelizmente apenas) em algumas instituições de ensino secundário francês, que contam com a colaboração do nosso Instituto Camões e com o empenhamento dos Reitores das respetivas academias.

No diálogo estabelecido com os responsáveis dessas instituições, ficou-me patente a preocupação oficial francesa em garantir um tratamento à diversidade linguística e cultural existente neste país - pelo que, ao lado do português, encontramos o árabe, o espanhol, o italiano, o alemão, etc. Com toda a simpatia que a excelente cultura anglo-saxónica nos deve merecer, creio ser evidente o interesse, comummente partilhado por Portugal e pela França, de apostar no aprofundamento da diversidade linguística à escala europeia e global, de modo a que o inglês se não converta no "template" único, dominante de forma esmagadora na formação das novas gerações.

No simpático acolhimento que um grupo de estudantes fez, em Grenoble, ao embaixador português, teve lugar uma "viagem" pela memória dos descobrimentos, da música e literatura, para além de uma forte atenção às questões ambientais (onde o embaixador português falhou, com garbo, a dois testes a que foi sujeito...). Interessante lição  foi dada pela ligação entre o património das descobertas e o que daí resultou para o mundo, no tocante à medicina, à botânica, às artes e ao olhar moderno sobre si próprio.

Em Lyon, a poesia portuguesa esteve no centro da cuidada apresentação feita pelos alunos, com uma diversidade de escolha muito interessante de poetas. Aproveitei para assinalar que alguns dos autores escolhidos, como Ruy Cinnati e Reinaldo Ferreira, eram, eles próprios tributários de "viagens" de vida que haviam feito, no caso, respetivamente, por Timor e Moçambique. Também assisti - e colaborei brevemente - numa análise ao papel de Portugal no mundo contemporâneo, com os impactos da adesão à União Europeia em debate.

Ao encontrar, em todas as Secções Internacionais Portuguesas que tenho visitado, alunos de origens diversas - da Guiné ao Brasil, de Angola a Cabo Verde - cada vez mais me convenço de que é muito importante começar a trabalhar numa perspetiva lusófona alargada, aliando os autores de língua portuguesa de diversas origens, que reflitam as várias culturas que nela se exprimem. Qualquer "patrioteirismo" a que alguns possam ser tentados, pode ser que sossegue consciências, mas será apenas um mero adiar do futuro - repetindo, em triste registo, aquilo que, no passado, representou a "negação" lusa da realidade colonial. E, neste contexto, goste-se ou não, a utilização de uma matriz de expressão escrita tendencialmente comum - como a que decorre do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa - vai acabar por ser um instrumento indispensável a esta nova forma de olharmos um mundo que nos é comum.

Em tempo: ver aqui e aqui.

sexta-feira, junho 04, 2010

Israel e Portugal (1)

A polémica que envolve Israel, com uma forte reação internacional em face do violento ataque militar contra um grupo de barcos civis que levavam ajuda humanitária destinada aos palestinianos de Gaza, tem tido fortes repercussões em Portugal. O governo português manifestou o seu repúdio pela atitude israelita, embora alguns setores políticos internos tenham contestado a forma como esse protesto se objetivou.

Neste contexto, e porque tal não é muito conhecido e tem contornos curiosos, que ajudam a interpretar a política externa portuguesa desde os anos 50 à atualidade, gostava de deixar, em dois posts, algumas notas breves sobre a questão da relação histórica entre Portugal e Israel, essencialmente baseadas nos dados factuais referidos num artigo da minha colega Manuela Franco, cujo texto completo pode ser lido aqui.

Num segundo post, deixarei também um testemunho pessoal que talvez possa ser interessante para alguns leitores deste blogue.

Israel nasce, como país, em 1948 e, no ano seguinte, ingressa nas Nações Unidas (contrariamente a Portugal que, por veto da URSS, apenas seria admitido na ONU em 1955). Ainda nesse ano, o governo israelita anuncia a Portugal, numa carta do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, o seu ingresso na comunidade internacional, com vista a promover o respetivo reconhecimento por Lisboa. O silêncio português foi a resposta. 

Não resulta muito clara a razão deste posicionamento português, não parecendo decorrer, como alguns aventam, de uma atitude anti-semita do regime salarazista. Muito menos de um seguidismo com a atitude de Madrid. Tudo parece indicar que Portugal temia provocar uma reação de hostilidade por parte dos países árabes, num momento em que a Índia se tornava independente e começavam a aparecer nuvens de preocupação em torno do futuro das possessões portuguesas naquele espaço. Colocar todo o mundo árabe contra si, agravando o isolamento internacional do país, parecia, assim, estar na base da atitude reticente de Lisboa face a Tel-Aviv. O facto de Portugal ter então reforçado a sua presença diplomática em várias capitais árabes parece, em pleno, confirmar esta teoria.

Em 1953, perante uma insistência israelita, o MNE português opta, de novo, por não reconhecer Israel, argumentando que, se o fizesse, estaria a tomar posição num momento de forte tensão israelo-árabe. Num gesto timorato de dimensão limitada, Portugal faz entretanto chegar a Israel, em 1954, a indicação de que veria com bons olhos a abertura de uma representação consular em Lisboa e, embora não encarasse, por ora, o estabelecimento de uma sua representação similiar em Israel, pedia autorização para tal, no futuro. Com esta atitude, Portugal assumia que isso funcionaria como um reconhecimento implícito do Estado judaico. Por isso, a posição portuguesa, transmitida à Embaixada que procederá ao contacto, deixa claro que a autorização da abertura do consulado "far-se-á sem ser precedida ou seguida de qualquer forma de reconhecimento expresso, que nas circunstâncias actuais não seria conveniente". Era o mais longe que Lisboa estava então disposta a ir.

