quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Botul e Crabtree

A vida intelectual francesa tem andado divertida com a polémica em torno de Jean-Baptiste Botul. Na mais recente obra do filósofo Bernard-Henry Lévy, "De la Guerre en Philosophie", o autor cita, a certo passo, as conferências proferidas por aquela figura aos neokantianos do Paraguai, a seguir à Segunda Guerra Mundial. Lévy já havia usado excertos de Botul numa conferência na Ecole normale supérieure, em 2009.

O facto é que Botul é uma figura inventada, criada em 1995 por um jornalista do satírico Canard Enchainé. O filósofo caiu na esparrela e agora, mais do que das 1340 páginas do livro, só se fala de Botul. Conviremos que é uma grande ingenuidade acreditar na existência de uma massa crítica de neokantianos no Paraguai! Pensando melhor: talvez houvesse alguns, entre refugiados centro-europeus da época...

Vem esta evocação a propósito - ou a despropósito - de um jantar que hoje terá lugar no University College, em Londres, reunindo os cultores da memória de Joseph Crabtree. Desde 1954, existe na capital britânica a Crabtree Foundation,  que congrega um grupo de cerca de 400 cidadãos que, uma vez por ano, na terceira quarta-feira de Fevereiro, se reúnem, num solene jantar de "smoking", para ouvir um deles falar de um dos diversíssimos aspetos das extensas vida e obra de Crabtree.

Segundo os anais, Crabtree viveu exatamente um século - de 1754 a 1854. O seu percurso é o de um personagem quase renascentista, tendo sido escritor, viajante, político e uma multiplicidade de coisas mais, como os tempos recomendavam. Poemas por si assinados apareceram publicados em antologias de poesia inglesa. A admiração por este destino de eleição levou à gestação de um verdadeiro culto intelectual, a que eu próprio acabei por não ser insensível. Desde 1992, passei a ser um dos "scholars" estrangeiros da Crabtree Foundation, para onde entrei então pela mão do Bartolomeu Cid dos Santos, com quem lancei as bases, com o Helder Macedo e o Luis de Sousa Rebelo, do "Portuguese chapter", que, há uns anos, realizou no Hotel Lawrence, em Sintra, um encontro dedicado a "Crabtree e Byron". De Lisboa, Nova Iorque, Viena e até de Brasília,  tenho procurado deslocar-me, com regularidade, aos jantares anuais em Londres. No ano passado, fui aqui de Paris. Hoje, só o não faço por total impossibilidade de agenda. Crabtree - "the great Man", como é saudado no brinde inicial, que anualmente é feito em frente do seu retrato (na imagem) - e a sua fantástica obra merecem-no bem.

O leitor, menos familiarizado com estas coisas, talvez ainda não conheça Joseph Crabtree. Por isso, se estiver interessado, pode ler as "The Crabtree Orations", vol I (1954-1994) e vol II (1995-2004), ed. Brian Bennett & Negley Harte, The Crabtree Foundation, London, 1997 e 2004. Um pequeno, quiçá despiciendo, pormenor, que talvez me tenha escapado de referir: Joseph Crabtree nunca existiu. A sua vida e obra têm sido criadas pela conferências que sobre ele se produzem.


Em tempo: sobre este assunto, ler a crónica de Ferreira Fernandes no Diário de Notícias sob o título "Da mentira como obra de arte".

terça-feira, fevereiro 16, 2010

Verificação de palavras

Dado que este blogue tem sido objeto de ataques de spam (alguma vez havia de ser...), peço aos leitores que, pelo menos por algum tempo, tenham a paciência de preencher a irritante identificação de letras antes de publicarem os seus comentários.

Ídolos

Sou geralmente muito cético em relação à valia dos programas de televisão através dos quais emergem novas "estrelas" da música. A experiência mostra que, com escassíssimas excepções, esses jovens ídolos acabam por constatar que a vida na música profissional é muito mais incerta e precária do que o sonho que alimentaram e pelo qual muitos abandonaram, entretanto, os estudos.

Porque o último "ídolo" eleito, Filipe Pinto, é um estudante de engenharia da UTAD, a universidade a cujo Conselho Geral presido, faço uma pausa no meu ceticismo e aqui lhe deixo um sincero voto de grande sucesso. 

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

Vitor Constâncio

Vitor Constâncio acaba de ser escolhido para vice-presidente do Banco Central Europeu. 

Esta é uma nomeação que começa por honrar o próprio, porque representa o reconhecimento internacional do seu elevado prestígio e das suas qualificações. 

Mas esta ascensão de Vitor Constâncio é, do mesmo modo, algo de que Portugal se deve orgulhar, por ver um seu antigo ministro das Finanças e governador do seu banco central selecionado entre diversas personalidades da "fina flor" da banca europeia, para aquele que é o "board" decisivo para a gestão da moeda única.

Fugindo um pouco a regras que impus a mim mesmo neste blogue, devo dizer que acho tristes, mesquinhos, lamentáveis e sectários alguns comentários negativos que se ouviram, e ouvem, na pátria de Vitor Constâncio, tanto agora como no período que antecedeu esta sua eleição. Como já achei o mesmo no tocante à nomeação de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia, não obstante a aberta posição contrária de alguns amigos meus. 

Julgo que não será por acaso que a última palavra do poema que melhor nos caracteriza, Os Lusíadas, é "inveja".

OqueStrada

Por vezes, há novas sonoridades musicais portuguesas que a vida no estrangeiro só nos permite conhecer com algum atraso. 

Tinham-me falado, já há meses, nos OqueStrada, um grupo que pratica uma música com uma curiosa mescla de influências. 

Numa saltada a Lisboa, procurei o seu disco. Estava esgotado na Fnac do Chiado e só o obtive no El Corte Ingles.

Valeu bem a pena. Conheçam-nos aqui.

domingo, fevereiro 14, 2010

Grécia

A resposta europeia à crise grega, assumida no último Conselho Europeu, deve ser lida como uma primeira tentativa no sentido de acalmar os mercados e procurar testar até que ponto estes são, ou não, sensíveis a uma manifestação de solidariedade política dos parceiros, a qual, por ora, tem muito de retórica. É por esta razão que só os próximos dias poderão dizer se o PM grego Georgios Papandreou estava certo quando a qualificou como uma reação "tímida".

A Europa do euro cedo percebeu que a crise grega, tendo em si dimensões nacionais muito específicas, se pode transformar numa grave "infeção" da zona da moeda comum. E esse é um cenário que não interessa a ninguém - a começar na Alemanha e a acabar em Portugal.

A Alemanha não prescindiu do marco para ter de viver com uma moeda instável. Os fantasmas dos tempos de Weimar nunca desapareceram em Berlim. Quando o ministro dos Finanças alemão, Theo Weigel, impôs, nos idos de 1997, o seu discutível pacote de "critérios de convergência", o objetivo era, precisamente, "blindar" a nova moeda do potencial laxismo de países como a Grécia ou Portugal. A suprema ironia foi que, anos depois, a Alemanha e a França iriam estar entre os primeiros países a ultrapassar essas mesmas metas quantitativas...

Para um país como Portugal, a crise grega, bem como o modo como a ela a Europa reagir, não é de todo indiferente. É que sendo a Grécia, neste conjuntura, o elo mais fraco do tecido monetário europeu, com indicadores bem mais gravosos que os nossos, a verdade é que, num cenário piorado de crise, Portugal surgirá inevitavelmente na linha de fogo, como um dos alvos seguintes. Por isso, e mesmo que não houvesse outras razões - e elas existem, no plano político e estratégico -, a resolução favorável do problema grego é-nos muito importante.

