segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Manuel Serra (1932-2010)


Hoje sabemos melhor o que foi o chamado “28 de Setembro” de 1974 - um equívoco momento de confronto entre setores ultra-conservadores, apoiantes de um movimento para dar plenos poderes ao general Spínola, e forças políticas da esquerda, que habilmente aproveitaram o ensejo para afastar o polémico presidente da República que, no 25 de Abril, haviam sido forçadas a aceitar e que se tornava progressivamente mais incómodo. É que, à época, assistia-se a um crescente ambiente anti-25 de Abril, alimentado pelo próprio Spínola, que estava a colocar a esquerda e o Movimento das Forças Armadas à beira de um ataque de nervos.

Nessa noite, eu tinha sido destacado para uma determinada tarefa, juntamente com o António Reis - o líder dos milicianos da Escola Prática de Administração Militar, de onde eu era originário, embora, à época, eu fosse adjunto da Junta de Salvação Nacional, instituição a que os acontecimentos desse dia em breve iriam pôr termo. (Por coincidência, ontem recebi um e-mail do António a informar-me que vem a Paris dentro de dias). Íamos sob o comando de um jovem alferes “do quadro”, o Manuel Geraldes,  uma generosa figura do MFA, que não vejo nem contacto há  mais de 30 anos (e de quem, hoje mesmo, por uma outra coincidência impressionante, recebi um abraço através de um amigo comum). Levávamos connosco uma “praça”, um soldado, o Moura. O Moura tinha na sua mão uma intimidante metralhadora G3. Estávamos a entrar para o meu carro pessoal,  um Fiat 128, algures nas “Avenidas Novas”, a altas horas da noite. Por razões que demorariam a explicar, a tensão do momento então muito grande. Aquela noite do 28 de Setembro acabou por ser muito complexa e longa.

De súbito, uma surpresa: começa a vislumbrar-se, à distância, vinda do alto da rua, uma figura de estatura baixa, estranhamente com as mãos no ar, como se estivesse a render-se. Naquele enquadramento noturno, sem vivalma em roda, a cena era patética e infundia uma súbita insegurança. O soldado Moura começou a demonstrar uma perturbação agitada, com jeitos de querer afirmar a capacidade operacional de que a sua condição de barman da messe da EPAM era “sólida” garantia: num instante, põe a patilha da G-3 na posição de disparo, leva a arma ao ombro e, num derradeiro e precioso segundo, é travado pelo Geraldes com um “está quieto!” e o afastar a arma do alvo.

Aparentemente sem se aperceber do nosso nervosismo e do risco de vida que estava a correr, a personagem continuava lentamente a aproximar-se, agora já se lhe ouvindo coisas, numa voz procuradamente surda, para não alertar a vizinhança, tais como “Sou eu! O Manel”. Lentamente, pudemos identificar quem lá vinha.

Era o Manuel Serra, o sempiterno revolucionário dos golpes da Sé e de Beja, figura que, meses depois, titularia uma célebre cisão de esquerda no Partido Socialista, com a criação da Frente Socialista Popular, afastando-se de Mário Soares. As vidas políticas dos últimos meses haviam-nos feito, entretanto, cruzar com essa curiosa personalidade, com um brilho quase adolescente nos olhos e um sorriso cúmplice, oriunda do cristianismo radical, que há muito trazia a revolução nas veias.  Nos anos 60, ainda antes do fracassado golpe de Beja, em que participou de forma activa, o Manel havia sido protagonista de uma lendária fuga de uma embaixada em Lisboa, onde estava refugiado, vestido de padre... Depois do 25 de Abril, por uma escolha que a confusão política proporcionou, tinha sido nomeado o inesperado chefe de gabinete desse igualmente improvável ministro que foi o jornalista Raul Rego.

- “Então, rapazes, há novidade? Vi-vos por aqui e vinha perguntar se necessitam de alguma coisa. Temos ali duas viaturas com pessoal, armas e granadas, para o que der e vier. Não precisam mesmo de nada? Está tudo em ordem?”.

Ficou a ideia que o Manel e os seus amigos andavam nessa noite pela cidade, numa espécie de piquete do ACP, para “avarias” de outra natureza. Demos os abraços da praxe e presumo que devemos ter esclarecido que “está tudo sob controlo”. No fundo, sem lho revelarmos, estávamos imensamente aliviados por se ter conseguido travar a precipitação quase trágica do Moura, o qual talvez nunca tenha entendido bem quem era aquela alma penada e meio careca, saída do escuro da rua, afinal amigalhaço dos seus superiores, a quem estivera prestes a dar um tiro.