O mundo árabe, entretanto, mostrou evoluir para uma atitude favorável à autodeterminação dos povos coloniais, contrariando as "esperanças" que a ditadura portuguesa nele havia colocado, nomeadamente numa potencial contradição com os novos regimes da "África negra". Em 1959, no quadro de algumas relações económicas entretanto já existentes, Portugal e Israel subscrevem um "acordo comercial e de pagamentos". No ano anterior, havia sido dada, depois de muito tempo de espera, a acreditação para o primeiro cônsul israelita. O despacho justificativo de Salazar é exemplar de realpolitik: "Os países árabes não mudarão de posição quanto a nós seja qual fôr a decisão que tomarmos. Israel votará a favor". As "contas" na batalha das Nações Unidas, com sucessivas condenações de Portugal, estavam a ser, desde 1955, a grande preocupação portuguesa.

Israel tem, entretanto, uma surpreendente evolução de posição face à política colonial portuguesa, menos por um desagrado com as reticências persistentes de Lisboa e, muito mais, determinada por uma tentativa de "cavalgar" politicamente algumas independências africanas, ao que parece num acordo implícito com Washington. Com o início das guerras coloniais nas possessões africanas de Portugal, essa posição vai-se agravando. Em 1967, Lisboa protestou informalmente pela atribuição por Tel-Aviv de bolsas de estudos a líderes independentistas das colónias portuguesas e chamou a atenção para o facto de armas israelitas terem aparecido em posse da Frelimo. Nesse contacto, Portugal invocou mesmo a proteção dada a judeus durante a 2ª guerra mundial, como forma de melhor denunciar a "ingratidão" de Israel. Afinal, as ações de Aristides Sousa Mendes iriam acabar por ter alguma utilidade, para o tardio argumentário salazarista...

Esta atitude negativa de Israel face à política colonial portuguesa enfureceu Lisboa, que passou a abster-se, nas Nações Unidas, na votação de questões israelo-árabes, talvez na ingénua esperança de atenuar a hostilidade deste últimos. Com a utilização da base das Lages, pelos EUA, para abastecimento de Israel, durante a guerra do Yon Kypur, em 1973, Portugal acabou por suscitar a aberta indignação de todo o mundo árabe, que decretou um embargo petrolífero ao nosso país. Atitude, aliás, injusta. Portugal não fez isso para ajudar Israel: fora submetido a um humilhante diktat americano, a que não conseguira furtar-se.

O 25 de Abril chegou, entretanto. Num post futuro falaremos de como as coisas evoluíram a partir de então. 

Aznavour

Há minutos, a jornalista do "Le Progrès", de Lyon, que vinha conversar comigo ao hotel, ao deparar, no "hall", com Charles Aznavour, que saía, fez questão de fotografar os "dois embaixadores em Lyon", como nos disse ir intitular a notícia. É que Aznavour é hoje embaixador da Arménia junto das instituições internacionais em Genebra, como o carro com matrícula diplomática, que ele próprio conduz, não obstante os seus 86 anos, bem atesta.

Aznavour revelou-se uma figura simpática e loquaz. Explicou-me que a primeira vez que usara o seu recente título de embaixador fora numa visita à nossa Embaixada em Bangkok, julgo que há cerca de um ano, por gentileza do meu colega local. Elogiou a Feitoria onde a nossa missão diplomática está instalada na Tailândia e não deixou de acrescentar: "Vocês foram muito longe...". Atravessou-me a tentação de responder: "Mas já voltámos..." 

Jean Moulin

Ontem à tarde, numa conversa em Lyon com o "prefet" da região Rhône-Alpes, Jacques Géraud, falámos de Jean Moulin, o corajoso líder da Resistência francesa à ocupação nazi, durante a 2ª guerra mundial. A propósito da sua clássica fotografia que acima se reproduz, o meu interlocutor revelou-me que o cachecol nela exibido por Moulin se destinava-se a disfarçar a grande cicatriz provocada por uma tentativa de suicídio, evitada pelos alemães durante a sua prisão.

Jean Moulin viria a fugir da prisão para, tempos mais tarde, ser de novo capturado em Lyon, num ato de traição. Violentamente torturado, viria a morrer de maus tratos às mãos de Klaus Barbie , o "carniceiro de Lyon", também responsável por uma imensidão de mortes, quase todas precedidas de extrema violência. No final da guerra, Klaus Barbie foi recrutado pelos serviços secretos americanos, que utilizaram a sua "expertise" anti-comunista, tendo-se posteriormente refugiado na Bolívia. Em 1983, foi extraditado para França, onde foi julgado e ficou preso, em Lyon, até à morte.

Há uns anos, em Londres, um grande empresário português asseverava a pés juntos, num jantar, perante quem quisesse ouvi-lo, que tinha a certeza que Klaus Barbie era o nome de um boneco que acompanhava a Barbie...

quinta-feira, junho 03, 2010

UTAD

No dia 19 deste mês, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) irá eleger um novo reitor. A respetiva Comissão Eleitoral, a que presido por inerência de idênticas funções no Conselho Geral da universidade, admitiu duas candidaturas - um cidadão português e um cidadão inglês.

A circunstância de estrangeiros concorrerem a lugares de reitor de estabelecimentos de ensino superiores portugueses não é inédita. Julgo, porém, digno de particular registo que as universidades portuguesas comecem a tornar-se apelativas para académicos do exterior. Essa é a melhor prova da sua vocação para a internacionalização e um testemunho indireto do seu crescente prestígio num espaço universitário mais alargado.

A UTAD está hoje inserida num ambiente universitário português altamente competitivo, o que a obriga a fazer uma reflexão estratégica muito profunda, com vista a tentar definir os melhores caminhos para o seu futuro. A circunstância da eleição de um novo reitor ter lugar precisamente neste tempo de grande exigência acaba por constituir uma excelente oportunidade para levar a cabo um debate profundo e alargado que, partindo das propostas de ação dos candidatos a reitor, envolva todos os seus órgãos e academia em geral. Espero que a UTAD acabe por sair reforçada deste interessante período de auto-análise e que o conjunto da comunidade académica em que se insere possa vir a ficar com ideias muito mais claras sobre o que, com realismo mas também com ambição, é possível esperar da sua atividade futura.

