quarta-feira, fevereiro 10, 2010

O chefe

                             
 
O Miranda era um "velho primeiro-secretário". Este conceito "de corredor", por esses anos 70, abrangia quantos se eternizavam na categoria que antecedia a ascensão a conselheiro - a partir da qual, à época, se podiam chefiar missões diplomáticas "com credenciais de embaixador". Porém, o concurso para conselheiro era muito limitado, o que criara uma multidão de "velhos primeiros-secretários".

O nosso Miranda tinha vindo da América Latina, por onde andara em mais do que um posto. Essa era uma zona geográfica em que o regime anterior apostara bastante, por ser terreno fértil para colheita de apoios para a impopular política colonial. Contudo, na hierarquia psicológica dos postos que a carreira alimentava, o continente latino-americano, com exceção do Brasil, não fazia parte dos destinos profissionais de maior prestígio, o que também marcara o percurso do Miranda, que agora fora parar à nossa Repartição.

A Repartição tinha um chefe e, abaixo dele, não havia qualquer hierarquia formal, exceto a antiguidade. E nesta, por razão óbvia, o Miranda imperava sobre nós, funcionários que nunca tinham sido colocados no estrangeiro. Por isso, partindo o chefe de férias, o Miranda assumia a direção da Repartição. E assim aconteceu, num certo dia.

Na manhã seguinte, ao chegar à minha secretária, dou de caras com uma pilha de documentos "para dar andamento", muito superior à média habitual. Fui ver e dei-me conta que parte substancial da papelada era do pelouro do Miranda. Procurei-o na sua sala, mas não estava. Lembrei-me então de ir ao gabinete do chefe da Repartição.

E lá estava o Miranda, com os pés sobre a mesa, regalado a ler o "Diário de Notícias" a que função dava direito. Perguntei-lhe por que diabo tinha canalizado todos os papéis do seu pelouro para mim. A sua resposta, marcada pela surpresa, foi cristalina: "Ó homem! Eu agora estou a chefiar!"

11 comentários:

Guilherme Sanches disse...

ACORDO ORTOGRÁFICO - A REGRA E A "EXCEPÇÃO".
Ao ler este post de hoje, lembrei-me da velha pergunta que nos faziam em criança: - antigamente, farmácia escrevia-se com PH, e "hoje", como se escreve?
Não fossem as contínuas evoluções ortográficas, e se calhar ainda hoje estaríamos a declinar em latim, como nas pesadonas e quase odiosas aulas do surumbático Dr Bessa Monteiro, que tão bem afinaram a forma de olhar, entender e praticar a escrita, mesmo a daqueles que enveredaram por vias profissionais técnicas, sem nunca perderem de vista o lado humanista da vida.
Em regra, eu também ando a praticar o novo acordo, mas confesso que às vezes certas palavras ainda me soam mal, quando escritas.
Irremediavelmente fidelizado a estas "duas ou três coisas" que passaram a integrar as outras coisas com que abro o meu contacto matinal com a vida, e a propósito de um post recente com alguns comentários sobre este novo acordo ortográfio, há dias dei comigo a hesitar sobre a "excepção", escrita segundo o novo acordo.
Fazia sentido a minha hesitação. Afinal eu não era exceção.
Um abraço bem humorado.

João de Deus disse...

Caro Embaixador, falta esclarecer-nos sobre a sua resposta.

Já passei pela mesma exacta situação (e não me parece que sejam excepções/exceções), e o que me permito revelar é que foi um complicado exercício de "diplomacia caseira". Um abraço amigo.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro João de Deus: deixei-lhe os papéis, claro!

Helena Sacadura Cabral disse...

Eu bem digo Embaixador que o Senhor é uma exceção. Não, não e não. O Senhor Embaixador é uma excepção!

Francisco Seixas da Costa disse...

Não é verdade, Dra. Helena Sacadura Cabral. Ontem como hoje, o Ministério dos Negócios Estrangeiros teve e tem magníficos e dedicados funcionários, grandes servidores do Estado. Foi assim na ditadura, é assim na democracia. Aliás, olhando algumas décadas para trás, fico com a sensação de que o nível médio, muito em especial nas chefias do MNE, subiu bastante, até pelas exigências das novas temáticas, que já não permitem o "bluff". O caricaturar de alguns espécimens ou comportamentos mais bizarros é apenas uma espécie de exorcismo...

Rubi disse...

Faz-me lembrar o senhor Coelho, quando estudava no ISCSP. Uma figura emblematica e igualmente sedentaria...

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador
Eu percebo o que quer dizer. Mas desculpe lá. É que quando se exorciza, é para prevenir. E quando se previne é porque se admite a... possibilidade.
Estou, também eu, a tentar exorcizar aqueles cujas práticas não foram ou não são, as que eu - ignorante -gostaria de ver no meu país.

Santiago Macias disse...

Num sítio onde trabalhei havia um daqueles funcionários "clássicos", um pouco como o sr. Miranda. Quando os mais novos lhe colocavam uma questão para a qual não tinha resposta limitava-se a dizer, com mau modo, "faça-se como habitualmente". Quem se atreve a contestar um veterano mal disposto?

Anónimo disse...

Bem, também conheço funcionários que pensam que o chefe tem que fazer tudo sem usar a delegação. Os chefes que privilegiam a liderança democrática são muitas vezes surpreendidos por espertos "saloios" que canalizam/distribuem todo o trabalho, até o Seu...
Há de Tudo...
Isabel Seixas

Helena Oneto disse...

Chefes Miranda há muitos mas aspirantes a diplomata reagirem como o jovem FSC reagiu deve haver muito poucos. Que coragem!

ARD disse...

Há uma verdade que é indesmentível:
o Quadro Diplomático português constitui uma ilha de excelência não só no lago da função pública mas também no oceano da sociedade portuguesa.
Isso mesmo admitiram quantos passaram pela pasta dos Negócios Estrangeiros, alguns deles chegados lá repletos dos "clichés" tantas vezes associados à sua actividade.
Há que distinguir, quer nos posts do Embx. SC quer nas conversas de café, a anedota da análise.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...