E lá foi o Manel de volta, pela noite, à busca da revolução que sempre lhe consumiu os dias.

Dias que hoje terminaram, aos 78 anos, em Lisboa. Adeus, Manel!

15 comentários:

Helena Oneto disse...

E com pena que aprendo agora, aqui, a morte de Manuel Serra. Conheci-o, ha muitos anos, em Caxias, quando ia visitar o meu Tio Fernando. Depois do 25 de Abril, vi-o regularmente, em casa do Tio, nos longos serões de sabado, onde se reuniam, entre outros, alguns dos participantes dos golpes de Beja e da Sé.
A maioria ja nos deixou. Eram homens de grande coragem.
Tenho muitas saudades deles todos.

Helena Sacadura Cabral disse...

Conheci-o em casa de uma amiga comum, a psiquiatra Lígia Monteiro.
Era um homem bom que nem sempre os "seus" - politicamente falando, claro -, trataram bem...
Foi pena!

Anónimo disse...

Grande Manuel Serra. É preciso a memória fantástica do Seixas para o lembrar. Que saudades da EPAM

AF

ARD disse...

A excelência da informação do "Público", esse grande "jornal de referência", está bem patente da pequena local, perdida na pag. 11, sobre a morte de Manuel Serra.
Diz-se, por vezes, em certos casos que alguém tem "memória curta"; no caso do "Público" seria mais correcto dizer que "não tem memória".
Deve ser por isso que a triste gazeta reduz toda uma vida de generoso combate, de luta e de sacrifícios a esta frase: "Destacado dirigente do PS e um dos protagonistas da política portuguesa após o 25 de Abril".
Do "Golpe da Sé", das fugas espectaculares do Hospital e da Embaixada de Cuba, do "Golpe de Beja", dos 12 anos de prisão, das torturas, resta isto.
É um "jornal de referência"...

Anónimo disse...

Caro embaixador:
Obrigado pelo texto que escreveu dedicado ao Manel.
eu era um dos que estava com ele na noite de 28 de Setembro.
quero apenas corrigi-lo num pormenor: a fuga foi da embaixada do Brasil e não de Cuba.é com agrado que posso dizer à Helena que o seu tio também estava connosco nessa noite.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Anónimo: um familiar meu contou-me, há muitos anos, a história da ardilosa saída de Manuel Serra da Embaixada de Cuba, perto do largo da Estefânea. Vejo agora que estava enganado.
Vi o Manel, pela última vez, no funeral de Hermínio da Palma Inácio, em Lisboa. Pareceu-me com um olhar estranhamente triste.

Helena Oneto disse...

Estou de acordo com o comentário de Gil. O "Público" devia ter feito um obituário mais completo. Manuel Serra merece-o.

Ao comentário de anonimo(pena exprimir-se anonimamente)gostava de acrescentar que ouvi a história da fuga do Manel Serra (mascarado de padre com uma grandes barbas) do hospital contada pelo meu tio, pelo Raul Marques e pelo Manel Serra. Ríamos imenso a imaginar a cara dos pides quando perceberam, tarde demais, que tinham deixado fugir o "padre"!
O meu Tio também se refugiou numa embaixada sul-americana mas acabou, na impossibilidade de fugir, por se entregar ao Agente Rosa Casaco que não largava o cerco à embaixada.
.
O 28 de Setembro foi um grande susto !!

Anónimo disse...

Não consigo ser insensível a este post... muito menos a esta fotografia.

Há expressões faciais que voluntária ou involuntariamente desvendam a dor da alma...

Aquela, das expectativas goradas.

Não faço questão de acertar no diagnóstico, mas esta fotografia continua a impressionar-me, pela profundidade do olhar...
Até...
Isabel Seixas

Carlos Cristo disse...

Caríssimos

A fuga espetacular do Manuel Serra da Embaixada de Cuba foi para refugiar-se na Embaixada do Brasil, de onde também saiu por conta própria.

abraços,

Carlos Cristo

Francisco Seixas da Costa disse...

Carlos Cristo prova, afinal, que a minha informação original, sobre a fuga da Embaixada de Cuba, estava certa. Vou retificar.

Já agora, aqui vão or pormenores que não coloquei no texto.

