O aeroporto de Libreville, no Gabão, chamava-se (e chama-se) Léon Mba, nome do primeiro presidente do país. Desembarquei nele, ido de Paris, na madrugada de um dia do final de fevereiro de 1976. A ligação a S. Tomé, que era o meu destino imediato, só teria lugar a meio da tarde. A aerogare era de uma grande simplicidade, sem a menor comodidade, para o tempo que mediava entre os dois voos. Fui tomar o pequeno almoço, num arremedo de restaurante, e comecei a impacientar-me. Teria mesmo de aguentar por ali, cerca de 10 horas?
Era a minha primeira viagem a África. Era também a minha primeira missão oficial. Não era muito curial que um jovem “adido de embaixada”, ingressado há menos de meio ano na diplomacia, fosse encarregado de uma missão numa ex-colónia, recém-independente. Havia por lá uma embaixada, com dois diplomatas, mas o então Ministério da Cooperação (onde eu tinha sido destacado) decidira ser eu era a pessoa que devia ir mediar o conflito que se gerara entre as autoridades santomenses e os primeiros professores cooperantes portugueses, que haviam chegado ao país há escassas semanas. Um dissídio que a embaixada informara não conseguir resolver. A minha missão iria durar uma semana, porque só havia um voo semanal entre Libreville e S. Tomé, num tempo em que as viagens por Luanda, em clima de guerra, estavam suspensas.
Por essa época da minha vida, eu tinha a “mania” de que era um “expert” em viagens. Tinha atravessado à boleia, por duas vezes, durante semanas, vários países europeus, tinha a experiência de uma viagem de férias aos Estados Unidos, o que então não era muito vulgar para a gente da minha geração, tinha já feito bastantes deslocações aéreas ao estrangeiro. Achava, na minha auto-suficiência, que já tinha apanhado os “códigos” para todas as aventuras pelo mundo. Decidi, assim, “ir dar uma volta” a Libreville. Com os diabos! Não devia ser muito diferente de passear em Copenhague ou em Viena!
Coloquei a minha mala num depósito do aeroporto (o que eu me iria arrepender desse gesto, porque, horas mais tarde, me devolveram uma mala errada, que levei comigo para S. Tomé...) e, com uma pasta negra de couro na mão, atulhada de documentos, depois de trocar francos franceses por francos CFA, aluguei um táxi e fui para a “baixa” de Libreville.
O motorista ficou intrigado quando lhe pedi para me levar ao “centro” da cidade. “Quel Centre, Monsieur?”. Então ele não sabia onde era o centro? Disse-lhe para ir andando, que lhe diria depois onde parar. À medida que o casario se adensava, percebi que nada daquilo parecia ter um centro, como estava habituado nas cidades que conhecia. Quase todas as lojas que via estavam fechadas. Era, além disso, um domingo!
A minha confiança, própria de um “maçarico” sem a menor experiência africana, era, no entanto, imensa. A certa altura, decidi mandar parar o carro, paguei ao homem e comecei a caminhar. A manhã ia avançando para o meio-dia, o sol começava a torrar e ali ia eu, de blazer e pasta preta, a passear por uma cidade meio deserta.
Vou dizer algo politicamente incorreto, mas muito verdadeiro, para quem conhece África: em regra, um branco não se passeia, a pé, sem rumo, vestido à europeia, numa cidade africana. Os locais que comigo se cruzavam, ou quem passava de carro, todos olhavam para mim com uma evidente estupefação. Era uma imagem bizarra, agravada pelo imenso suor que me começava a invadir, sem que descortinasse lugares onde me abrigar ou tomar alguma coisa.
A partir de uma certa altura, também eu comecei (já não era sem tempo!) a achar a minha aventura um tanto insólita. E a arrepender-me da “brilhante” ideia que tivera de “ir dar uma volta a pé“ por Libreville. De facto, estava a aprender, à minha custa, que nada ali era parecido com Amesterdão ou Zurique.
Perguntei onde podia apanhar um táxi. Faziam-me gestos vagos, apontando-me sítios distantes. Inquiri de algum hotel, onde tudo se tornaria mais fácil, mas as indicações eram no sentido de que estava a quilómetros de um desses oásis. Não sou de empanicar, mas tinha o bom-senso mínimo para começar a preocupar-me. Porém, sempre com um ar grave e decidido, para fingir que me sentia dono da situação, lá ia eu por avenidas poeirentas, em direção a sítio nenhum. E, claro, táxis nem vê-los!
Até que, quase uma boa meia hora passada, comigo a derreter de calor, com uns “Ray ban” que já escorriam água, avistei um táxi na minha direção. A esperança rapidamente se diluiu: vinha cheio, a abarrotar. Arrisquei e fiz sinal para ele parar. E, para minha surpresa, ele parou. Perguntei onde havia táxis. Nem sei bem o que o motorista respondeu, só sei que, quando mencionei o aeroporto, os olhos se lhe arregalaram: “Pour l’aéroport, Monsieur? Ah! Mais ça c’est une bonne course!” Para grandes males, grandes remédios: disse que lhe pagava a “course” e que ainda lhe dava mais uns tantos francos CFA, se me levasse ao aeroporto.
Foi remédio santo! Os passageiros, uma mulher e uma criança incluídos, foram logo expulsos pelo motorista no táxi. Estavam compreensivelmente furibundos, lançavam-me olhares ameaçadores, ao serem afastados pela arrogância de um branco, que “comprara” o seu transporte. Fiquei orgulhoso? Não fiquei, mas o alívio que senti absolveu, até hoje, bem mais de quatro décadas passadas, o meu sentimento de culpa.
Nesse dia, aprendi, em vários sentidos, o que a África pode significar de diferente. E que o tal “centro” de Libreville tinha, afinal, muito pouco a ver com as “baixas” que eu conhecia... na Europa e na América do Norte! Nos anos seguintes, visitei muitas cidades africanas, do Magreb à África do Sul, de Angola à contra-costa. E aprendi bem o que é a geografia social urbana dessas terras.
Lembrei-me ontem disto quando, sob um sol muito raro na sua inclemência, cometi a patetice, após o almoço, de arriscar fazer a pé uma caminhada, numa distância que ainda era longa, por uma Lisboa sem sombra de sombras. Por instantes, veio-me à memória aquele sol antigo do Gabão. Sem uma réstea de saudade, confesso.