quinta-feira, fevereiro 04, 2010

O "4 de Fevereiro"

Há precisamente 49 anos, um grupo de independentistas angolanos foi responsável, em Luanda, pelo chamado "4 de Fevereiro", a primeira ação armada que foi organizada contra a presença portuguesa em Angola. Com ataques de surpresa a prisões, forças policiais e outros pontos estratégicos da capital angolana, que causaram vítimas mortais, as escassas centenas de ativistas do "4 de Fevereiro" instabilizaram por horas Luanda, sendo subsequentemente alvo de forte repressão - militar, policial e civil -, a qual atingiu também diversos setores da população autóctone residente na cidade.

A data de 4 de Fevereiro de 1961 constituiu, assim, o início das revoltas coloniais contra Portugal, as quais, a partir de 1964, se iriam estender a Moçambique e à Guiné. Entretanto, no final desse ano de 1961, a União Indiana iria invadir o Estado da Índia, pondo um ponto final à presença da administração portuguesa naquele território.

O movimento de "4 de Fevereiro" foi, em si mesmo, um acontecimento bastante complexo, muito mais do que algumas versões simplistas que sobre ele foram mais tarde conhecidas e divulgadas. A sua génese política é também importante para se entenderem as raízes do que foram as profundas clivagens entre os grupos político-militares angolanos, que, logo após a independência do país em 1975, se saldou numa mortífera guerra civil, que, com diferentes formatos, se prolongaria até 2001.

Quando vivi em Angola, nos anos 80, tive o ensejo de conhecer e falar com algumas das figuras envolvidas no "4 de Fevereiro". Pude então saber algo mais sobre esse movimento e, em especial, informar-me com maior detalhe sobre a importância que nele teve uma figura religiosa, o Cónego Manuel das Neves, pároco envolvido na mobilização e no apoio logístico da revolta, que viria a ser preso e expulso para Portugal. Aí ficou com residência fixa, tendo morrido em Soutelo, em 1966. Muito pouco se falou sempre sobre esta figura do nacionalismo angolano e talvez valesse a pena refletir por que razão isso aconteceu.

O "4 de Fevereiro" seria apenas o início, simbólico e trágico, da revolta angolana. Em 15 de Março de 1961, membros da  UPA (União dos Povos de Angola), que mais tarde se viria a transformar em FNLA, estiveram na origem de sangrentos e chocantes ataques a populações civis em zonas rurais no norte de Angola.

O efeito conjugado daqueles dois acontecimentos teve uma forte repercussão em Portugal, que iniciou então o envio de forças militares que, por 13 anos, conseguiram assegurar a permanência da soberania portuguesa no território. 

As ondas de choque político que esses acontecimentos provocaram, ligadas a outros eventos políticos que então se registaram na sociedade política portuguesa, viriam a contribuir para transformar esse ano de 1961 num dos mais difíceis e movimentados anos da história do Estado Novo. Disso falaremos um destes dias.

15 comentários:

Anónimo disse...

"Soberania portuguesa no território"

Bem sr. Embaixador as questões semânticas apaixonam-me e aqui há-de concordar comigo que face à sua congruência (O que diz e o que quer dizer de facto)estamos a falar de semântica formal!...

Quanto ao seu perfil de Historiador agradeço-lhe imenso pois eu e o meu filho Pedro Francisco auferimos da sua análise dinâmica e imparcial no relato dos factos principalmente aprendemos...
Obrigada
Isabel Seixas

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador
Fez muito bem em lembrar a data. E também o que se considerou ser o movimento de libertação do Ultramar Português.
Embora tendo tido família em Angola, estou mais ligada a Moçambique, onde nasceu o meu irmão mais novo. E cuja evolução é, a meu ver, bem mais correcta do que a que acontece em Angola. Que vai ter a sua primeira Constituição a garantir a eternidade do Presidente à frente dos destinos do país...
Vou tornar a Moçambique e espero que essa volta seja colírio para os meus olhos!

ARD disse...