Comecei por dizer que à eventualmente "tímida" atitude europeia do último Conselho Europeu vão seguir-se, se necessário for, outras medidas. Por isso, e por ora, estamos perante um mero "deitar o barro à parede", para ver se as coisas podem ficar por aqui. É que a fragilidade do caso grego não interessa a ninguém e os ministros das Finanças do Eurogrupo sabem que têm ao seu dispor algumas outras armas para reagir, se acaso, como muitos receiam, os mercados se não contentarem com o discurso político que há dias saiu de Bruxelas.

É no quadro destas novas medidas, que podem vir a tornar-se necessárias, que tem condições de germinar uma nova doutrina para a gestão económica da Europa, para a criação de um "governo económico europeu" que alguns líderes reclamam, por ora ainda sob forte ceticismo da Alemanha.

Um país como Portugal tem todo o interesse em ver esse projeto florescer. De certo modo, ele acabaria por ser um movimento compensatório daquilo que parece desenhar-se como o enfraquecimento da Europa comunitária, isto é, de um projeto que tínhamos por muito favorável, com a Comissão Europeia no seu centro propulsor. Se a "outra" Europa que o Tratado de Lisboa parece consagrar, marcada por um forte pendor intergovernamental, conseguir gerar um tecido comum mais sólido, em matéria de políticas económico-financeiras, talvez alguns tenham de rever algumas leituras recentes, e menos favoráveis, sobre os caminhos por onde a União Europeia atualmente anda. No que me toca, gostaria muito de encontrar razões para o fazer.

Imprensa lusa

É um quiosque na avenue Friedland, junto à Étoile, no topo dos Champs Elysées, bem conhecido dos portugueses que vêm a Paris. Durante anos, em passagens episódicas, era lá que me abastecia de imprensa portuguesa, muito embora os preços fossem, já então, muito elevados. Desde que vivo em Paris, compro sempre aí os nossos semanários.

Os donos do quiosque são um casal bem disposto, que anos de contacto com clientes portugueses já aculturaram, arriscando mesmo algumas palavras na nossa língua, quando se torna necessário sair de algum beco de incompreensão.

Todos os dias, a partir de quatro e meia da tarde, se os aviões não se atrasarem, por lá chegam os pacotes da nossa imprensa. À volta do quiosque, numa cavaqueira que tem como pretexto a espera pelos jornais, está quase sempre, desde há muitos anos, um grupo de mais de uma dezena de portugueses. Para eles, a prioridade são "A Bola", o "Record" e  "O Jogo", como não podia deixar de ser. E alguns jornais diários, em especial daquilo a que os ingleses chamam "popular press". A política doméstica não parece mobilizá-los muito, pelo menos a julgar pela relativa indiferença com que sempre os vejo olharem para o "Expresso", "O Sol", a "Sábado" ou a "Visão".

Este já clássico ponto de encontro lusitano nos Champs Elysées - sempre só homens, claro! - é, as mais das vezes, marcado pelos debates acesos sobre futebol. O forte léxico utilizado nalgumas das conversas convoca um conjunto de expressões de raíz bem popular, coloridos e sonoros plebeísmos que trazem à memória o ambiente das aldeias portuguesas, com os falares diferentes a identificarem bem as regiões de origem. São gente simples, muitos já reformados, que gozam agora as horas livres que justamente ganharam, depois de uma vida dura de trabalho em França.

Liga de Paris

Perseguidos pela ditadura militar, alguns dirigentes republicanos portugueses exilaram-se em Paris, no final dos anos 20 do século passado. Aqui formaram a Liga de Defesa da República, vulgarmente conhecida como a Liga de Paris, de que uma das principais figuras foi Afonso Costa (na imagem).

Neste ano em que se comemora o centenário da República, convidei o professor Fernando Rosas, catedrático da Universidade Nova de Lisboa e diretor do seu Instituto de História Contemporânea, a organizar, na Embaixada em Paris, um colóquio sobre a Liga de Paris. Nomes como os professores Luís Farinha, Cristina Clímaco e Yves Leonard apresentarão também comunicações.

O colóquio terá lugar no dia 14 de Maio. Porque os lugares são limitados, os pedidos de acesso devem ser dirigidos à Embaixada de Portugal em Paris, pelo e-mail  diffusion.ambportparis@gmail.com ou através do espaço de comentários deste post.

sábado, fevereiro 13, 2010

Disneylândia

Portugal, Natal de 2009. Perguntou-me onde eu vivia. Disse-lhe e, por reflexo natural, inquiri: "Já esteve em Paris?". A resposta: "Não. Passei lá por perto um vez, "muito de raspão", na ida de dois dias, com o meu filho, à Disneylândia."

Um destes dias, vou mesmo à Disneylândia.

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Parlamentos

O Parlamento Europeu votou uma resolução que rejeitou  uma decisão dos 27 Estados membros da União Europeia que permitia aos EUA terem acesso aos dados bancários dos cidadãos europeus e que era destinada a reforçar a luta contra o terrorismo.

Para os defensores da privacidade, trata-se de uma vitória. Para quantos receiam as facilidades que possam ser concedidas às movimentações terroristas, tratar-se-á de uma derrota. 

O tema é  complexo e sério. Para o que aqui importa, apenas gostava de notar que, por uma vez, os Estados Unidos passam a ter de ouvir, da parte da União Europeia, uma resposta semelhante àquela que, desde há décadas, as diferentes administrações de Washington dão aos seus interlocutores externos, aquando de certos compromissos que assumem no plano internacional: "Nós aprovamos, mas falta agora o Congresso concordar". E, muitas vezes, o Congresso não concordou com o que o presidente americano subscreveu, como foi o caso do Acordo de Quioto.

A força do Parlamento Europeu - uma instituição que não corre o risco de ser dissolvida, a meio dos seus mandatos de cinco anos, e que ganhou, com o Tratado de Lisboa, fortes e acrescidos poderes - constitui um dado muito importante, e por ora não muito bem medido, nas novas equações europeias de poder. Casos como este vão, com certeza, tornar essa avaliação mais urgente e conduzir também, com mais rapidez, ao início desse interessante  tema de discussão que é o equilíbrio das suas competências com as dos parlamentos nacionais. Quem pensava que o debate interinstitucional europeu era coisa do passado pode estar certo que se enganou.

Diplomacia

A França e a Irlanda disputam amanhã, para o torneio da Seis Nações em râguebi, um importante jogo. Na memória dos confrontos desportivos bilaterais permanece, contudo, o polémico França-Irlanda em futebol, de há meses, que ditou a qualificação francesa e a exclusão irlandesa para o mundial da África do Sul, depois de uma escandalosa falta não punida. 

Hoje, antes de um almoço de trabalho, o diretor político do MNE francês comentava para o embaixador irlandês: "Estou certo que vai ser um grande jogo". Ao que o meu colega irlandês retorquiu: "E, desta vez, podem estar seguros de que não protestaremos se jogarem com a mão..."

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Conselho Europeu

Há pouco, foi divulgado que o presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, propôs que os líderes europeus passem a reunir-se uma vez por mês. Percebe-se o interesse de Van Rompuy nesta proposta, mas confesso que não acredito na sua exequibilidade.

A União Europeia, que já é uma instituição marcada por uma "reunionite" aguda e por alguma "summit fatigue", não tem condições para se transformar numa espécie de governo europeu, com encontros regulares. É fácil a Van Rompuy ir de Bruxelas... a Bruxelas. Porém, obrigar, todos os meses, primeiro-ministros da Estónia, de Chipre ou de Portugal a efetuarem longas viagens aéreas de ida-e-volta, para um encontro de escassas horas, é uma ideia que põe à prova a racionalidade da vida da União Europeia. Ou a sua irracionalidade. 

Lauro Moreira

Chama-se Lauro Moreira. Foi, até há dias, o embaixador brasileiro junto da CPLP.

Há três anos, quando foi para Lisboa, vaticinei, junto de muitos amigos portugueses, que a sua presença entre nós iria ser um sucesso. Enganei-me: foi um imenso sucesso. 