Misericórdia de Paris

Confesso que foi para mim uma surpresa, antes de assumir funções como embaixador em França, constatar a existência de uma Santa Casa da Misericórdia em Paris. Não esperava que existisse uma Misericórdia em França, não obstante vir do Brasil, onde existem várias instituições congéneres. Vim a saber que a Misericórdia de Paris existe desde 1994, tendo sido criada sob o impulso do meu colega Tadeu Soares e que desempenha um papel muito meritório no apoio aos setores mais carenciados da nossa comunidade.

Foi à luz da valia desse trabalho já executado que não hesitei em apoiar a Misericórdia de Paris quando, há meses, nos propôs estabelecer uma parceria com a Embaixada. Em decorrência dessa articulação, tive muito prazer em apoiar a sua pretensão, positivamente acolhida, para vir a obter apoios do Estado português no contexto das atividades no Ano Europeu de Combate à Pobreza e Exclusão.

Desde há uns anos que o discurso descritivo que envolve a comunidade portuguesa em França tende a sublinhar os casos de sucesso, em matéria de integração e de percursos profissionais bem conseguidos. É natural que assim aconteça, não apenas porque essa é uma realidade evidente em muitos setores mas igualmente porque é sempre importante darmos exemplos que possam sustentar o otimismo.

Porém, ser positivo não exclui o dever de sermos realistas. E a realidade aponta para a existência de casos individuais de pobreza e de exclusão social, quer em setores mais antigos da nossa comunidade, quer em faixas etárias mais novas, atingidas pelo desemprego e pela precariedade laboral. É verdade que essas pessoas têm ao seu dispor os serviços assistenciais franceses, mas torna-se importante que saibamos ajudá-las a melhorar o acesso às ajudas e a encaminhá-las para as entidades que as possam ajudar, para além de as habilitar a um recurso aos instrumentos de apoio social que o Ministério dos Negócios Estrangeiros português também tem disponíveis.

O que a Misericórdia de Paris agora se propõe fazer é, precisamente, desenvolver um conjunto de tarefas no seio das quais se institua um "observatório" que nos ajude a desenhar um retrato mais claro e dinâmico dessas situações de desregulação individual, em ligação com as estruturas consulares, com a rede associativa portuguesa, com ONG's e outras entidades francesas, privadas ou oficiais, que operam nessa área. 

Na apresentação do projeto da Misericórdia, que teve lugar na Embaixada na passada 2ª feira, na presença de umas largas dezenas de figuras da nossa comunidade, bem como da sociedade civil e de instituições oficiais  francesas, tive oportunidade de assinalar o caráter ambicioso desta iniciativa. Sublinhei igualmente os números impressionantes e crescentes de pessoas que, por toda a Europa, mas também em França e em Portugal, vivem abaixo do limiar de pobreza, o que hoje é agravado pela crise económica que atravessamos, a qual não abre hipóteses de rápida recuperação de tais situações. E chamei a atenção, muito em particular, para o fenómeno, que é cada vez mais evidente, da chegada de novos imigrantes portugueses, fruto das dificuldades laborais no nosso país, o que constitui um facto a que temos obrigação de estar muito atentos, pelos impactos sociais que daí podem resultar.

Espero sinceramente que a Misericórdia de Paris possa, na linha da tradição antiga que consagrou o relevante papel social de instituições congéneres, reforçar cada vez mais as suas tarefas como agente prestigiado da nossa sociedade civil. Ela poderá contar sempre com o estímulo e com o apoio concreto da Embaixada para esse seu benemérito trabalho.  

quarta-feira, junho 02, 2010

Rosa Coutinho (1926-2010)

Há figuras a que a História associa sempre a polémica. O almirante Rosa Coutinho, que agora desapareceu, era uma dessas figuras.

Rosa Coutinho era uma personalidade desconhecida do país quando, na noite de 25 de Abril de 1974, apareceu na televisão como um dos membros da Junta de Salvação Nacional. Recordo-me da curiosidade com que, nessa noite, nos estúdios da RTP, os oficiais milicianos que, como eu, se encontravam atrás das câmaras, olhavam essa figura sorridente, calva e calma, que a Marinha tinha escolhido como um dos seus dois representantes.

Vim a conhecê-lo pessoalmente mais tarde, nos corredores da Junta, onde eu exercia funções de assessor. Era uma pessoa muito cordial e agradável no trato. Com a crise que sobreveio no governo-geral de Angola, logo em Agosto de 1974, Rosa Coutinho seguiu para Luanda, para substituir o general Silvino Silvério Marques. Rapidamente a sua ação passou a ser contestada por setores portugueses locais, que colaram as suas opções de governo à estratégia do MPLA, considerando-o, em muitas dessas denúncias, como uma figura próxima dos comunistas portugueses.

No ano seguinte, em 11 de Março, depois da tentativa de golpe militar de António de Spínola, recordo bem uma cena tensa que se passou no Palácio de Belém, ao princípio da noite, durante a qual Rosa Coutinho apoiou a realização da famosa "assembleia selvagem" do MFA. Na longa madrugada que se seguiria, devo reconhecer que o almirante foi das vozes mais serenas, tendo então adiantado uma explicação para a aventura spinolista, que cito de memória: "Sabíamos que estavam a preparar qualquer coisa, assustaram-se e nós ficámos à espera que saltassem. E eles saltaram". Muito do que foi o 11 de Março pode aqui encontrar uma explicação. Mais tarde, em 25 de Novembro, dizem-me que terá tido um papel apaziguador e atenuador de tensões, se bem que não fizesse segredo do lado para o qual o seu coração pendia.

Desde sempre que a internet e as caixas informáticas de comentários dos jornais estão cheias de comentários insultuosos sobre Rosa Coutinho, talvez a personalidade mais vilipendiada de todas quantos intervieram no processo de descolonização. Com efeito, ele terá sido a principal "bête noire" de quantos sairam de África, num registo de tragédia, durante esse período. Só a História poderá julgar, com serenidade, o papel do almirante Rosa Coutinho em todo o processo do 25 de Abril.

terça-feira, junho 01, 2010

Ferreira Gullar

Cheguei a uma idade em que a ignorância já se pode confessar. Até ir viver para o Brasil, desconhecia por completo a obra de Ferreira Gullar, escritor de cujo nome tinha ouvido vagamente falar, mas de quem não tinha lido uma única linha.