Tem razão sobre a complexidade do que se passou no 4 de Fevereiro e das motivações que levaram a UPA a desencadear a acção.
A história desse sangrento início da luta armada de libertação vai-se fazendo mas com enormes dificuldaes.
Em Angola, porque as contradições e diferenças desde sempre existentes entre as diversas facções do campo nacionalista foram exacerbada, como referiu, pela guerra que potências estrangeiras combateram em território de Angola e em que angolanos actuaram como seus "proxies" (perdoe-se o anglicismo). Mas também porque ao actual Poder angolano não interessará que seja feita luz integral sobre nada do que se passou antes e depois da Independência no que se refere a essas questões.
Em Portugal, porque ainda não foi possível a assunção clara do que, realmente, foi o colonialismo português e a verdadeira natureza da guerra terrível e assassina que o país moveu contra os povos das colónias, sistematicamente edulcorados e pintados em suaves tons de rosa.
Esse bloqueio mantal e psicológico que impede o ajuste de contas com um passado nada gloriosa e, por via disso, impede também a cicatrização completa das feridas que esse período provocou.

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

Sem dúvida, os divisionismos pré-independentistas no nacionalismo angolano incitaram à posterior guerra civil com hostilidades entre os grandes movimentos e os seus respectivos líderes.

É, bem interessante, a pista que nos deixa sobre o papel do cónego Manuel das Neves no processo de desenvolvimento do nacionalismo angolano. É indubitável que, como nos diz o Senhor Embaixador Francisco Seixas da Costa, estes dois acontecimentos associados ao mal-estar sentido na sociedade portuguesa possibilitou a abertura de uma nova fase na História do Estado Novo.

Aliás, estes acontecimentos genésicos ao nível da política ultramarina ( ou colonial ) levaram à abertura de um debate ideológico que levou o ministro Adriano Moreira a suprimir o estatuto do indígena durante este ano de 1961 e à discussão do paradigma político-administrativo que terá tido como ponto culminante as interessantes sessões extraordinárias do Conselho Ultramarnino em Outubro de 1962 em que se agudizaram posições.

Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt

Helena Oneto disse...

E tempo que seja feita a História da guerra colonial. Este post é uma verdadeira introdução.

Alcipe disse...

O Gil tem razão, mas temos que fugir também de uma acrítica culpabilização histórica, que nos leva a edulcorar (bonita palavra) outras realidades : o papel dos poderes locais africanos no tráfico negreiro, por exemplo, ou o esquecimento do tráfico de escravos praticado pelos árabes...

ARD disse...

Alcipe ten razão. Mas incomoda-me um pouco a postura "eu portei-me mal mas foi aquele menino que começou".
Sei que é um tema que toca Alcipe: lembro-me de posts no "Tim Tim" a propósito de opiniões de Eduardo Lourenço...

Anónimo disse...

O 4 de fevereiro, certo e sabido, é, politicamente, o mais ousado passo no despoletar do processo de descolonização, mas esquecer o 4 de janeiro, na Baixa de Cassange é um erro.
Não só porque se trata de uma força angolana contra o regime colonial, mas porque demonstra a forma como a vizinhança esteve sempre a servir de combustível à luta contra o regime colonial em Angola. E que não restem esgulhos, se angolana na época, estaria, como tantos outros, de armas na mão. Mas a forma como nasce o 4 de janeiro é digna de ser tratada e ainda mais investigada, porque do 4 de fevereiro quase tudo se sabe. A influência do PSA do Congo, do ritual de Maria, a declaracao de morte aos animais brancos, etc etc... que marcaram o 4 de janeiro da a este acontecimento tons exotericos unicos e fantasticos. e nao e por acaso que pela primeira vez o regime colonial emprega a fora aerea contra populacoes armnadas de ... canhangulos. morreram 1000 ou milhares, ninguem sabe, mas sabe se que sem 4 de janeiro dificilmente haveria 4 de fevereiro.
rita

Anónimo disse...

Sobre este tema recomendo a leitura de " The origin´s of the Angolan Civil War: Foreign Intervention and Domestic Political Conflict 1961-76" de Fernando Andresen Guimarães, publicado em 98 nos Estados Unidos pela St Martin´s Press e na Grã-Bretanha pela MacMillan e reeditado em 2001. Em Portugal e Angola, naturalmente, ainda não está editado.

Vizinho ex-Marxista

Dulcineia disse...