O Lauro é uma grande figura da cultura, um diplomata do afeto (agora, de vez, sem "c"), que soube, como ninguém, trazer o Brasil para a CPLP - e a CPLP nunca será nada sem o Brasil! Acabou agora o seu percurso português, mas ele sabe que "ficou" por Portugal. E, uma vez mais, provou-se que há diplomatas que fazem a diferença.

Um abraço fraterno ao Lauro e à Liana.

Tascas & restaurantes

O surgimento recente, em Lisboa, de algumas "tascas" da moda, com petiscos a preços relativamente moderados, sob a responsabilidade de consagrados chefs de cozinha, trouxe-me à ideia um "princípio" que pode ter alguma validade: em tempo de "vacas gordas", algumas tascas sobem de ambição e transformam-se em restaurantes; em dias de crise, os restaurantes percebem os sinais do tempo e optam por "evoluir" para tascas...

Será assim?

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Artigo

Publico hoje diário económico francês "La Tribune" um artigo intitulado "La dette, le Sud et les idées reçues", cujo texto completo pode ser lido aqui.

Uma versão portuguesa do artigo pode ser lida aqui

Sobre o assunto, pode ler também o Expresso on-line.

O chefe

                             
 
O Miranda era um "velho primeiro-secretário". Este conceito "de corredor", por esses anos 70, abrangia quantos se eternizavam na categoria que antecedia a ascensão a conselheiro - a partir da qual, à época, se podiam chefiar missões diplomáticas "com credenciais de embaixador". Porém, o concurso para conselheiro era muito limitado, o que criara uma multidão de "velhos primeiros-secretários".

O nosso Miranda tinha vindo da América Latina, por onde andara em mais do que um posto. Essa era uma zona geográfica em que o regime anterior apostara bastante, por ser terreno fértil para colheita de apoios para a impopular política colonial. Contudo, na hierarquia psicológica dos postos que a carreira alimentava, o continente latino-americano, com exceção do Brasil, não fazia parte dos destinos profissionais de maior prestígio, o que também marcara o percurso do Miranda, que agora fora parar à nossa Repartição.

A Repartição tinha um chefe e, abaixo dele, não havia qualquer hierarquia formal, exceto a antiguidade. E nesta, por razão óbvia, o Miranda imperava sobre nós, funcionários que nunca tinham sido colocados no estrangeiro. Por isso, partindo o chefe de férias, o Miranda assumia a direção da Repartição. E assim aconteceu, num certo dia.

Na manhã seguinte, ao chegar à minha secretária, dou de caras com uma pilha de documentos "para dar andamento", muito superior à média habitual. Fui ver e dei-me conta que parte substancial da papelada era do pelouro do Miranda. Procurei-o na sua sala, mas não estava. Lembrei-me então de ir ao gabinete do chefe da Repartição.

E lá estava o Miranda, com os pés sobre a mesa, regalado a ler o "Diário de Notícias" a que função dava direito. Perguntei-lhe por que diabo tinha canalizado todos os papéis do seu pelouro para mim. A sua resposta, marcada pela surpresa, foi cristalina: "Ó homem! Eu agora estou a chefiar!"

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Irão

Ontem este blogue foi visitado por um internauta do Irão, o 107º país a consultar-nos, conforme se pode constatar na coluna ao lado. Se até este heterodoxo "Dois ou três coisas" pode daí ser acedido, isso diz alguma coisa das amplas liberdades internáuticas que se vivem naquele país. E que só se espera se mantenham.

Há uns anos, fui a Teerão, chefiando uma missão da União Europeia. Ao final de um dia de contactos oficiais sem história, o nosso embaixador decidiu proporcionar-nos um espetáculo folclórico, numa espécie de restaurante típico. No palco, sucederam-se as "performances" dos artistas. Só homens. Não nos demoramos muito.

À saída, o aspeto engravatado do nosso grupo suscitou a curiosidade de alguns jovens, que nos perguntaram de onde vínhamos. À minha resposta, os sorrisos abriram-se: "Portugal!? Figo!". Os iranianos adoram futebol. Hoje, com certeza, diriam "Ronaldo!".

Saberão eles o nome do clube onde esses excelentes jogadores nasceram para o "esforço, dedicação, devoção e glória"?  

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

"Talent de rien faire"

Conversando ontem em Lisboa com um amigo, como eu funcionário no MNE desde há bem mais de três décadas, trocámos experiências comuns relativamente àquilo que podemos designar como alguma tentação diplomática para o imobilismo.

Com efeito, parece subsistir ainda, em certos setores, uma escola de pensamento, ancorada em sólida prática, que favorece, como reação imediata perante a pressentida necessidade de se atuar em face de algo que afeta interesses nacionais, um "é melhor não fazer nada" ou "não vale a pena reagir". O argumento sistemático é o de que é contraproducente promover iniciativas, porque elas poderão conduzir a efeitos mais gravosos do que as consequências já produzidas pelos factos e que, por isso, "é preferível estar quieto". Tenho anos de experiência de ouvir isto, com a tibieza travestida de sábia prudência.

Não sou adepto das decisões precipitadas, de se saltar para o terreiro à primeira provocação. Também não excluo, em absoluto, que, num caso ou noutro, esse tipo de atitude - ou não-atitude - possa ter razão de ser. Mas o que tenho observado é que, muitas mais vezes, tal não é senão uma escusa comodista para não ter de arriscar, para "fugir entre as pingas", para tentar que o tempo acabe por anular a necessidade de uma tomada de posição. E o que me preocupa é que, em alguns casos, esse tropismo seja já intergeracional.

Por estas e por outras é que alguns acabam por dar razão ao dito injusto segundo o qual "um diplomata é alguém que pensa sempre duas vezes antes de não fazer nada".

domingo, fevereiro 07, 2010

Opinião

Há dois dias, a propósito da reação que suscitou um comentário tido por anti-semita de um responsável político regional, teve lugar num canal de televisão um aceso debate sobre o tema da liberdade de opinião em França.

Para a generalidade dos comentadores, a sociedade francesa de hoje é bastante mais aberta do que o era há algumas décadas. O agravamento dos choques geracionais, a vitória de algumas ideologias e um conjunto de outros fatores vieram derrubar tabus e permitir a emergência de uma sociedade menos controlada. A exceção mais notória, identificada por um dos participantes, é a apologia das ideologias racistas, perante a qual existe já uma proteção legal que, no passado, não era considerada essencial. Neste quadrante limitativo, o anti-semitismo apresenta-se hoje como o desvio que provoca uma mais forte reação, por virtude da assunção do Holocausto como uma memória histórica que deve merecer uma atenção particular.

Esta temática prende-se também com o "politicamente correto", o padrão que o pensamento convencional considera dever prevalecer, nas palavras e nos atos, relativamente a certas questões de sociedade. Estão neste caso temas raciais, de género e, em escala menor, questões religiosas e de discriminação social - os que agora me ocorrem. Não há total consenso sobre este catálogo de "contrainte sociale", que se estende de coisas de mero bom-senso (proteção ambiental, proteção das crianças) até áreas mais divisivas (tabaco, grau de defesa dos animais).

O percurso das ideias, neste domínio, tem sido muito grande, embora com regressões significativas. Recordo apenas como o sacrossanto princípio de impedir o "racial profiling", que marcava o quotidiano dos EUA desde os anos 70, se esboroou, de um dia para o outro, depois do 11 de Setembro. 

sábado, fevereiro 06, 2010

Mónaco

No território do Principado do Mónaco vivem cerca de 300 portugueses. Atravessando uma rua, entra-se em Beausoleil, já em França, onde residem muitos dos cerca de 2500 que, diariamente, constituem aquela que é hoje uma prestigiada comunidade estrangeira que trabalha naquele pequeno país. 