Foi o "londrino" Helder Macedo quem, numa noite de conversa num restaurante do Rio, me chamou a atenção para o autor de um livro com um nome bizarro, "Poema Sujo", considerando-o merecedor do prémio Camões, que nesse dia fora atribuído a um outro escritor de língua portuguesa. Por essa "dica", dias mais tarde fui à procura da sua obra e descobri uma vibrante e interessante escrita.

Para quem quiser conhecer a poesia, recomendo que comece pelos "Poemas Escolhidos". Quem pretenda inteirar-se melhor da personagem, leia o "Rabo de foguete - os anos de exílio", uma memória interessante, escrita na primeira pessoa, dos perseguidos da ditadura brasileira e dos respetivos percursos do exílio. Quem tiver curiosidade de visitar toda a sua obra, tem hoje ao dispor a imensa "Poesia completa, teatro e prosa", da Aguilar.

A Ferreira Gullar foi acaba de ser agora atribuído o prémio Camões. Parabéns pela presciência, Helder!

Outros tempos...

Por gentileza de Fernando Correia de Oliveira

segunda-feira, maio 31, 2010

Cunhal e o Protocolo (2)

A propósito da história aqui contada, há dias, sobre Álvaro Cunhal, uma amiga relatou-me uma cena passada, nos idos de 70, no Palácio da Ajuda, durante um jantar de gala, na receção de um chefe de Estado estrangeiro.

A esposa de um ministro português, senhora pouco dada ao mundo social e de um conservadorismo primário, pediu para falar com alguém responsável pela organização do jantar. A razão era simples: tinha sido colocada ao lado de Álvaro Cunhal e, sem cerimónias, adiantou que não queria comer "com um comunista ao lado" e "logo com esse homem horroroso!".

Foi explicado à senhora que as regras do protocolo eram o que eram, que o "homem horroroso" era o líder de um dos partidos com assento parlamentar e que não era viável fazer mudanças de lugares, porque isso implicaria ter de trocar outras pessoas, o que iria forçosamente gerar algum escândalo. À palavra "escândalo" - que mais tarde viria a atingir o seu marido, mas isso não faz parte desta história... -, a senhora acalmou e lá se acomodou à ideia de ter de comer "com um comunista ao lado".

No final do jantar, a diplomata cruzou-se com a senhora, ainda nos corredores da Ajuda, e inquiriu como tinha corrido o repasto. A senhora estava radiante: "Sabe? O Dr. Cunhal é simpatiquíssimo. Imagine que até conhecia os nomes das heroínas dos romances de Madame Delly!".

Permanecerá para todo o sempre em mistério a razão pela qual o líder comunista havia lido romances típicos da adolescência feminina dos anos 50 e 60. Já agora, convém dizer que a Madame Delly era o pseudónimo de dois escritores franceses.

Coincidências

Dois dias após Israel ter sido admitido como membro da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), depois de uma longa e muito contestada batalha diplomática, no termo da qual foram derrotados quantos consideraram que esse gesto era um "prémio" indevido ao seu contestado comportamento no plano internacional, o governo de Tel-Aviv levou a cabo em águas internacionais, com um elevado saldo de vítimas mortais, um ataque militar a embarcações civis que transportavam ajuda humanitária para o território da Palestina.

domingo, maio 30, 2010

"Há dias assim"

Não ouvi a canção que Portugal levou este ano ao festival da Eurovisão. Mas acho o título deliciosamente português: "Há dias assim". Mais ou menos "assim" são quase sempre os dias das nossas noites na Eurovisão...

Sou de um tempo em que o festival português da canção e, depois, o da Eurovisão, paravam o país, comigo incluído, bem entendido. Lembro-me bem de uma noite de 1967, no Porto, em que só uma réstea de bom-senso me fez optar por ir para o "galinheiro" do Palácio de Cristal, ver um Portugal-Espanha em hóquei, em vez de assistir, na sala de TV do Centro Universitário, à vitoria de "O vento mudou", de Eduardo Nascimento. No ano seguinte, colaborei com o júri que, em Vila Real ("Aqui vão os votos do júri de Vila Real: canção número 1..."), certificou a escolha de "Verão", de Carlos Mendes.  Em 1969, Simone de Oliveira quase que trasladou para a final da Eurovisão, em Madrid, a "alma" do país, com a "Desfolhada". A dimensão popular da sua recepção em Santa Apolónia derrotou a chegada do Porto de Humberto Delgado, em 1958, e estabeleceu uma fasquia a que Mário Soares não conseguiu estar à altura, quando regressou do exílio, em 1974. 

Esse foi também o início do cíclico, angustiado e também muito lusitano tempo das "vitórias morais", da denúncia das sinistras conspirações internacionais contra as nossas inspiradas obras, pela óbvia perfídia dessa Europa a que já havíamos aderido vocalmente "avant la lettre". Tempo que passou a consagrar, com a vitória interna, a saudável presença de José Carlos Ary dos Santos nestas lides musicais. A textos seus se ficaram a dever alguns dos melhores momentos do festival.

A canção vitoriosa em 1974 foi a senha da Revolução de abril, com Paulo de Carvalho a cantar "E depois do adeus". O adeus à ditadura foi, para mim, o início do adeus ao festival. Em 1975, um capitão de Abril (!) representou Portugal na Eurovisão, num escusado pleonasmo político-musical. Seguiram-se dois anos de canções militantes para, finalmente, o nosso país passar a eleger coisas com títulos tão significativos como "Dai-li, dai-li dou", "Sobe, sobe, balão sobe" ou outros com idêntica profundidade. Nuns anos, ainda houve recaídas para o cançonetismo de "mensagem", noutros, há que reconhecer, aconteceram momentos musicais com alguma graça e qualidade. Muito poucos.