Concordo com Helena O. quando diz que "é tempo que seja feita a Historia da Guerra Colonial".
Na minha familia abalaram homens para o Ultramar : India, Angola e Guiné. Houve quem de la nao regressasse.
Nasci durante a guerra colonial (tive a sorte de nascer, como muitos da minha geraçao...) e apesar de ter acabado a escola primaria quando acabou a guerra nunca estudei essa fase da Historia do meu pais. É pena porque o que sei é resultado de relatos muitas vezes emotivos dos que por la tiveram que passar.

Julia Macias-Valet disse...

Cara Helena O. se "Este post é uma verdadeira introduçao". O que poderiamos chamar ao "Assalto ao Santa Maria" ?

Helena Oneto disse...

Chère Julia,

Os "assaltos" são outra historia sem mortos nem feridos so hoje relembrados nos obituarios de certos bravos destemidos.

A guerra colonial foi é e sera o capitulo mais sangrento da Historia de Portugal do século XX. Doa a quem doer.

Francisco Seixas da Costa disse...

Várias notas:
1. Não sou nem pretendo ser historiador. Essa agora! Escrevo apenas leves apontamentos de memória coletiva.
2. Partilho o orgulho pela gloriosa aventura que foi a expansão portuguesa no mundo.
3. O que não significa que não considere que o colonialismo foi um capítulo triste da nossa história. Quanto à escravatura, não absolvo uns por contraste, pelo mal que outros fizeram.
4. Considero, além disso, que o período das nossas guerras coloniais dos anos 60 e 70, foi um tempo trágico, fruto direto da ditatura que Portugal sofria. Não foi por mero acaso que os países democráticos europeus decidiram negociar a independência das suas colónias.
5. Para além das principais vítimas - os povos coloniais - a política salazarista sacrificou os militares portugueses (cujo patriotismo ninguém tem o direito de contestar), conduziu a milhares de estropiados e mortos (recuso-me à cínica e redutora contagem de apenas "o lado de cá)e quantos, como a maioria dos chamados "retornados", acabaram por sofrer os efeitos colaterais das guerras. Todos merecem o nosso profundo respeito
3. Lamento discordar, mas a revolta da Baixa do Cassange, sendo sintomática da crise do colonialismo português em Angola, não tem uma relação direta com o "4 de Fevereiro". Já não direi o mesmo da relação deste com os ataques do "15 de Março". Assumo aqui uma leitura política: os que pretendem ligar os acontecimentos da Baixa do Cassange ao "4 de Fevereiro" fazem parte de quantos (a meu ver, erradamente) tentam ver este último acontecimento como tendo sido dirigido pelo MPLA. Concedo que isto possa ser útil a uma certa visão da história de Angola, mas é preciso ver que há outras.
4. Estou 100% de acordo com a importância do livro de Fernando Andresen Guimarães sobre Angola. Li-o há quase dez anos, quando o Fernando serviu comigo em Nova Iorque. É uma análise de grande qualidade. Um dia, há-de ter uma edição angolana, podem crer.

Alcipe disse...

Escravatura : não se trata de absolver, trata-se de não distorcer a História...

Julia Macias-Valet disse...

Cara Helena O., bem sei que uma coisa sao os assaltos (e ouve outros, avioes,...) e outra coisa a guerra.
Mas nao tera sido o "Assalto ao Santa Maria" o acender de um rastilho que tera motivado a insurreiçao em Angola ? Ou sera mera coincidência da Historia ?
A Guerra Colonial foi certamente o capitulo mais sangrento da Historia de Portugal do século XX mas foi provavelmente também o mais sangrento para os para os paises africanos com quem nos batiamos e que defendiam a indepêndia da sua terra.

Quanto à "Operaçao Dulcineia" ouve 1 morto e 1 ferido. Alias isso impediu, em parte, o sucesso da operaçao. Mesmo se ainda assim, o "Assalto" teve a sua parte de sucesso pelo facto de ter atraido a atençao do mundo inteiro para a politica colonial do governo português, de ter feito tremer a ditadura e ter sido um vergonhaço para Salazar.

Pena foi nao ter conseguido evitar 13 anos de conflito e muitas lagrimas derramadas.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...