Existem por lá algumas empresas de construção civil pertencentes a portugueses, diversos estabelecimentos comerciais e, naturalmente, associações recreativas lusitanas. As autoridades monegascas desfazem-se em elogios à nossa comunidade e à sua serena e responsável contribuição para o desenvolvimento do território.

Quem chegou ao Mónaco há mais tempo diz-me que, nos últimos anos, se nota a vinda de novos migrantes portugueses, parte dos quais oriundos de outros destinos onde o desemprego começou a sentir-se.

Em 48 horas, fui encontrar um interessante mundo português por detrás do mundo de "glamour" do Principado, aliás com uma importante quota-parte no quotidiano deste. Espero ser possível vir a melhorar o apoio oficial português a esta comunidade.

Sem comentários

Extrato de artigo de hoje no "Libération", que vivamente recomendo:

"Já ninguém o contesta: a situação das finanças públicas da zona euro, incluindo a da Grécia, não justifica um pânico como o que se criou nos mercados financeiros, os quais, a partir de agora, apostam claramente na fragmentação da zona euro. De acordo com as nossas informações, que nos chegaram simultaneamente das autoridades do mercado e de estabelecimentos financeiros, um grande banco de investimentos americano e dois muito importantes "hedge funds" estariam claramente por detrás dos ataques contra a Grécia, Portugal e Espanha. Com que finalidade? Ganhar o máximo de dinheiro, criando um pânico que lhes permita exigir da Grécia taxas de juro cada vez mais elevadas, continuando a especular. Por que não citamos nomes? Porque se trata de um conjunto de perspectivas que um tribunal poderia julgar insuficientemente fundadas no caso de um processo. E como diz um operador de mercado: "Com essa gente não se brinca!"

Mais adiante, o artigo responde à pergunta: "Como atuam as agências de 'rating'?:

"Ei-las de novo a trabalhar. São três - Standard & Poor's, Moody's, as duas anglo-saxónicas, e Fitch, a francesa - e distribuem classificações pela terra inteira. O seu trabalho é avaliar a capacidade de quem pede empréstimos para reembolsar as suas dívidas. Nenhum produto financeiro escapa ao seu zelo: quer as obrigações emitidas pela Danone, quer os "produtos" criados pelo bancos, mas igualmente os fundos estatais - como será amanhã o caso do 'grande empréstimo' a instituir pela França. Uma boa nota, o AAA, e eis o investidor descansado. Uma má nota, B ou menos - cada agência tem o seu sistema - e logo as taxas de juro sobem e, com isso, a fatura final. E é com os seus alertas sobre as dívidas públicas que elas fazem tremer os Estados... Têm, no entanto, uma grande 'lata', comenta um operador, porque foram elas quem construiu a bomba dos 'subprime'".

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Caixa

Alguns chamarão a isso "nacionalismo económico" e falta de abertura para a lógica de um mercado financeiro europeu aberto e competitivo, outros acharão que se trata apenas de patrioteirismo primário. Digam o que quiseram, soube-me muito bem, em Beausoleil (a exactamente 10 metros do Mónaco), ouvir falar apenas português, numa movimentada agência da Caixa Geral de Depósitos, que hoje visitei por ocasião da minha entrega de credenciais. E isso também não se deve, necessariamente, ao facto da Caixa ter sido o meu primeiro emprego.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

O "4 de Fevereiro"

Há precisamente 49 anos, um grupo de independentistas angolanos foi responsável, em Luanda, pelo chamado "4 de Fevereiro", a primeira ação armada que foi organizada contra a presença portuguesa em Angola. Com ataques de surpresa a prisões, forças policiais e outros pontos estratégicos da capital angolana, que causaram vítimas mortais, as escassas centenas de ativistas do "4 de Fevereiro" instabilizaram por horas Luanda, sendo subsequentemente alvo de forte repressão - militar, policial e civil -, a qual atingiu também diversos setores da população autóctone residente na cidade.

A data de 4 de Fevereiro de 1961 constituiu, assim, o início das revoltas coloniais contra Portugal, as quais, a partir de 1964, se iriam estender a Moçambique e à Guiné. Entretanto, no final desse ano de 1961, a União Indiana iria invadir o Estado da Índia, pondo um ponto final à presença da administração portuguesa naquele território.

O movimento de "4 de Fevereiro" foi, em si mesmo, um acontecimento bastante complexo, muito mais do que algumas versões simplistas que sobre ele foram mais tarde conhecidas e divulgadas. A sua génese política é também importante para se entenderem as raízes do que foram as profundas clivagens entre os grupos político-militares angolanos, que, logo após a independência do país em 1975, se saldou numa mortífera guerra civil, que, com diferentes formatos, se prolongaria até 2001.

Quando vivi em Angola, nos anos 80, tive o ensejo de conhecer e falar com algumas das figuras envolvidas no "4 de Fevereiro". Pude então saber algo mais sobre esse movimento e, em especial, informar-me com maior detalhe sobre a importância que nele teve uma figura religiosa, o Cónego Manuel das Neves, pároco envolvido na mobilização e no apoio logístico da revolta, que viria a ser preso e expulso para Portugal. Aí ficou com residência fixa, tendo morrido em Soutelo, em 1966. Muito pouco se falou sempre sobre esta figura do nacionalismo angolano e talvez valesse a pena refletir por que razão isso aconteceu.

O "4 de Fevereiro" seria apenas o início, simbólico e trágico, da revolta angolana. Em 15 de Março de 1961, membros da  UPA (União dos Povos de Angola), que mais tarde se viria a transformar em FNLA, estiveram na origem de sangrentos e chocantes ataques a populações civis em zonas rurais no norte de Angola.

O efeito conjugado daqueles dois acontecimentos teve uma forte repercussão em Portugal, que iniciou então o envio de forças militares que, por 13 anos, conseguiram assegurar a permanência da soberania portuguesa no território. 

As ondas de choque político que esses acontecimentos provocaram, ligadas a outros eventos políticos que então se registaram na sociedade política portuguesa, viriam a contribuir para transformar esse ano de 1961 num dos mais difíceis e movimentados anos da história do Estado Novo. Disso falaremos um destes dias.

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Rosa Lobato de Faria

Como muito portugueses, conhecia Rosa Lobato de Faria apenas pela escrita e pela televisão. Pareceu-me sempre uma figura serena, de bem consigo mesmo, muito alerta para as coisas novas que poderia dar à sua vida e para o que desta poderia retirar, com algum sentido lúdico. A sua intervenção multifacetada no espaço público é disso prova clara, sendo que, para tal, era ajudada por uma interessante bagagem cultural. Dava, além disso, a confortável sensação de ser uma personalidade que aceitava com naturalidade o correr do tempo e da idade.

A televisão trouxe-a, com frequência, à presença dos portugueses residentes no estrangeiro, os quais, estou seguro, vão estranhar a sua ausência. É que Rosa Lobato de Faria fazia já parte de um património de memória do seu país à distância. Neste caso, com um belo e franco sorriso, o que já começa a ser raro, em particular nos dias que por aí andam. 

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Agradecimento

Diversas e amigas mensagens saudaram o aniversário deste blogue. De todas elas, permitam-me que destaque a qualificação feita pelo nosso por "Criativemo-nos", que crismou este "Deux ou Trois Trucs" (sic) como "terna aldeia íntima num cenário cosmopolita".

Um sincero muito obrigado a todos. E, como diria aquele locutor de TV, "prontos", acabaram as comemorações.

Alexander Ellis

Alexander Ellis é o embaixador britânico em Portugal, de quem já aqui falámos. Viveu em Portugal há mais de uma década, tendo regressado há pouco anos.

Num comentário, Helena Oneto recorda o texto que este meu colega publicou em Dezembro passado, no seu blogue genialmente chamado Um bife mal passado, intitulado "Dez coisas que melhoraram em Portugal nos últimos 15 anos". 