Manuel Serra deixara crescer a barba, ao tempo que estava refigiado na Embaixada de Cuba, perto da praça da Estefânea, em Lisboa. Todos os dias vinha à janela ou varanda e, invariavelmente, via no passeio um "pide", que o vigiava. Serra tinha por "hábito" cuspir no "pide" de serviço, o que, como é óbvio, os irritava sobremaneira e exigia a concentração do olhar naquele barbudo irreverente.
No dia da fuga, Serra lá se abeirou da janela ou varanda e voltou a cuspir no "pide". Um ou dois minutos depois, um padre de faces rosadas sai pela escada de acesso à Embaixada, comum a uma casa de artigos elétricos. O "pide" ainda remoía o escarro do barbudo Serra, quando o padre de alva face o saúda e ruma rua abaixo. O "padre" era o Manuel Serra, que havia cortado a barba num minuto e zarpara escada abaixo...

Anónimo disse...

É o próprio que conta a Rui Daniel Galiza, no livro Por Teu Livre Pensamento, que foi preso no dia 13 de Maio, pela Polícia de Trânsito, na Almirante Reis, em Lisboa, com Fernando Oneto, Raul Marques e Armando Conceição Silva. Neste golpe participaram também, segundo Mário Soares, em Portugal Amordaçado, figuras com Asdrúbal Pereira, Horácio Queiroz, Jaime Conde, Pedro Bogarim, António Vilar, que morreria no golpe de Beja. E também monárquicos como Francisco de Sousa Tavares.
Manuel Serra é então submetido, pela primeira vez, à tortura do sono (cinco dias sem dormir) e mantido seis meses em isolamento na prisão do Aljube. É então que adoece e é internado no Curry Cabral, de onde se evade para a Embaixada de Cuba. Seis meses depois, a 23 de Agosto de 1960, sairá da Embaixada de Cuba em direcção à do Brasil, iludindo novamente os agentes da PIDE que, em turnos de quatro, o vigiavam. Costumava mostrar-se à janela a fumar charuto, com barba e cabelo comprido. Um dia cortou o cabelo e rapou a barba e rapidamente saiu pela porta de cara limpa. Os "pides" não o reconheceram.
Exila-se no Brasil no início de 1961, sendo julgado à revelia em 21 de Dezembro desse ano, condenado a 18 meses de prisão e à suspensão de direitos políticos, como votar, por cinco anos. Só que quando essa sentença é proferida já Manuel Serra está de novo em Portugal, onde entrara clandestinamente, a partir de Marrocos, através da fronteira de Portalegre, como enviado de Delgado, para preparar um novo golpe de Estado - os outros dois representantes do general São Silva Graça e Raul Miguel Matos.
Manuel Serra participa assim no golpe de Beja, a 1 de Janeiro de 1962 - em que o capitão Varela Gomes é ferido e preso -, e será detido em Tavira e levado para as instalações da PIDE, em Lisboa. É submetido à tortura do sono durante 13 dias e 14 noites, após o que a PIDE o deixa dormir oito horas. Segue-se, durante mais 31 dias, a "receita" do sono, acompanhada de tortura da estátua e espancamentos, como contou a Rui Daniel Galiza.

Helena Sacadura Cabral disse...

Caro Anónimo já que falamos de tantos nomes, não esqueçamos o Dr Sérgio Sabido Ferreira que fiel ao seu juramento médico, operou Varela Gomes, arriscando a sua carreira nos Hospitais Civis para o salvar!

Virgilio Cordeiro disse...

Cumprimentos
Pelo que fazem e dizem do Manuel Serra (MANEL).
Agradecido pelas grandes “Verdades” sobre este grande Revolucionário.
Muito mais há a dizer sobre seu percurso Histórico deste grande Revolucionário.
Sua vida desde que nasceu, seus pais foram (Excelentes pessoas que o apoiaram sempre,) familiares e amigos… seus companheiros de Luta.
Seu combate pela Liberdade e Democracia para todos os Portugueses.
Paz a este grande Revolucionário Socialista.
Cumprimentos a vós que continuai a Luta Democráticamente graças a homens como ele.
Virgílio Cordeiro

Unknown disse...

Estava inserindo alguns comentários (retificações e esclarecimentos) sobre os episódios envolvendo o Manuel Serra depois da "Revolta da Sé". Parece que se perderam.
Jaime Conde

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Jaime Conde
De facto, os comentários não chegaram. Pode repeti-los?
Cordiais cumprimentos

Livro