A presença da canção portuguesa nos festivais da Eurovisão é, desde o primeiro dia, desde 1964, um dos raros momentos do ano em que a política externa portuguesa é assumida pela generalidade dos cidadãos do nosso país: "vamos a ver se os "nuestros hermanos" votam ou não em nós!"; "ainda estou para saber para que serve a velha Aliança? Os "bifes" deixaram-nos cair"; "espero que os nossos emigrantes ponham a França a nosso favor"; ou "e deixámos nós aqueles tipos entrar para a Europa para agora não nos darem nem um pontinho...". E só registo os comentários publicáveis, claro. João Abel Manta retratou como ninguém, em tempos de ditadura (e, julgo, teve um ridículo processo censório por isso), esse "musicopatriotismo", como a imagem acima atesta.

"Há dias assim..."? Há, são sempre assim os dias "eurovisionários" dos portugueses, os quais, como dizia o Dr. Salazar, que disso manhosamente se aproveitava, "gostam de viver habitualmente".

Douro

O mundo é pequeno: um amigo brasileiro, residente no Sri Lanka, chamou há pouco a minha atenção, aqui em Paris, para um artigo sobre o Douro, hoje publicado no "The New York Times".

É do jornal  que "subtraio" esta fotografia, que acompanha um texto interessante sobre uma das regiões que os portugueses ganhariam em conhecer melhor. As descrições do Porto também valem bem a pena. O articulista coincide comigo no fascínio pela rua das Flores. Quantos visitantes do Porto conhecem a rua das Flores?

Aqui fica o link.

sábado, maio 29, 2010

Dennis Hopper (1936-2010)

A maioria lembra o "Easy Ryder", filme que também dirigiu. Eu recordo, em especial, "O Amigo Americano" e o "Blue Velvet". Mas alguém que, em cerca de 150 filmes, esteve no "Johnny Guitar" (não me recordo de o ter visto por lá, mas as biografias assim o dizem), no "Rebeldes sem causa", no "Gigante" e no "Apocalypse Now" ficará, para sempre, na história do grande cinema.

"Blogueurs"

Foi um exercício curioso, aquele em que ontem participei: um debate na Embaixada com "blogueurs" e "blogueuses" franceses, numa iniciativa do Turismo português.

Durante mais de duas horas, cruzámos-se experiências sobre a formação e progressão dos nossos blogues e discutimos o modo como Portugal e a realidade portuguesa é percebida em França, através do olhar de "bloggers" situados em áreas tão diversas como os assuntos europeus, a literatura, a gastronomia ou os comentários de viagens

A "blogosfera" é, cada vez mais, um espaço paralelo de informação da maior importância, com o qual é vital interagir, porque atinge e mobiliza "opinion makers" em relevantes faixas etárias, profissionais e culturais. 

O nosso país, que em França vive ainda muito ligado a uma imagem caricatural de que apenas nos últimos anos se tem vindo a desprender, só tem vantagem em ver-se abordado e discutido neste diferente mundo comunicacional.

O encontro de ontem foi uma oportunidade para nos ajudar a ver Portugal  através de olhares muito diversos daqueles que fazem parte da nossa rotina tradicional de contactos. Um excelente exercício, em suma.

sexta-feira, maio 28, 2010

28 de Maio

Poucos portugueses reconhecerão a figura representada nesta fotografia. Eu diria mesmo que alguns não farão sequer ideia de quem é, mesmo que se lhes diga que o seu nome é António Maria da Silva.

Porém, neste ano em que se comemora o centenário da implantação da República e nesta data de 28 de Maio, na qual, em 1926, começou um regime ditatorial que só terminaria em 25 de Abril de 1974, importa recordar que esta personalidade era então o primeiro-ministro legítimo de Portugal e cujos poderes foram usurpados pelo golpe militar. 

António Maria da Silva (1872-1950) era engenheiro de profissão, membro do Partido Republicano Português, tendo sido uma figura proeminente da 1ª República portuguesa (1910-1926), período durante o qual exerceu diversos cargos de governo.

quinta-feira, maio 27, 2010

Cunhal e o Protocolo

Álvaro Cunhal (retratado acima pelo genial olhar fotográfico do meu amigo Alfredo Cunha) foi uma das mais controvertidas personalidades da vida contemporânea portuguesa. Secretário-geral do Partido Comunista Português durante várias décadas, projetou uma forte imagem pessoal que quase se confundia com aquela força política. A História do nosso país, no século XX, não se fará sem ele, embora muitos achem que acabará por se fazer contra ele.

A biografia de Álvaro Cunhal é objeto de uma obra, ainda inacabada, de José Pacheco Pereira - ela própria, também, um estudo com contornos polémicos, no qual Cunhal e o seu partido se recusaram a colaborar, sendo embora, na minha opinião, um documento indispensável (ia a escrever "incontornável", mas temi algumas vozes indignadas contra o vocábulo) para se entender a história política portuguesa do século XX.

Acaba agora de ser publicada uma memória sobre Álvaro Cunhal, escrita por Carlos Brito, uma das figuras marcantes do comunismo português, resistente contra a ditadura e, no período democrático, personalidade proeminente que chegou a ser candidato à presidência da República. Trata-se de um trabalho interessante, feito à luz da proximidade do autor com o líder comunista, que nos revela algumas facetas desconhecidas da sua personalidade, embora mantenha muito da tradicional reserva de quem quer, no essencial, permanecer leal àquela área política.

Vários testemunhos comprovaram, ao longo dos anos, que Cunhal, sendo embora uma figura de rutura em muitos domínios da vida política, era muito cuidadoso com as facetas exteriores da imagem do Estado, que respeitava com grande escrúpulo. Daí que as simples questões protocolares, porque as entendia com um simbolismo significativo, o preocupassem sempre.

Carlos Brito, a certo passo do seu livro, revela que, um dia, um deputado comunista, indicado para acompanhar uma visita oficial ao estrangeiro, anunciou que não ia utilizar gravata, não obstante as regras protocolares recomendarem um traje formal em certas ocasiões da deslocação. A persistente resistência do deputado fez subir o assunto a níveis mais elevados de decisão.