Com a devida vénia ao autor e com um antecipado pedido de desculpa ao operoso grémio dos cultores das desgraças pátrias, transcrevo o seu texto:

Chegou a época do espírito natalício. Então, deixemos de lado quaisquer miserabilismos e concentremo-nos nas coisas boas - não como escape mas como realidade. Vivi em Portugal há quinze anos. Agora, de volta, quero sugerir dez coisas, entre muitas outras, que melhoraram em Portugal desde a minha primeira estadia. Não incluo aqui coisas que já eram, e ainda são, fantásticas (desde a forma como acolhem os estrangeiros até à pastelaria). Aqui ficam algumas sugestões de melhorias:

- Mortalidade nas estradas; as estatísticas não mentem - o número de pessoas que morre em acidentes rodoviários é muito menor, cerca de 2000 em 1993 e de 776 em 2008. A experiência de conduzir na marginal é agora de prazer, não de terror. O tempo do Fiat Uno a 180km/h colado a nós nas auto-estradas está a passar.

- O vinho; já era bom, mas agora a variedade e a inovação são notáveis, com muito mais oferta e experiências agradáveis. Também se pode dizer a mesma coisa sobre o azeite e outros produtos tradicionais.

- O mar; Lisboa, em 1994, era uma cidade virada de costas para o mar; poucos restaurantes ou bares com vista, e pouca gente no mar. Hoje, vemos esplanadas e surfistas em toda a parte. Muita gente a aproveitar melhor um dos recursos naturais mais importantes do país.

- A zona da Expo; era horrível em 1994, cheia de poluição, com as antigas instalações petrolíferas. Agora é uma zona urbana belíssima, com museus e um Oceanário entre os melhores que há no Mundo.

- A saúde; muitas das minhas colegas têm feito esta sugestão - a qualidade do tratamento é muito melhor hoje em dia, apesar das dificuldades financeiras, etc. A prova está no aumento da esperança de vida, de cerca de 74 em 1993 para 78 anos em 2008.

- Os parques naturais; viajei muito este ano do Gerês a Monserrate ; tudo mais limpo, melhor sinalizado, mais agradável. O pequeno jardim está, de facto, mais bem cuidado.

- O cheiro. Sendo por natureza liberal nos costumes sociais, não fui grande fã da proibição de fumar - mas, confesso, a experiência de estar num bar ou num restaurante em Portugal é hoje mais agradável com a ausência de tabagismo. E a minha roupa cheira menos mal no dia seguinte.

- A inovação; talvez seja fruto da minha ignorância do país em 1994, mas fico de boca aberta quando visito algumas das empresas que estão a investir no Reino Unido ; altíssima tecnologia, quadros dinâmicos e - o mais importante de tudo - não há medo. Acreditam que estão entre os melhores do mundo, e vão ao meu país, entre outros, para prová-lo.

- O metro de Lisboa. É limpo, rápido, acessível e tem estações bonitas.

- As cores; Portugal tem e sempre teve cores naturais bonitas. Mas a minha memória de 1994 era o aspecto visual bastante cinzento das cidades, desde a roupa até aos carros. Hoje há mais alegria - recordo um português que me disse, talvez com tristeza, que o país estava a tornar-se mais tropical. Em termos de imagem, parece-me um elogio!

Esta é a minha lista. E a sua?

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Aniversário

Faz hoje precisamente um ano que começou a editar-se este "Duas ou Três Coisas". Data que coincide com aquela em que assumi funções como embaixador português em França.

Como se deduzirá do subtítulo do blogue, a ideia inicial era não seguir um ritmo regular de publicação de posts. Isso não aconteceu: não houve um único dia em que o blogue não tivesse sido atualizado e, as mais das vezes, houve mesmo mais do que um post por dia. Neste primeiro ano, foram publicados 710 posts.

O número de leitores tem vindo a sustentar-se, com variações sazonais, estando numa média de cerca de 350/dia.

De 105 países do mundo (num mundo que tem 192) apareceram visitantes, alguns esporádicos, outros mais ou menos fiéis. Portugal, França e Brasil, sem surpresas, têm estado na vanguarda das visitas. Mentiria se dissesse que não gostava de ver mais visitantes oriundos de França, porque isso significaria uma maior adesão da comunidade de origem portuguesa, a quem se dirige prioritariamente o meu trabalho profissional.

160 leitoras ou leitores inscreveram-se como "seguidores", sem grandes recuos, o que significa que ficaram "clientes". Isso, aliás, é bem patente na "família" dos comentadores, onde se destaca um grupo sólido, simpático e ativo (activo, para contentar todas e todos), que, de quando em vez, não dispensa criticar o escriba - e faz muito bem!

Estou muito grato a quem tem tido paciência para me ler, embora também compreenda quem possa, entretanto, ter desistido de seguir o que aqui se escreve. Alguns posts podem ser algo "pesados", outros "ligeiros" demais, a minha perspetiva sobre as coisas pode, muito legitimamente, não interessar a muitos. E há, também, quem tenha pouco tempo para "andar por blogues". Eu, por exemplo...

Um ano é muito tempo, foram muitas horas. Olhando para trás, acho que é capaz de ter valido a pena.

Vamos continuar? Repito o que escrevi no primeiro post: "se a assiduidade dos leitores o justificar, o exercício continuará. Se não for esse o caso, o blogue terá o destino óbvio". Voilà!

Manuel Serra (1932-2010)


Hoje sabemos melhor o que foi o chamado “28 de Setembro” de 1974 - um equívoco momento de confronto entre setores ultra-conservadores, apoiantes de um movimento para dar plenos poderes ao general Spínola, e forças políticas da esquerda, que habilmente aproveitaram o ensejo para afastar o polémico presidente da República que, no 25 de Abril, haviam sido forçadas a aceitar e que se tornava progressivamente mais incómodo. É que, à época, assistia-se a um crescente ambiente anti-25 de Abril, alimentado pelo próprio Spínola, que estava a colocar a esquerda e o Movimento das Forças Armadas à beira de um ataque de nervos.

Nessa noite, eu tinha sido destacado para uma determinada tarefa, juntamente com o António Reis - o líder dos milicianos da Escola Prática de Administração Militar, de onde eu era originário, embora, à época, eu fosse adjunto da Junta de Salvação Nacional, instituição a que os acontecimentos desse dia em breve iriam pôr termo. (Por coincidência, ontem recebi um e-mail do António a informar-me que vem a Paris dentro de dias). Íamos sob o comando de um jovem alferes “do quadro”, o Manuel Geraldes,  uma generosa figura do MFA, que não vejo nem contacto há  mais de 30 anos (e de quem, hoje mesmo, por uma outra coincidência impressionante, recebi um abraço através de um amigo comum). Levávamos connosco uma “praça”, um soldado, o Moura. O Moura tinha na sua mão uma intimidante metralhadora G3. Estávamos a entrar para o meu carro pessoal,  um Fiat 128, algures nas “Avenidas Novas”, a altas horas da noite. Por razões que demorariam a explicar, a tensão do momento então muito grande. Aquela noite do 28 de Setembro acabou por ser muito complexa e longa.

De súbito, uma surpresa: começa a vislumbrar-se, à distância, vinda do alto da rua, uma figura de estatura baixa, estranhamente com as mãos no ar, como se estivesse a render-se. Naquele enquadramento noturno, sem vivalma em roda, a cena era patética e infundia uma súbita insegurança. O soldado Moura começou a demonstrar uma perturbação agitada, com jeitos de querer afirmar a capacidade operacional de que a sua condição de barman da messe da EPAM era “sólida” garantia: num instante, põe a patilha da G-3 na posição de disparo, leva a arma ao ombro e, num derradeiro e precioso segundo, é travado pelo Geraldes com um “está quieto!” e o afastar a arma do alvo.

