Nunca vivi na América. Ou melhor, vivi algum tempo em Nova Iorque que, como alguém dizia, os americanos acham que já é « um pouco Europa ». Mas estava lá nessa data terrível que foi o 11 de setembro de 2001, quando, como titulou então consensualmente o « Le Monde », todos fomos americanos. E senti a América a mudar.
De há muito que penso que não adianta tentarmos viver a História dos outros e procurar compreendê-los à luz da nossa própria experiência. Por muitos esforços intelectuais que façamos, ficamos sempre aquém da plena compreensão dessa herança natural que cada povo carrega dentro de si, fruto daquilo que o seu percurso histórico sedimentou na memória coletiva.
A América – gosto de chamar assim aos Estados Unidos da América – é um país diferente. É o grande vencedor dentre os impérios do século XX, subalternizando os poderes europeus tradicionais, de quem se tornou no aliado dominante e que sossegou com a sua vitória perante a ameaça que a Guerra Fria para todos representou.
Talvez por isso, porque, em estado de necessidade dos outros, assumiu o papel de « polícia » do mundo ocidental, e depois o prolongou num registo algo sobranceiro, a América passou a identificar os seus interesses com aqueles que espera que os seus parceiros adotem. Já tive a experiência de ver mais do que um diplomata americano genuinamente surpreendido pelo facto de, perante um tema internacional em discussão, um aliado ousar ter uma perspetiva diferente. O seu comportamento no seio da NATO é disso prova evidente e, verdade seja, esta perspetiva um tanto impositiva acaba muitas vezes por fazer o seu caminho.
Uma graça comum, detratora da política externa americana, costuma repetir que o Estados Unidos acabam sempre por adotar a boa solução, mas só depois de terem experimentado todas as outras. A História não comprova o chiste : não apenas, infelizmente, a América não escolhe sempre a melhor solução como, felizmente, tem conseguido travar alguns impulsos internos para atitudes limite, de que o recurso à opção nuclear é talvez o mais evidente exemplo.
A América vencedora do comunismo, que sonhou com o « fim da História », que a bondade da democracia liberal iria conquistar por todo o lado, não entendeu a precariedade desse ingénuo proselitismo, onde sempre se misturaram interesses egoístas com valores saudáveis. Com a teimosia que afeta quem se sente « à solta » pelo mundo, forçou realidades culturais cuja profundidade mediu mal ou não compreendeu de todo. Pelo caminho, a sua auto-suficiência fê-la optar por um multilateralismo « à la carte », de que nem um presidente com o perfil de Obama se livrou, o que muito afetou a sua autoridade moral como potência. Ao fazê-lo, punha em causa e desafiava de forma indecente a mesma ordem à escala global de que fora o grande campeão, depois do segundo conflito mundial.
Como atrás referi, o 11 de setembro mudou a América. Quem cai de alto sofre mais com a queda e os Estados Unidos, ao serem confrontados com riscos novos no seu próprio território, foram arrastados para um sentimento coletivo de ansiedade, pelo ineditismo de verem em risco uma segurança que davam por adquirida e eterna, apenas sacudida pelas pulsões individuais da sua violência interna, que subsumiam no eterno debate sobre a legitimidade de uso de armas.
Os discursos que se pretendem caraterizadores das reações coletivas de qualquer povo são altamente falíveis, mas não resisto a pensar, à luz do que me foi dado observar ao longo do tempo, que o abalo do 11 de setembro conduziu a América a uma opção relativamente evidente em favor da segurança, em óbvio detrimento das liberdades – na leitura de que estas só existem quando a primeira estiver assegurada. Nessa deriva, sob o traumatismo do instante, num refluxo patriótico que teve laivos obsessivos, o país poderá ter colocado em causa alguns princípios de que era arauto. Esse não era, aliás, um cenário novo. Havia emergido no « maccartismo » e na atitude americana à escala global, em todos os momentos em que a preservação de um interesse tido por maior tinha prevalecido – desde a frequente proteção ilegítima de Israel à realpolitik anti-comunista, por exemplo, no suporte obsceno de ditaduras um pouco por todo o mundo.
Para apressar o fim deste raciocínio, direi que o receio e a preocupação securitária parece terem tomado conta dos reflexos americanos, quem sabe se por muito tempo. Se nem mesmo uma presidência « do bem », como foi indiscutivelmente a de Obama, foi capaz de estabilizar racionalmente esses medos, talvez devamos estar preparados para ter de aceitar que o pior está ainda para vir. Do « Tea Party » a Trump, há uma América profunda que, podendo não chegar já ao poder, previsivelmente o condicionará, mesmo que a escolha de novembro venha a ser Hillary Clinton – a coisa mais próxima de um republicano que os democratas poderão hoje produzir.
Com uma Europa sem direção política, que possa servir de contraponto coletivo, amigável e moderador, os Estados Unidos, para apagar os seus medos, poderão sentir-se uma vez mais tentados a avançar por sua conta e risco. E isso não são necessariamente boas notícias para quem deles depende e com eles quer preservar uma relação determinada pela geopolítica. Como nós.
(Artigo que hoje publico no "Público")
(Artigo que hoje publico no "Público")