O deputado foi, assim, chamado a uma conversa na sede do partido. A certo passo da reunião, Cunhal entrou inopinadamente na sala e, como forma de reforçar os argumentos de quantos pretendiam demover o deputado da sua irreverente teimosia, foi pedida a opinião do secretário-geral sobre o assunto.

Depois de ouvir as "partes" e refletir sobre as regras que eram exigidas, Álvaro Cunhal fez notar que, tratando-se de um país africano, era comum, como alternativa às roupas protocolares europeias, o uso de trajes tradicionais em cerimónia oficiais. E acrescentou: "Ora nós temos trajes tradicionais muito bonitos, por exemplo, os minhotos". E logo adiantou: "O nosso camarada podia ir vestido de minhoto e evitava-se a gravata. Até podemos telefonar já aos camaradas de Viana a encomendar um fato".

O pânico terá irrompido na cara do relutante deputado, que concedeu de imediato: "Não é preciso, não é preciso, eu vou comprar a gravata".

Debate transatlântico

Voltei hoje a Nanterre, a universidade mítica do Maio 68, para inaugurar um interessante colóquio sobre os olhares cruzados da intelectualidade portuguesa e brasileira, durante o último e republicano século comum. Tive o prazer de constatar, nesta organização que muito deve ao entusiasmo do professor José Manuel Esteves, os frutos da ligação da universidade francesa à UTAD - a universidade portuguesa a cujo Conselho Geral presido.

A palestra que apresentei assentou na análise das perceções mútuas entre Portugal e o Brasil, na sua complexidade e ambiguidade, para além da almofada ritual da retórica, um bosquejo histórico  e cultural que procurei conduzir desde o final do século XVIII até aos tempos da CPLP. Com alguns exemplos, defendi a tese, que há muito alimento, de que é a África - e a relação diferente de Portugal e do Brasil com a África - uma importante chave para entender muito do que tem sido o curso das relações políticas bilaterais ao longo dos últimos dois séculos.

Saiba mais sobre este interessante colóquio aqui.

quarta-feira, maio 26, 2010

Coreias

A comunidade internacional habituou-se, de há muito, à permanência da tensão entre as duas Coreias. O profundo trauma da guerra e a ideia de que prevalece um laço afetivo indelével entre ambos os países criaram, entretanto, a perceção de que, não sendo impossível, o conflito se torna improvável. As notícias dos últimos dias não são, contudo, muito animadoras.

O mundo também se acostumou a olhar, com curiosidade, para o registo ciclotímico das reações de Pyongyang, quer em relação aos seus vizinhos do sul, quer, principalmente, face aos Estados Unidos, país com o qual, formalmente, o regime do norte teima em considerar-se em guerra.

Para alguns observadores, a chave para a atenuação das posições da Coreia do Norte reside em Moscovo ou em Pequim. Há alguns anos, dois dias de debate intenso em Seul, a convite da autoridades da Coreia do Sul, num seminário sobre "confidence and security building measures", que envolvia russos e chineses, ao tempo em que os "six parties talks" prometiam resultados, deixaram-me algumas dúvidas sobre se algum desses grandes vizinhos da Coreia do Norte tinha um "leverage" suficiente para contrariar certas da suas derivas potenciais. Há que convir, no entanto, que são os únicos que mantêm um canal de comunicação permanentemente aberto com o regime norte-coreano, descontando, por óbvias razões, alguns outros atores caricaturais da cena internacional.

De modo homólogo, não deixa de ser interessante notar que o conselheiro diplomático do então presidente da Coreia do Sul, um amigo que conhecia de Nova Iorque e que teve então a gentileza de me convidar para um almoço a dois, deixou-me evidente que havia um mundo de ambiguidades e de importantes diferenças entre as percepções de Washington e de Seul, quanto à relação desejável com a Coreia do Norte. Por curiosidade, esse amigo chama-se Ban Ki-moon e é hoje secretário-geral da ONU.

É neste quadro de influências limitadas, que não mudou muito desde então, que a tensão voltou a subir entre os dois lados do paralelo 38. Neste cenário, projetam-se agora o que parece serem novos problemas internos na liderança em Pyongyang e, naturalmente, também novas e preocupantes dimensões militares, agora já com facetas nucleares.

O prosseguimento de uma situação de "acossamento" como o que a Coreia do Norte atualmente vive, se bem que autoprovocada e inevitável pelas regras do Direito Internacional, não deixa, contudo, de constituir um enorme risco para a estabilidade e para a paz internacionais. É das regras da política que, muitas vezes, algumas aventuras externas são a forma de procurar "dar a volta" a crises internas. E, neste caso, o mundo está a lidar com um regime em que o processo decisório passa por caminhos insondáveis.

Por essa razão, porque o que está em causa na região é muito sério, tudo deve ser tentado para baixar o nível de tensão existente, quanto mais não seja para se ganhar algum tempo. Assim, qualquer que seja a sua real capacidade de influência, compete em especial à Rússia e à China esgotarem todas as cartas de que possam dispor. Porquê? Porque têm responsabilidades particulares à escala global, porque são vizinhos e porque a nenhum deles seria conveniente o desencadear de um conflito em grande escala numa área estratégica próxima, o qual se se sabe como pode começar, mas não se tem ideia de como poderá acabar.

Livros

Associo-me com gosto a esta iniciativa e volto a recordar isto.

Missa

A culpa era dela, diziam os próximos da casa. Aquela embaixatriz deixava o marido tantas vezes só, naquele recôndito posto, que lhe dava fortes oportunidades para exercitar o seu consabido tropismo para escapadelas românticas. Nos últimos tempos, a mais persistente amiga do embaixador era a Cláudia. Todo o corpo diplomático conhecia a sua aventura com essa mulher de um empresário local, desde há alguns anos preso por corrupção. Com a embaixatriz ausente, a Cláudia, "viúva de vivo", era presença regular ao lado do embaixador, mesmo em locais públicos. "Uma boa amiga", dizia ele. Ninguém duvidava.