Aparentemente sem se aperceber do nosso nervosismo e do risco de vida que estava a correr, a personagem continuava lentamente a aproximar-se, agora já se lhe ouvindo coisas, numa voz procuradamente surda, para não alertar a vizinhança, tais como “Sou eu! O Manel”. Lentamente, pudemos identificar quem lá vinha.

Era o Manuel Serra, o sempiterno revolucionário dos golpes da Sé e de Beja, figura que, meses depois, titularia uma célebre cisão de esquerda no Partido Socialista, com a criação da Frente Socialista Popular, afastando-se de Mário Soares. As vidas políticas dos últimos meses haviam-nos feito, entretanto, cruzar com essa curiosa personalidade, com um brilho quase adolescente nos olhos e um sorriso cúmplice, oriunda do cristianismo radical, que há muito trazia a revolução nas veias.  Nos anos 60, ainda antes do fracassado golpe de Beja, em que participou de forma activa, o Manel havia sido protagonista de uma lendária fuga de uma embaixada em Lisboa, onde estava refugiado, vestido de padre... Depois do 25 de Abril, por uma escolha que a confusão política proporcionou, tinha sido nomeado o inesperado chefe de gabinete desse igualmente improvável ministro que foi o jornalista Raul Rego.

- “Então, rapazes, há novidade? Vi-vos por aqui e vinha perguntar se necessitam de alguma coisa. Temos ali duas viaturas com pessoal, armas e granadas, para o que der e vier. Não precisam mesmo de nada? Está tudo em ordem?”.

Ficou a ideia que o Manel e os seus amigos andavam nessa noite pela cidade, numa espécie de piquete do ACP, para “avarias” de outra natureza. Demos os abraços da praxe e presumo que devemos ter esclarecido que “está tudo sob controlo”. No fundo, sem lho revelarmos, estávamos imensamente aliviados por se ter conseguido travar a precipitação quase trágica do Moura, o qual talvez nunca tenha entendido bem quem era aquela alma penada e meio careca, saída do escuro da rua, afinal amigalhaço dos seus superiores, a quem estivera prestes a dar um tiro.

E lá foi o Manel de volta, pela noite, à busca da revolução que sempre lhe consumiu os dias.

Dias que hoje terminaram, aos 78 anos, em Lisboa. Adeus, Manel!

domingo, janeiro 31, 2010

100 mil visitantes!

Foi há minutos: o sitemeter registou 100.000 visitantes deste blogue, medidos desde 15.2.09!

Viva a República!

Nesta data de 31 de janeiro, que comemora a revolta republicana que prenunciou o fim do regime monárquico, em 1910, tiveram início oficial em Portugal as comemorações do centenário da República.

Temos perante nós uma interessante oportunidade de dar destaque, perante as novas gerações, aos valores da ética republicana, que hoje constituem o fundamento da nossa Democracia, a que o 25 de abril deu corpo. 

Da mesma maneira que, durante a ditadura, a República foi diabolizada pelos seus inimigos, vamos agora, com toda a certeza, assistir por aí ao afloramento, mais ou menos folclórico, de iniciativas "antirepublicanas", que mais não são do que estertores da memória dos que foram afastados em 5 de outubro de 1910 e em 25 de abril de 1974. Sejamos magnânimos, porque é esse o único comportamento digno dos vencedores para com os derrotados da História.

Acordo

A Lusa passou, a partir de hoje, a distribuir o seu noticiário nos termos do Acordo Ortográfico.

Na coluna ao lado, colocamos um link para a consulta na Infopédia, da Porto Editora, que permite verificar a conformidade das palavras com o Acordo Ortográfico.

sábado, janeiro 30, 2010

Tempo

Há dias, dei-me conta que um dos nossos comentaristas regulares tem um curioso blogue dedicado às questões do tempo.

A temática do tempo é uma disciplina sempre interessante, dá origem a livros e mobiliza escolas de pensamento. Nunca tive muito "tempo" para aprofundar o assunto, mas acabei, um dia, por me cruzar com ele numa discussão governamental, na qual se analisava a questão de Portugal poder vir a ficar com a mesma hora de Bruxelas - e de outros países que a partilham. Não ficou. Foi nessa ocasião que pude perceber, e ver inventariado com minúcia, todo o complexo conjunto de reflexos que este problema tem na nossa vida, desde os efeitos sobre os gastos energéticos às questões escolares e de transportes. A partir daí, passei a estar mais atento ao tema.

Quem sabe se, daqui a poucos anos, tendo já passado à "disponibilidade", uma figura de pré-reforma que existe no meu Ministério, não serei tentado a pedir para representar o MNE nesse grupo de trabalho, com um nome tão insólito como promissor, que se chama Comissão Nacional da Hora. Espero ainda ir a "tempo" de poder colocar essa linha no meu currículo.

Faits divers


É curioso observar esta inescapável tendência da comunicação social para "agarrar" o insólito, o imprevisto, mesmo que insignificante para a história. Ninguém resiste a esta tentação. 

Há uns anos, numa cerimónia pública a que eu assistia, o presidente Lula deixou cair ao chão um copo de água. Os fotógrafos "flasharam". Recordo-me de ter dito para o chefe de gabinete de Lula, que estava ao meu lado: "Vai ser curioso ver quantos jornais amanhã não trarão esta fotografia...". Sem excepção, todos trouxeram!

Já tenho pensado que um bom trabalho de "marketing" político poderia mesmo planear incidentes inocentes, feitos apenas para a fotografia, por forma a humanizar certas personagens políticas. Algumas estão bem necessitadas disso...

Num terreno idêntico, esta questão faz-me recordar a prática de uma pessoa pública que conheço, a qual, durante as entrevistas que concede, sempre "deixa cair" uma ou duas expressões, procurada e controladamente "chocantes", num tom contrastante com o resto das suas declarações. Para quê? Para tentar que essas frases sejam "chamadas" para títulos da entrevista, evitando que os jornalistas venham a escolher outras. Assim procurando contornar a velha regra de qualquer entrevista jornalística: a nossa pior frase será, quase sempre, o título.

sexta-feira, janeiro 29, 2010

Trabalho

Para começar bem o fim-de-semana, deixo-os com uma história clássica da diplomacia brasileira. Já a vi contada como se tivesse sido passada em Lisboa ou em Paris, mas sempre com um porteiro português à mistura.

Um dia, de visita a uma daquelas cidades, uma senhora brasileira decide fazer uma surpresa ao seu sobrinho, diplomata em posto. Bate à porta do consulado brasileiro e pergunta por ele. O porteiro - que tinha de ser português... - responde-lhe:

- Não está.

- E não vem?

- Não, de manhã ele não vem.

- Então volto à tarde.

- Não vale a pena, minha senhora, porque, à tarde, ele não trabalha.

Já houve belos tempos na diplomacia!

Jô Soares

Leio na imprensa que Jô Soares inicia hoje, em Lisboa, espetáculos em torno de Fernando Pessoa.

Jô Soares é uma figura interessante, culturalmente com substância,  com uma escrita limpa e ritmada, autor e ator de grandes momentos de comédia televisiva, com a criação de personagens que ficaram na memória coletiva. Hoje, infelizmente, perde-se um pouco pela obrigatoriedade que a si próprio se impôs de apresentar um talk show seis dias em cada semana. Com raras exceções, acaba, nessa atividade, por fazer programas demasiado "leves", muito abaixo daquilo que é a sua real qualidade profissional. Por isso, um pouco como acontece com Herman José, conheço muita gente que hoje já tem grandes saudades do "velho Jô Soares".

Há três anos, no Brasil, convidou-me para ser entrevistado no seu programa, um dos mais vistos de toda a TV brasileira. É um trabalho de produção e realização impressionante. Há duas gravações por semana. Em cada um desses dias são feitos, de seguida, três programas, que depois são apresentados em três dias consecutivos.

A conversa que tivemos foi bastante simpática, com referências ao amigo comum que era Raul Solnado. Falámos da vida diplomática, do 25 de Abril, de dom João VI e, inevitavelmente, das diferenças entre o português do Brasil e de Portugal. Com notas dele ao nosso "sotaque", claro. E também lá se falou da sua paixão pela obra de Fernando Pessoa.

Para mim, o momento mais delicado do programa foi quando Jô Soares puxou a conversa para uma velha anedota sobre Salazar e Américo Tomás, passada no hospital onde o primeiro estava internado após a sua queda, historieta em que intervém o médico americano que tratou o ditador. Jô Soares procurou a minha ajuda para completar a anedota, a qual, aliás, é algo cruel. Não lhe dei "saída". Acho que ser embaixador de Portugal  não é compatível com a colaboração no apoucamento, num país estrangeiro, de figuras de Estado portuguesas, por mais detestáveis que elas possam ser, como era o caso. Assim, acabei por ficar aquilo que se pode dizer, desta vez muita com propriedade, "sem graça".

quinta-feira, janeiro 28, 2010

Camões

Ao final da tarde de ontem, o centro cultural Gulbenkian proporcionou-nos uma conferência de António Coimbra Martins sobre temática literária, ligada a Lorenzo di Medici e a Luiz de Camões.

Intelectual e académico, António Coimbra Martins viveu grande parte da sua vida em França, onde teve ação destacada nas fileiras da oposição à ditadura portuguesa. A partir de 1965, criou e dirigiu a biblioteca do centro cultural Calouste Gulbenkian - a maior e mais importante existente fora de Portugal, depois da biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro. Dirigiu, depois, o próprio centro cultural Gulbenkian (1997-98). Anos antes, havia exercido funções como embaixador português em França (1974-79) e, mais tarde, como ministro da Cultura em Portugal (1983-85).

Ontem, ouvimo-lo, no "seu" centro Gulbenkian, enquanto académico, especular de forma brilhante sobre curiosas coincidências entre aspetos de obras de Médici e de Camões. A quem não é do "ramo", fez imensamente bem ouvir argumentos inteligentes situados em temáticas distantes do nosso quotidiano.

quarta-feira, janeiro 27, 2010

Conselho de Segurança

Este é um post longo. Como diria alguém, não tenho tempo para ser sintético.

Portugal é candidato a um novo mandato como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU, no biénio 2011/2012.  No passado, exercemos por duas vezes essas funções, sempre com grande eficácia.

Há dias, um amigo perguntava-me por que razão Portugal queria obter, de novo, essa posição, numa eleição que implica gastos e uma mobilização diplomática intensa. A resposta é, de certo modo, simples.

Portugal é um país com uma história e com uma imagem bem firmadas no mundo. Somos um Estado europeu de média dimensão que sempre deu mostras de um forte empenhamento no quadro das relações externas da União, para a definição do qual muito temos contribuído desde a nossa adesão, por vezes numa escala bem superior à de parceiros com um perfil similar.

Estamos no centro de uma Comunidade línguística em crescente projeção internacional, que se forjou por laços culturais e afetivos e que foi ajudada pelo cimento da pertinácia comum em torno da luta pelos direitos de Timor-Leste.

Temos hoje um quadro muito coerente de relações externas, fruto de uma ação séria no seio da comunidade internacional, que nos reconhece como uma entidade dialogante, moderadora, que age na base de princípios e que respeita, em prioridade, a preeminência da ordem multilateral.

Soubemos ultrapassar os tempos traumáticos da conflitualidade colonial e, desde a reimplantação da democracia, somos um dos mais comprometidos parceiros com o mundo africano, tendo sido responsáveis pela iniciativa de duas cimeiras União Europeia-África, momentos únicos na paciente construção de um diálogo institucionalizado entre os dois continentes. Temos sido, além disso, na União Europeia e fora dela, dos mais dedicados promotores de políticas de ajuda ao desenvolvimento e da reflexão sobre os modelos de como elas devem evoluir.

Somos um país exemplar em processos de integração de comunidades estrangeiras, respeito pelas minorias e combate às formas de exploração humana, conduzindo, no quadro da União Europeia e em outras estruturas multilaterais, uma ativa política nesse domínio, fundada em valores humanistas e de solidariedade à escala global. Essa posição, deriva muito do facto de termos vindo a aculturar, após séculos da nossa própria diáspora, atitudes de relação humana e de respeito pela diferença que são hoje uma componente essencial da nossa matriz identitária.

Não sendo, geograficamente, um país mediterrânico, somos considerados pelos nossos parceiros do Magrebe como um dos Estados europeus que melhor entende as questões desse espaço, do mundo árabe e dos desafios de desenvolvimento e segurança que atravessam toda essa região. No Médio Oriente, a nossa voz é reconhecida como sempre tendo mantido uma grande coerência no tocante à procura de soluções de justiça que, simultaneamente, compatibilizem os direitos do povo palestino e a prestação de garantias a um Estado israelita com fronteiras fixadas à luz das determinantes do Direito internacional.

Na América Latina, para além da muito especial relação com o Brasil, temos um excelente entendimento com todos os países de língua espanhola, fruto de laços antigos e de novas solidariedades, muitas das quais firmadas no quadro íbero-americano e na atenção que sempre demos à promoção dos seus interesses dentro da União Europeia.

Portugal é um país respeitado no seio da Aliança Atlântica, mantendo com os Estados Unidos, o parceiro mais importante nesse contexto, um constante e amigável diálogo. Olhamos para o laço transatlântico como um elemento axial do quadro de segurança em que estamos inseridos. A perspectiva que Portugal tem alimentado vai também no sentido de considerar que uma relação eficaz entre os Estados Unidos e a Europa é uma condição indispensável para a promoção, com sucesso, de alguns dos valores que entendemos dever proteger na ordem internacional. As derivas conjunturais ocorridas do outro lado do Atlântico, a que se somaram patéticos seguidismos pontuais assumidas nesta banda, devem ser levadas à conta de meros interlúdios, projetados num quadro que continuamos a ler como estruturante para a preservação dos nossos interesses estratégicos.

As grandes questões relacionadas com a segurança internacional, nomeadamente nos cenários de tensão pós-11 de setembro, têm, aliás, encontrado em Portugal um parceiro interessado e interveniente. Estamos presentes no esforço para a estabilização do Afeganistão, terreno de operações considerado fundamental para evitar uma catastrófica desregulação da região, com consequente aumento dos riscos de proliferação nuclear e propagação do terrorismo - flagelo a que temos dado a maior atenção nos diversos quadros em que é combatido. Ainda na área da segurança, estamos a preparar a cimeira da Nato, que este ano terá lugar em Lisboa, a qual terá no centro da sua agenda a definição do seu novo conceito estratégico, reformulação essencial para a imperiosa "recriação" da organização, à luz das novas ameaças e das novas áreas geopolíticas de actuação.

A imagem de Portugal na Ásia, fixada por uma memória histórica muito positiva, é a de um país cujo passado por lá deixou marcas iniludíveis, nas culturas como nas línguas, como saldo de uma excepcional capacidade de relacionamento humano. Soubémos gerir uma eficaz transição em Macau, num exemplar diálogo com a China. Contrariamente ao que muitos esperariam, a nossa coerência na questão timorense garantiu-nos um respeito acrescido na Ásia e em Estados da Oceania, que apreciaram a sabedoria com que retomámos uma construtiva e descomplexada relação com a Indonésia.