A Cláudia era, assim, como que uma figura quase natural no panorama daquela Embaixada. Mesmo durante as raras aparições da embaixatriz pelo posto, ela sempre surgia por lá, frequentando recepções e outras ocasiões sociais. Por isso, durante a visita que o seu  ministro dos Negócios Estrangeiros efetuou àquele país, ninguém estranhou que o embaixador a incluísse entre os convidados para o jantar em que reuniu alguns amigos mais chegados, juntamente com autoridades locais. A única estranheza residia na aparente inocência da embaixatriz, que, uma vez mais, admitia Cláudia, sem reticências visíveis, nesse círculo restrito de convidados. Coitada, não via nada...

O jantar com o ministro visitante corria normalmente. O embaixador entretinha o repasto com algumas historietas. A certo momento, lembrou, saudoso, o desaparecimento de uma figura tutelar da pequena comunidade que o seu país tinha no local. Sublinhou o quanto a sua falta fora sentida, o modo como as próprias autoridades tinham honrado o seu funeral: "Estava toda a gente na missa. Eu fui com a Cláudia...". Do fundo da mesa, Cláudia anuiu, discreta, com a cabeça.

Nesse instante, a embaixatriz gelou o ambiente: "Com a Cláudia? Eu já tinha ouvido que você fazia muitas coisas com a Cláudia, mas ir à missa nunca!". O jantar, praticamente, acabou por ali.

terça-feira, maio 25, 2010

Artistas portugueses em França

Tenho pena de não sermos nós a organizar esta exposição aqui em Paris, mas quero saudar vivamente a iniciativa da Câmara Municipal da Amadora ao apresentar, na galeria Artur Bual, até 13 de Junho, uma mostra de "Artistas Portugueses em França".

Aí fica a impressionante lista de artistas representados: Alfredo Margarido, Alvess, António Branquinho Pequeno, António Dacosta, Augusto Barros, Baptista Antunes, Benjamin Marques, Bertino, Cargaleiro, Costa Camelo, D’Assumpção, Darocha, Dimas Macedo, Eduardo Luiz, Gonçalo Duarte, Jacinto Luís, João Moniz, João Vieira, José David, Júlio Pomar, Isabel Meyrelles, Luís Rodrigues, Manuel Amorim, Paula Liberato, Pedro Avelar, Rodrigo Ferreira, Sónia Prieto e Vieira da Silva.

Parabéns por esta magnífica iniciativa. Para a ilustrar, deixo a imagem de uma obra de um dos artistas que figuram na exposição, Dimas Macedo, que há meses desapareceu.

Cabo Verde

Há semanas, andou por Portugal um (felizmente curto) debate sobre Cabo Verde, sobre se aquela magnífica república africana não estaria melhor se não se tivesse tornado independente e houvesse optado por se manter unida a Portugal. Uma polémica mais do que escusada, que a História, a seu tempo, já tinha encerrado.

Essa mesma História não se faz de "ses", mas posso perceber que, se acaso as coisas se tivessem encaminhado para a criação duma hipotética "região autónoma" caboverdiana, na noite de ontem não teríamos sofrido a humilhação futebolística de ver uma seleção carregada de estrelas, pagas a peso de muitos milhões de euros, mostrar-se incapaz de derrotar um valoroso mas frágil "onze" daquelas ilhas africanas.

Mas, afinal, a confusão entre os dois países continua a existir noutros locais. Veja-se esta notícia, num jornal suíço, onde se fala dos "portugueses de Cabo Verde"...

segunda-feira, maio 24, 2010

Aristides Sousa Mendes

Foi há dias lançado na nossa Embaixada, mas só estará acessível ao público no dia 3 de  junho este novo livro de Eric Lebreton, da editoria Le Cherche Midi. Trata-se de um relato muito bem escrito e documentado da odisseia do Cônsul português em Bordéus que, durante a Segunda Guerra Mundial e contra a vontade expressa do governo português de então, concedeu dezenas de milhar de vistos, para entrada em Portugal, a outros tantos refugiados, provavelmente salvando-lhes a vida que estava ameaçada pela ocupação nazi da França. Aristides Sousa Mendes foi demitido das suas funções e morreu na miséria. 

Hoje, a sua ação é cada vez mais reconhecida pela comunidade internacional, como o prefácio de Simone Veil a este livro assinala. Em Portugal, depois de anos de esquecimento, o feito de Sousa Mendes tem vindo a ser destacado e a merecer crescente acolhimento no âmbito da nossa diplomacia. 

Desde 1995, a  Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses atribui o "prémio Aristides Sousa Mendes", para trabalhos na área histórico-diplomática.

Trigo duro

Lá está escrito, na placa de identificação, no último canteiro junto ao Rond Point: "trigo duro". Nestes dias, em que o feriado de hoje se soma ao fim-de-semana, os Champs Elysées, recuperando a sua vocação natural de "campos", enchem-se de plantas, transformando-se numa espécie de esplanada agrícola, uma imagem muito curiosa da França rural. E lá está o "trigo duro".

Entre 1997 e 1999, Portugal esteve envolvido numa complexa negociação no seio da União Europeia, para definir os apoios comunitários de que o país poderia beneficiar no período 2000-2006. Entre eles, estavam algumas ajudas agrícolas.

A certa passo da negociação, dei-me conta que o pessoal da Agricultura colocava sempre no seu "pacote", para além de questões na área da pecuária e dos produtos leiteiros, um pedido de extensão da quota para o cultivo do trigo duro. Assim, e durante meses, levámos nas nossas listas "reivindicativas", para os encontros bilaterais e com a Comissão Europeia, um pedido relativo ao trigo duro.

Já na fase final da negociação, tive que ir a Bonn, duas vezes na mesma semana, para ajudar a convencer os alemães, que tinham a presidência rotativa da União Europeia, da bondade e importância dos nossos pedidos. Era um tempo de transição, em que o SPD de Gerhard Schroeder acabara de chegar ao poder, aliado aos Verdes de Joschka Fischer, e a falta de "afinação" da nova aliança refletia-se de forma nem sempre favorável para nós, no tratamente de alguns dossiês. Por isso, tínhamos de ser uns "chatos", repetir as mensagens, dramatizar algumas situações. Na cidade onde então (ainda) funcionava a administração central alemã, passei várias horas a trabalhar no ministério dos Negócios Estrangeiros - o competente Auswartiges Amt, também conhecido por AA, dirigido por Fischer - e na chancelaria federal, com assessores de Schroeder. 

A jornada da segunda deslocação já ia longa, mas o nosso embaixador tinha combinado um encontro com jornalistas portugueses, na sua residência, para fazer o saldo possível desses contactos. Embora eu não estivesse em condições de poder revelar muito, lá expliquei as nossas principais preocupações. A certa altura, a título de exemplo, enfatizei a importância que prestavamos à autorização de uma quota maior para a produção de trigo duro. Foi então que uma jornalista me perguntou: "Mas que diabo é isso do trigo duro? Há trigo mole? Porque pedem quota para o trigo duro e não para outras variedades de trigo?".

Recordo-me que "bloqueei", por completo. A minha cultura tipicamente urbana, ou melhor, a minha falta de cultura rural impedia-me, em absoluto, de dizer fosse o que fosse sobre essa coisa que era o trigo duro. Nesse instante, devo ter-me dado conta de que andara meses a defender a importância para Portugal de um produto que não sabia minimamente o que era.  Eu era um negociador político, não um técnico, nunca me tinha passado pela cabeça aprofundar, nesse como em outros temas, a sua especificidade, até porque os meus interlocutores, também políticos, funcionavam num registo perfeitamente idêntico. Presumo que "meti os pés pelas mãos", dando uma explicação qualquer, que deve ter sido suficientemente habilidosa, porque me não vi ridicularizado na imprensa, do dia seguinte. 

Com certeza que já devo ter visto muitas vezes, pelos campos, muitas plantações de trigo duro. Mas só hoje, na realidade, liguei o nome à planta. E logo nos Champs Elysées...

Artur Agostinho

Há algumas poucas pessoas que atravessam gerações. Artur Agostinho, que acabo de ver na televisão, há minutos, a receber um "Globo de Ouro", é uma dessas figuras. 

Artur Agostinho parece estar conosco desde sempre. Lembro-me dele no "Leão da Estrela" (sempre Leão!) com António Silva, dos clássicos relatos de futebol na Emissora Nacional com Nuno Brás ("Bom dia, boa tarde ou boa noite, conforme a hora e o local onde nos estiverem a escutar" ou "E passo às Antas! Alô Nuno!"), da voz que, do pavilhão de hóquei de Montreux, nos fazia "ver" os golos de Jesus Correia e Correia dos Santos, do relato épico da chegada do "Santa Maria" ao Recife (lembro-me, muito bem, dessa noite de 1961), de como interrogava com graça no "Quem sabe. sabe!", ao lado de Gina Esteves, de representar, também nos primórdios da RTP, o divertido barbeiro sr. Gaspar, com Camilo de Oliveira. Pelo caminho foi um ativo jornalista desportivo e profissional da publicidade, além de outras atividades em que se envolveu. 

A Revolução tratou-o muito mal, caricaturou-o como imagem do regime caído no 25 de Abril, inventou-lhe cumplicidades e obrigou-o a emigrar. Deixou então escrita, em páginas que revelavam uma pessoa ferida, essa sua natural acrimónia com um certo Portugal. Mas soube "dar a volta". Reapareceu na vida portuguesa, andou pelo teatro, fez figuras patriarcais em telenovelas, para além de outras incursões públicas que devo ter perdido, por estar ausente do país. O sorriso de Artur Agostinho, que conhecemos desde os tempos das anedotas da rádio e da televisão, é hoje um valor estimável do nosso património de memória afetiva.

Não somos suficientemente ricos em personalidades públicas para que nos possamos dar ao luxo de não acarinhar figuras como Artur Agostinho.

Em tempo: na cerimónia, foi prestada também uma homenagem especial a Raul Solnado. Com o tempo, nós, os amigos do Raul, sentimos uma crescente tristeza, saudosa da sua alegria.

sábado, maio 22, 2010

No Congo

O nosso embaixador dormitava, no avião que o conduzia à cidade onde o presidente daquela república africana o receberia, para a apresentação de credenciais.

Estava-se nos anos 80 do século passado. Pela prática local, os novos embaixadores estrangeiros eram transportados, em avião do Estado, numa viagem de largas centenas de quilómetros, acompanhados do ministro dos Negócios Estrangeiros e de outros titulares elevados na diplomacia local. Isso acontecia porque o chefe de Estado desse país fazia questão de utilizar a sua cidade natal para organizar os atos de entrada formal em funções dos representantes diplomáticos. 

A certa altura, durante a viagem, o embaixador português acordou com uma sonora gargalhada, atrás de si. Era o ministro dos Negócios Estrangeiros, perdido de riso com algo que estava a ler. O nosso diplomata ainda resistiu, por algum tempo, à curiosidade, até porque ainda não tinha confiança com o governante que lhe permitisse, com facilidade, perguntar a razão dessa galhofa. Mas, minutos volvidos, porque a risada continuava, e "como quem não quer a coisa", olhou para trás e identificou o livro que tanto divertia o Ministro: "Tintin au Congo".

Nos tempos de hoje, em que esta obra de banda desenhada de Hergé, já muito antiga (1930/1931), parece votada a entrar no "índex" de algumas instituições culturais, seguindo as sisudas regras do "politicamente correto" que por aí imperam, não deixa de ser irónico que um ministro africano, negro, tenha saudavelmente mostrado como é possível achar divertida uma visão preconceituosa do mundo africano. É que o governante africano - repito, negro - tinha a consciência objetiva de que esse álbum devia, como deve, ser lido no contexto histórico em que foi elaborado.

Às vezes, tenho a sensação de que os zelosos censores contemporâneos parece quererem ser "mais papistas que o Papa". 

O novo embaixador americano...

... em Portugal, segundo o Inteligência Artificial.