Voltando à Europa, é interessante notar que Portugal teve, desde muito cedo, o mérito de perceber que a abertura do projeto comunitário a novos parceiros era uma exigência, não apenas estratégica mas igualmente ética. A nossa inabalada coerência de atitude face ao conjunto de interesses dos novos Estados membros, do seu desenvolvimento à sua segurança, dá-nos hoje um crédito de reconhecimento que igualmente os ajuda a entender a nossa determinação no aprofundamento do diálogo com a Rússia, bem como o nosso empenhamento na resolução de conflitos e na superação de tensões na importante área de vizinhança da União Europeia a leste, tal como na descoberta de fórmulas mais inclusivas na cooperação com o restante mundo euroasiático.

Portugal trabalha nas instituições multilaterais com "as cartas" sobre a mesa, sem jogos de bastidores, com uma agenda de preocupações que assenta na busca de soluções dialogadas, numa lógica de comportamento que sempre tentamos que seja partilhada pelos nossos parceiros e aliados, situados nos diversos contextos multilaterais ou multinacionais onde nos inserimos e atuamos. Tentamos ser sempre uma voz moderada, que procura até ao limite conseguir soluções fruto do diálogo e do consenso, sem prejuízo do cumprimento das normas internacionais e do corpo de princípios a que aderimos. Sem fundamentalismos  nem ilusões, seguimos uma linha que tenta ser coerente nos processos de promoção da democracia, dos direitos humanos e dos valores do Estado de direito. Estamos também crescentemente atentos às temáticas do ambiente e do desenvolvimento sustentável, onde damos, dia-a-dia, um testemunho próprio de envolvimento no uso intensivo das energias alternativas.

Não será também por acaso que nomes portugueses assumem hoje lugares cimeiros no diálogo entre civilizações, nas instituições europeias ou na protecção dos direitos dos refugiados. Para além das razões de natureza pessoal que os recomendaram, não há a menor dúvida que isso decorre também do facto de beneficiarem da imagem projetada pelo país de onde são originários, onde antes apareceram no exercício de outras funções.

Ao longo dos últimos anos, com a nossa intervenção em processos de manutenção de paz - de Moçambique aos Balcãs, de Timor ao Líbano, entre outros cenários de instabilidade -, mostrámos que não éramos apenas produtores de retórica, tendo muitas vezes assumido um perfil de participação superior àquilo de alguns podiam esperar do nosso estatuto e dimensão económica. As Forças Armadas portuguesas têm-se constituído, pela capacidade e equilíbrio revelados na sua acção em cenários externos de tensão, como uma magnífica e moderna imagem do nosso país.

É a globalidade dessa experiência, a que se soma a continuada vontade de darmos a nossa contribuição para a paz e segurança internacionais, que nos leva a querer estar, por direito próprio, no órgão mais operacional da ONU, uma instituição em cujo futuro acreditamos e cujo papel central na regulação dos conflitos continuamos a defender. Somos intransigentemente a favor do princípio da rotação dos Estados que não têm um estatuto permanente no Conselho de Segurança, pelo que somos fortemente contra uma espécie de subliminar  "usucapião", através do qual alguns procuram ser mais iguais que os outros... Temos também defendido a urgente necessidade de uma reforma do Conselho, que lhe reforce a democraticidade e representatividade, através de uma abertura a novos membros permanentes provenientes da África, Ásia, América Latina e Europa.

Aqueles que, em Portugal, colocam reticências a este esforço de sustentação do nosso prestígio devem pensar que ser português é também ser o herdeiro desta vocação tradicional de afirmação externa, num tempo em que já não queremos estar "orgulhosamente sós". A imagem de Portugal, a promoção dos nossos legítimos interesses, a abertura de espaços de diálogos de toda a natureza, tudo isso passa pela visibilidade e pelo prestígio que uma presença no Conselho de Segurança proporciona. Não perceber isto, assumir atitudes de autolimitação economicista primária, é ajudar a condenar o nosso país a um destino de irrelevância. Uma irrelevância que, de facto. parece ser o sonho de alguns profetas da desgraça que por aí rondam colunas, blogues e debates televisivos.

Alguns poderão interrogar-se sobre a natureza deste longo post. Quem me conhece sabe que ele não é um mero exercício de retórica, nem representa nenhum "recado" oficioso que me tenham "encomendado". É, muito simplesmente, aquilo que eu penso.

Embaixada aberta


A Embaixada de Portugal em Paris rejuvenesceu.

Hoje, um grupo de crianças do ensino primário de português da secção internacional de Chaville, acompanhado de professores, veio cá cantar as Janeiras.

Almoçaram, viram e comentaram um filme sobre Portugal e foi organizada uma representação teatral inspirada no quadro existente na Embaixada, que simboliza a partida, de Lisboa para Inglaterra, de Catarina de Bragança.

Um belo dia!

Europa (2)

Há pouco mais de uma década, no exercício de outras funções, declarei publicamente que o Governo português de então se não revia na perspetiva de uma Europa federal. Essa declaração não fora feita de ânimo leve: refletia uma orientação definida por quem tinha então autoridade política para o fazer e, com ela, queria marcar o sentido das nossas propostas para a revisão do tratado da União Europeia, que estava em curso.

Essa minha tomada de posição valeu-me ser zurzido então por alguma imprensa, que destacou o que considerou ser a nossa falta de "ambição" (palavra que, no jargão europeu, é sinónimo de entusiasmo pelas ideias federalistas) e ter colado Portugal a uma perspectiva "recuada" do projeto europeu.

Perante essa forte reação mediática às minhas palavras, um político português, com responsabilidades superiores às que eu então titulava, disse-me para eu me não preocupar muito e desenvolveu uma irónica teoria: alguns desiludidos com o fim dos "amanhãs que cantam" tinham acabado por encontrar no federalismo europeu um corpo doutrinário de substituição para o internacionalismo proletário, que no passado defendiam...

Lembrei-me ontem dessa leitura das coisas quando, à saída da conferência de Hubert Védrine, de onde transpareceu uma imagem algo desencantada do projeto europeu, alguém lançou, também com uma grande ironia e muita graça: "Tiraram-nos o socialismo, agora tiram-nos a Europa..."

Europa

O Tratado de Lisboa foi o pretexto, mas Hubert Védrine foi muito para além disso na excelente conferência que, ontem ao final da tarde, fez no centro cultural Gulbenkian, aqui em Paris.

Apresentado por Teresa Gouveia, que deu uma bela lição de como se deve fazer a introdução de um conferencista, o antigo MNE francês terá surpreendido pela franca lucidez do seu raciocínio, na abordagem da situação internacional, em geral, e da Europa, em particular.

Hubert Védrine atacou alguns mitos fundacionais da unidade europeia, revelou alguns dos logros em que o pensamento dominante no continente se deixou enredar por décadas e foi de um realismo muito frio quanto às possibilidades da Europa se afirmar como potência no cenário mundial. Por isso, e uma vez mais, volto a recomendar o seu mais recente livro, de que já falei aqui.

Haiti


O Haiti é um Estado que ocupa apenas parte da ilha Hispaniola, a qual abriga, mais a ocidente, um outro país, a República Dominicana.

O Haiti já era, antes do terramoto, muito mais pobre que a República Dominicana, da qual ninguém ouve agora falar e que não sofreu quaisquer efeitos do sismo que destruiu o seu vizinho.

Este post serve apenas para notar este singular contraste.

terça-feira, janeiro 26, 2010

A sombra

Quem eu fui há vinte anos
veio hoje tomar-me do braço e perguntou:
o que fizeste de mim?

Respondi-lhe: fiz tudo quanto deixaste
que eu pudesse fazer.

A sombra sorriu de troça.
E desapareceu.

(Ainda preciso de desculpas
para tudo o que não fiz). 

Luis Filipe Castro Mendes

Poema, com contribuição de memória parisiense, no excelente Tim Tim no Tibet

Histórias da música e da política

Saí há escassas horas de um excelente espetáculo musical, no teatro desta Vila Real com três graus centígrados, que reuniu, num improviso co...